Que viva Brega

Voluntários

A magnífica reportagem de Paulo Moura saída hoje no Público revela-nos a nova paisagem humana de Brega. Quase a de uma cidade mexicana recém-ocupada pelas companhias desordenadas mas generosas dos exércitos de Villa ou de Zapata. No Libération, de hoje também, um artigo do enviado Jean-Pierre Perrin desvenda um cenário idêntico de confusão, improviso e coragem. Vale a pena ler um pedaço para tentarmos tocar a bravura irracional mas admirável destas pessoas.

Parece que a revolução líbia se disfarçou de western spaghetti. Um ambiente saturado de poeira de cidade de fronteira, tal como a imaginaram Sergio Leone e Sam Peckinpah: uma única estrada aberta sobre o deserto, pequenas lojas com as portas fechadas, sem excepção, e, espalhados pelo caminho, circulando por entre pilhas de detritos, cachos de combatentes disfarçados de soldados.

Os uniformes são os mais bizarros: a roupa civil mistura-se com adereços supostamente militares, bonés de esqui, particularmente apreciados, alternam com capacetes de explorador, os dólmanes seguem modelos de todos os tipos. Sabemos que na terça-feira aconteceu um combate – a oposição fala de batalha – porque o chão se encontra pejado de invólucros. Nos quatro cantos da localidade, as pic-ups vigiam levando sobre a caixa aberta metralhadoras antiaéreas ou canhões anticarro. Em frente ao cibercafé Novo Mundo, uma dezena de soldados, armados de kalachnikov e de lança-foguetes, descansam deitados sobre caixotes de munições abertos a golpes de chave de fendas. Visivelmente, para a maioria deles a guerra é uma profissão nova. Um combatente vestiu o seu colete antibalas ao contrário. Um ou outro olha pelo lado errado a mira do seu lança-mísseis SAM 7. (…) A maior parte das fardas foram pilhadas nas casernas de Benghazi ou de Ajdabiya. Alguns trazem até distintivos. Asas de pára-quedista decoram peitos de homens que nunca entraram num avião.

(…) Este exército de umas dezenas de homens, reforçados por habitantes das redondezas, é essencialmente composto de voluntários. Como Siraj Ben Ahmad, de 27 anos, gerente de uma sociedade comercial, que veio de Benghazi. «Eu nem sequer sei pegar numa arma. Por isso ajudo como posso, passo as munições ou vou buscar comida», afirma ele. Um pouco mais velho, também ele originário daquela cidade, Yahyia Morit controla uma bateria antiaérea. «Tive um dia de formação em Benghazi. Ontem ainda, eu era farmacêutico. Hoje, porque acredito na liberdade, tornei-me um atirador», diz sem se rir.

    Atualidade, Olhares, Recortes

    A grande ilusão

    comunismo

    A historiografia das últimas duas décadas integra um grande número de obras e de autores que se ocupam com o trajecto do comunismo enquanto projecto e experiência, transmitindo uma multiplicidade de abordagens apenas possível devido aos acontecimentos súbitos e inesperados que antecederam a queda do Muro de Berlim e que esta precipitou. A abertura dos arquivos antes reservados dos antigos «países socialistas» e o fim dos medos impostos pela Guerra Fria possibilitaram estudos audaciosos e com uma forte carga de novidade. Muitos investigadores centraram então no tema o seu trabalho, desenvolvendo projectos que em poucos anos deram excelentes resultados. Não é este, todavia, o caso do historiador e cientista político britânico Archie Brown, que há mais de 40 anos, muito antes da vaga irromper, se dedicou a estudar o comunismo e as experiências de poder moldadas no exemplo da Revolução de Outubro. Ascensão e Queda do Comunismo é assim uma obra de síntese ligada a muitos anos de pesquisa de arquivo, trabalho de campo e reflexão. Desta combinação resulta aquilo que noutras condições seria difícil obter: um trabalho sóbrio e conciso que nem por isso deixa de informar, de oferecer novidade e de aliciar o leitor.

    Temos pela frente uma completa história do comunismo enquanto desígnio vital na história do século XX, mas podemos observar também as condições do seu surgimento e declínio. A viagem distribui-se por cinco jornadas com um suporte cronológico: origem e desenvolvimento fundado nas intervenções de Marx e de Lenine, continuando até ao momento em que a União Soviética deixou de ser exemplo único; alastramento do modelo comunista entre o termo da Segunda Guerra Mundial e a morte de Estaline; fase de expansão através do chamado «Terceiro Mundo» e emergência do conflito sino-soviético; período de pressão, correspondendo à viragem para os anos 80, quando as contradições no interior do bloco socialista se agudizaram; fase final de desagregação e queda dos regimes. No entanto, o livro não se restringe a um levantamento sequencial das experiências de tomada e conservação do poder. É verdade que tem em consideração a história, mais longa e decisiva, da União Soviética, bem como o trajecto dos Estados que partilharam o seu destino, com uma atenção particular para a China, dado o seu prolongado impacto planetário. Mas vai muito para além da exposição dos factos, desenvolvendo aspectos menos abordados aos quais se ligam alguns dos momentos mais ricos e estimulantes. É o caso da fundamentação da capacidade sedutora do ideal comunista, dos meandros da tomada do poder pelos comunistas na Europa recém-arrancada das mãos de Hitler, da percepção da teia de intrigas que envolveu a tentativa de regeneração do sistema associada à «Primavera de Praga» e do papel decisivo das transformações ocorridas na Polónia na desagregação de todo o bloco socialista.

    Um trabalho de interpretação do papel preenchido pelos partidos comunistas nos países democráticos, definindo invariavelmente uma influência superior ao seu real impacto eleitoral, tal como uma tentativa mais detalhada de compreensão das condições que possibilitaram a longa vida da experiência comunista ou que determinaram o seu colapso, funcionam também como factores de valorização deste livro. Importa acrescentar que, apesar de não ser propriamente um simpatizante do projecto histórico ao qual tem dedicado a vida profissional, Brown conserva em relação a ele uma posição de esforçada equidistância e objectividade. A obra reconhece o valor das «democracias consolidadas» como mais capazes de proporcionarem justiça e liberdade aos cidadãos do que os estados construídos «sobre as bases criadas por Marx e Lenine», mas de forma alguma pode ser tomada como anticomunista. Um bom livro para quem comece a interessar-se por estes temas ou sobre eles procure uma síntese útil e capaz.

    [Archie Brown, Ascensão e Queda do Comunismo. D. Quixote. Trad. não identificada. 776 págs. Publicado na revista LER de Fevereiro de 2011.]

      História

      Camus fotográfico

      Camus_avant

      Tanto quanto a obra escrita, a projecção visual da presença física de Albert Camus incorporou sempre o contraste entre o lado diurno, solar, e um outro, mais reservado e taciturno. As muitas fotografias que dele ficaram, o rastro que sobrou das suas aparições públicas, constantes apesar de um desejo reiterado de privacidade, mostram também essa dupla face, que transparece ainda no modo como os outros – os que o admiraram, muitos, e os que o odiaram, muitos também – se foram relacionando com os dois rostos.

      Nos anos 40, o escritor surgia refulgente, a good looking guy com êxito entre as mulheres, uma versão melhorada de Humphrey Bogart como se lhe refere o biógrafo David Sherman, cuja silhueta sóbria funcionava como protótipo do intelectual combatente. Não muda: sobretudo impecável, fato de bom corte, camisa clara, gravata, os cabelos puxados para trás, por vezes um cigarro Gauloise. Em A Queda, Clamance, o protagonista, declara o charme como «a forma de obter uma resposta sem ter colocado nenhuma questão clara», insistindo no modo como a exibição da harmonia, do «autodomínio sem esforço», fazia com que as pessoas que o olhavam «confessassem, por vezes, que tal as ajudava a viver». É este lado, solar mas tranquilo, que Camus evoca em O Verão: «Quando morava em Argel, suportava o inverno pois sabia que numa noite, numa certa noite pura e fria de Fevereiro, as amendoeiras do vale dos Cônsules se cobririam de flores». A tranquilidade manifesta nas fotografias não é porém esforço de poseur, como ocorreria com muitos dos da geração que nele decalcou atitudes, mas antes traço de uma personalidade capaz de fazer coincidir a disposição reflexiva com a energia activa e militante, vista pelo escritor como resultado da sua origem mediterrânica.

      Já a reverberação de um semblante sombrio, muitas vezes desolado, começará a acentuar-se após a publicação, em 1951, de O Homem Revoltado, determinante para a ruptura com Sartre e com intelectuais de uma esquerda que jamais deixou de ver como sua. Muitos, especialmente os próximos do PCF, cortaram relações com ele e passaram a hostilizá-lo sem rodeios por não lhe perdoarem a concepção ética do acto de rebelião, contrária à subordinação do indivíduo ao colectivo. O isolamento – apesar do êxito público de algumas peças, apesar do reconhecimento trazido em 1957 pela atribuição do Nobel – surge acentuado, visível, nas fotografias de uma época que não mais lhe devolveu a energia e a esperança dos anos que haviam ficado para trás. Em Albert Camus – Solitaire et Solidaire, uma belíssima fotobiografia preparada com comovente carinho pela filha Catherine e editada em 2009, esta conta um episódio ocorrido nos últimos anos. Um dia, adolescente, encontrou o pai sentado num sofá de casa com o rosto fechado, aparentando desalento, e perguntou-lhe: «Papá, estás triste?». Camus respondeu: «Não estou triste, Catherine, estou apenas só.» As fotografias dos anos finais mostram-nos repetidamente este lado marcado pelo desconsolo. E todavia, olhado em perspectiva, o álbum da sua vida não revela um escritor recolhido, fechado na sua biblioteca, mas antes um homem em movimento que caminha e avança, razoavelmente seguro do percurso que escolheu.

      Publicado na revista LER de Fevereiro de 2011.

        Heterodoxias, Memória

        Nadia

        Annie Girardot

        Depois de 1960, com a Nadia de Rocco e os seus irmãos, Annie Girardot interpretou sempre um só papel: o seu. Filme após filme, aqueles que a seguiram mudos e atenciosos pelas salas escuras habituaram-se a vê-la em qualquer género da arte, do drama à comédia, sempre com aquele rosto de pessoa comum que dispensava o glamour, aquela voz de fumadora inveterada em registo de metralhadora, electrizante, que a tornavam única. Por isso – e não é pouco – vão sentir tanto a sua falta.

        A partir de uma evocação aparecida no Libération.

          Apontamentos, Cinema, Memória

          O resto virá depois

          Egipto

          Em artigo editado na semana passada pelo Público, Eduardo Lourenço escreveu que a Europa, como o Ocidente em geral, «já não faz revoluções». Ao contrário, «sofre-as, deixa-se surpreender por elas», arrastada por movimentos poderosos que não controla e tem dificuldade em compreender. A propensão do ensaísta para transformar certas hipóteses aparentes em verdades temporárias – desde Montaigne, como é sabido, a característica essencial do ensaio – conduz a afirmações como esta, com a qual podemos dialogar mas que não convém tomarmos à letra. Se falarmos das revoluções com um carácter total, absoluto, determinadas perfazer o círculo e a reconduzir a história ao quilómetro zero para produzirem um mundo radicalmente novo e supostamente melhor, a afirmação de Lourenço fará sentido. Mas tal já não acontece quando nos referirmos aquelas que resultam da insuportabilidade de uma situação ou da necessidade imperativa da sua ultrapassagem, transformada em estímulo para a insurreição.

          Ora, como a história recente tem vindo a mostrar, estes momentos são não só imprevisíveis como impossíveis de cartografar por antecipação. Acontecem quando e onde parte significativa das sociedades compreende que deixou de ser possível suportar o insuportável, encontrando forças para jogar tudo na cartada da mudança. Sob esta perspectiva, quem poderá garantir que se eclodiram agora na Tunísia, no Egipto e na Líbia, se parecem estar a alastrar à maior parte dos países árabes, onde até há pouco tempo a generalidade dos analistas só via resignação e imobilismo, não possam também ocorrer aqui ao lado ou mesmo à nossa porta, dentro das nossas cidades? Como actos raros e ocasionais, nos quais a necessidade imperativa e a desrazão que esta provoca jogam um papel decisivo, as revoluções não caem do céu – nisso tinha razão Mao Tsé-Tung – mas também não se programam. ler mais deste artigo

            Atualidade, Olhares, Opinião

            As Líbias do Manuel

            O microfone

            Não sendo um traço «tipicamente português», sabemos como o grau de despolitização da maioria dos nossos compatriotas é, pelo menos em termos europeus, bastante elevado. Lêem-se poucos jornais, discute-se menos, o share dos telejornais é baixíssimo e existe uma cultura do desinteresse, de raiz salazarista, que molda ainda os comportamentos. De tão distendida no tempo, é provável que tenha transmutado também os nossos genes. A falha nota-se sobretudo a propósito das questões do nosso tempo que comportam uma dimensão transnacional. Para muitos dos nossos compatriotas, elas podem até ter reflexos no comportamento sideral dos anéis de Saturno, mas jamais ecoarão no seu quintal. Apesar de nos tempos que correm os jornais, a televisão, a Internet e até a nossa conta bancária nos avisarem a todo o momento de que tudo tem a ver com tudo e de que, por mais voltas que possamos dar, não podemos fugir a esse fado.

            A ingenuidade e a ignorância são ainda mais chocantes quando afectam pessoas que por dever de ofício deveriam manter-se informadas sobre os terrenos que pisam. É de facto impressionante o grau de desconhecimento das condições políticas que têm preservado os seus postos de trabalho, e o nível de insensibilidade em relação às pessoas com as quais partilham boa parte das suas vidas, evidenciado pela generalidade dos empresários e dos trabalhadores portugueses em missão na Líbia – os turistas têm alguma desculpa – que estão a ser ouvidos pelos telejornais como testemunhas privilegiadas da revolta anti-Kadhafi. Quase invariavelmente, falam do que está a acontecer no país onde trabalham como se tudo não passasse de um rol de desavenças burlescas entre indígenas, que depois de passarem lhes devolverão intacto o país no qual têm governado a vidinha. Existe, de facto, ainda quem alimente o estereótipo do Manuel Padeiro, o tuga ignaro das coisas do mundo para quem tudo se resume ao cálculo simples do deve e do haver e à rota certa do casa-trabalho-casa. Estão no seu direito, claro, mas é patético vê-los convertidos em comentadores idóneos. Francamente, antes um daqueles geopolitics experts que jamais passam o limiar do previsível.

              Apontamentos, Atualidade, Olhares

              E não se deitaram no chão

              Anatomia de um instante, de Javier Cercas, é uma narrativa pormenorizada das circunstâncias que envolveram o 23 de Fevereiro de 1981, quando as Cortes espanholas foram assaltadas por duzentos membros da Guardia Civil comandados pelo tenente-coronel Tejero Molina. A operação foi parte de uma tentativa de golpe lançada pelos militares franquistas contra um regime democrático que dava ainda os primeiros passos. A momentânea vitória dos sublevados acabaria por ser contrariada em boa parte pela intervenção do rei, mas durante longas horas, uma noite inteira e ainda parte da manhã seguinte, governo, deputados e jornalistas presentes à hora do assalto foram conservados como reféns pelos assaltantes. A parte mais dramática e imprevisível foi a inicial, quando os militares irromperam pela sala e foi dada uma ordem no sentido de todos se deitarem de imediato no chão. A ordem foi acompanhada por um tiroteio desgovernado que não feriu ninguém mas bastou para atemorizar os presentes e dar ao país e ao mundo – a televisão transmitiu as imagens em directo – a ideia de que não se tratava propriamente de uma brincadeira.

              No livro de Cercas, como no momento do golpe, destacam-se três homens cuja bravura se explica em poucas palavras. Foram os únicos dos presentes que não se atiraram para o chão e encararam os golpistas, sabendo qualquer deles, naquele preciso momento, que se apenas três dos que se encontravam dentro da sala fossem fuzilados seriam precisamente eles. Relembro os nomes: Adolfo Suárez, primeiro-ministro demissionário, um antigo franquista bon-vivant que atraiçoara os seus tornando-se figura-chave da transição para a democracia; o general Manuel Gutiérrez Mellado, que durante a Guerra Civil se batera contra os republicanos mas agora apoiava Suárez na qualidade de ministro da Defesa, transformando-se para a extrema-direita no exemplo máximo de traição; e Santiago Carrillo, o então secretário-geral dos comunistas, que pelo simples facto de personificar a principal e «demoníaca»  força de oposição a Franco era o deputado mais odiado pelos amotinados de arma engatilhada. Suárez deixou-se ficar sentado, como que impassível e, sugere Cercas, a «posar para a História»; Gutierrez Mellado, de setenta anos e o mais velho dos três, resistiu fisicamente e de pé à ordem dos assaltantes, só se sentando quando lhe apeteceu; Santiago Carrillo, o velho e experimentado combatente antifranquista, manteve-se sentado a saborear calmamente o seu cigarro.

              Claro que este post é só um engodo para a leitura deste livro intenso, encaixado num género híbrido, entre a história, o jornalismo e o romance.

              Rui Bebiano

              Javier Cercas, Anatomia de um instante. Trad. de João Pedro George. Dom Quixote. 458 págs.
                História, Leituras, Memória

                Tobruk

                Tobruk

                Até agora a palavra Tobruk evocava principalmente um filme americano de Arthur Hiller, estreado em 1967, com Rock Hudson e George Peppard nos papéis principais. Inventava-se ali a epopeia de uma brigada de judeus alemães que combatiam contra o poderoso Afrika Korps, de Rommel, durante a longa e dura batalha pela posse da cidade-porto mediterrânica. De Tobruk-o filme retinha as imagens a technicolor de explosões fictícias, golpes-de-mão forjados, falsas mortes e outros ardis desses que o cinema descobre para nos enganar. A perspectiva foi radicalmente alterada hoje, com a chegada das primeiras imagens de uma cidade liberta das garras de Kadhafi. As armas agora são reais e ainda disparam, é verdade, mas desta vez de júbilo e celebração. Gostaria de não voltar a olhar para Tobruk como para uma fortaleza triste e sitiada.

                  Apontamentos, Atualidade, Cidades

                  Revolução Revolution (parte 2)

                  Momentos irrepetíveis. Em «On the Square», de Wendell Steavenson, no Cairo. The New Yorker de hoje.

                  Inside was the Republic of Tahrir, where the protesters had established a kind of revolutionary utopia. As you came through the barricades by the Qasr al Nil Bridge, a funnel of protesters cheered and dapped and chanted, «Welcome! Welcome to the free, who have joined the revolutionaries!» The scene was indescribably moving. There was no hierarchy or formal organization on the square, and yet lines of protesters guarded the barricades while others swept the garbage into neat piles and manned the checkpoints to search people for weapons. People brought food and water and medicine into the square and gave it out for free. «We are queuing up!» one activist who had named his tent the Freedom Motel told me, incredulous at the number of people flowing into the square. «When was the last time you saw an Egyptian queuing up?» I asked one young female volunteer in a floral head scarf if she was with any particular organization. «I am with no one», she replied simply. «I am with the people.»

                    Apontamentos, Atualidade, Olhares, Recortes

                    O Bloco e o sentido da vida

                    Trostky, Lenine e Kamenev

                    Provavelmente escreveu-se mais nos jornais e nos blogues sobre o sentido da vida do Bloco de Esquerda durante estes dias do que nos últimos dois ou três anos. O tom tem oscilado entre o apocalíptico, o céptico e o afirmativo, conforme corresponda a uma previsão da queda do partido, à percepção da inutilidade da moção de censura do governo ou à ideia de que esta possa ajudar a separar as águas. Situo-me na terceira destas vias, embora não da mesma forma que os dirigentes do Bloco. Não me parece nada que a iniciativa possa servir para demarcar os campos e perceber de que tamanho é a direita, criando condições para uma solução política à esquerda. Já foi dito e redito o que é evidente mas algumas esforçadas declarações têm tentado negar: se a moção fosse aprovada o governo saído de novas eleições seria mais à direita; não sendo aprovada, como irá acontecer, ajudará a estabilizar a autoridade política da actual direcção do Partido Socialista. Pelo meio, a proposta impeliu muitos cidadãos descontentes com o actual governo – gente sem partido principalmente, mas também socialistas críticos e numerosos simpatizantes seus – para uma posição de admissão contrariada da continuidade de Sócrates. Porque à política do «quanto pior, melhor» – da qual, ao contrário do PCP, até agora o Bloco parecia ter-se preservado – as pessoas comuns, sobretudo as que sabem que um governo PSD desmantelará sem piedade o que ainda resta do Estado social construído depois de Abril, preferem um «p’ra pior já basta assim». ler mais deste artigo

                      Atualidade, Olhares, Opinião

                      Da casa do sol nascente

                      95 em cada 100 cidadãos que alguma vez aprenderam, ou tentaram aprender, a tocar guitarra, passaram pelo dedilhar quase imóvel de The House of the Rising Sun. O tema gravado pela primeira vez em 1933, por Clarence e Gwen Foster, que Eric Burdon and The Animals popularizaram em 64 (já que em 61 a gravação de Dylan fora um valente fiasco). No que me toca, de tal maneira me dediquei ao treino que a canção «animal» se me tornou um bocado irrespirável. Pois acabo de receber da fonte, com um pedido de divulgação, uma nova versão dos velhos acordes. A banda hispano-franco-argentina Mégaphone ou la Mort a levar-nos de volta à velha casa do sol nascente.

                      Frequentadores habituais d’A Terceira Noite têm-se queixado de falta de música. Com toda a razão. Fica pois a promessa de melhoras. Mas entretanto não se esqueçam de ir ao menu e de clicarem em VÍDEO.

                        Etc., Música

                        Um genocídio soft

                        Todos os meses entro numa farmácia. A doença crónica, que não assassina mas amolece, força a peregrinação. Apanho geralmente com pessoas à minha frente e fico por ali à espera de vez. São quase sempre pobres ou remediados os outros clientes. Poderei frequentar a farmácia errada, mas raramente por lá vejo pessoas com aspecto próspero. Sei que muitas destas também não têm saúde, mas encontrarão sempre quem compre os comprimidos, as gotas e os unguentos por elas. Os pobres não. Os remediados também não. Esses chegam e ficam por ali, pacientes, tristes, calados ou a falarem baixinho, a contarem os cêntimos e as desgraças. Tenho reparado, e não poucas vezes, naquilo que os jornais acabam de relatar como uma novidade filha da crise: pessoas que não levam todos os medicamentos receitados porque não os podem pagar, escolhendo os mais baratos ou aqueles com os quais mais se familiarizaram. Deixando uma parte do tratamento para dias melhores, se é que algum dia esses dias virão. Outros, também já os vi, pedem «para assentar», prometendo liquidar a dívida mais tarde, quando receberem a reforma. Outros ainda pagarão com dinheiro emprestado. O preço, os lucros e as condições de acesso aos medicamentos são dos factores de injustiça e de falta de solidariedade mais perturbantes desta sociedade que vamos partilhando. Daqueles nos quais o Estado – social sem vergonha de o ser – teria a obrigação moral e política de intervir para impedir o genocídio soft e silencioso com o qual pactua por omissão. Daqueles que deveriam ter o lugar de destaque que não têm no combate político e nos movimentos sociais.

                          Apontamentos, Atualidade, Olhares

                          24 horas de felicidade

                          Cairo

                          Não há paciência para tanto/a profeta da desgraça a denegrir a revolução egípcia, a tentar descobri-lhe os defeitos, a contar com a intervenção dos seus inimigos, a duvidar de tudo e de todos. Claro que muito em breve surgirão recuos, divisões, falhas, traições, erros, desvios, manobras, manipulações e não sei o quê mais. São as leis da História e nós até já passámos por uma experiência idêntica. Mas tentem ser felizes durante 24 horas só por verem um povo celebrar e ser feliz por 24 horas. E por a palavra democracia ser proclamada sem complexos ou adjectivos.

                            Apontamentos, Atualidade

                            Equívoco

                            equívoco

                            Vai por aí grande alarido por causa da moção de censura ao governo que o Bloco de Esquerda irá apresentar dentro de um mês, a 10 de Março. Não vou insistir no que outros já disseram sobre os seus incontornáveis efeitos: se ela for aprovada o país cairá de mão-beijada nas mãos do PSD de Coelho; se não o for, Sócrates e o seu PS ganharão um fôlego mais. Em ambos os casos tratar-se-á de um gesto arriscado e aparatoso que serve mais o circo do que o pão. Quer isto dizer, e é isto que me parece importante, que a direcção do Bloco, continuando a centrar a sua iniciativa nas cartadas parlamentares, se foca no acessório secundarizando o essencial. Isto é, aposta mais no ruído mediático à volta da sua posição formal do que na edificação de um movimento de massas capaz de fazer perceber ao governo, aos partidos do poder e a quem do lado de cá e de lá dos Pirenéus gere o nosso futuro, que há ira nas pessoas, que mora nelas a vontade de trocarem as voltas ao destino, e que não se deve brincar com estes sentimentos. Sem menosprezo da actividade parlamentar, parte fulcral da vida democrática, estamos numa fase em que o protesto e a construção social e cultural da alternativa são muito mais úteis e necessários do que uns quantos discursos de dedo em riste. Para a vida presente e futura dos cidadãos e até para o seu estado de espírito. O Bloco é um instrumento de esperança e não deve esbanjar esse capital.

                            Post-sciptum – Entretanto a direcção do BE esclareceu a sua posição sobre os objectivos da moção, apontando-a «contra a direita e contra quem governa com políticas de direita». É um redireccionamento positivo, mas as consequências práticas e a questão de fundo que este post levanta permanecem intocáveis.

                              Atualidade, Opinião

                              Isto quer dizer alguma coisa

                              Deolinda

                              Provavelmente estará tudo dito sobre «Parva que sou», dos Deolinda. Pró, contra e assim-assim. Eu sou pró porque há muita coisa contra a qual é preciso estar. Quem já não é, ou jamais foi, capaz de pensar as dinâmicas do protesto, ou de se indignar com o que vai mal e proclamá-lo sem rodeios, inventa argumentos para desqualificar a canção. Diz que «Parva que sou» tem uma estrutura pobre, simples, sem arranjos elaborados, por exemplo. Ah, pois tem, claro que tem, mas é aí que está em parte a origem da sua pujança e da exaltação que tem despertado. A arte pode ser complexa e ter uma dimensão subversora, como toda a gente sabe, mas em democracia uma canção de intervenção, que é aquilo que esta é, tem necessariamente de ser assim simples, límpida, «dizendo coisas» preto no branco como as diz um panfleto. Não pode ser murmurada. Precisa ser directa para agitar. Diz-se também, por exemplo, que é demagógica quando declara que «para ser escravo é preciso estudar». Como se isto traduzisse um apelo ao menosprezo do valor social do ensino. Só quem já não tem pinga de capacidade para perceber os caminhos da insegurança, ou vive fechado no seu mundinho tutelado, é incapaz de entender aquilo de mau que passa pela cabeça de quem entra nas universidades com o futuro já adiado sine die e o trabalho precário ou o desemprego no horizonte. Não estive no Coliseu do Porto e só ouvi «Parva que sou» através do YouTube. Mas há muito que não pressentia por cá uma cumplicidade tão grande entre a palavra cantada, o público que a envolve, e o mundo agitado e injusto que os aguarda lá fora. De certeza que isto quer dizer alguma coisa.

                                Atualidade, Música, Olhares