Arquivo de Categorias: Apontamentos

Cartola «coimbrinha»

A cartola foi um chapéu masculino de aba estreita e copa alta, usado durante décadas, na segunda metade do século XIX e inícios do seguinte, como um sinal de estatuto social e económico. Porém, cedo começou também a ser bastante caricaturada, seja pela propaganda anticapitalista, que nela via um símbolo da opressão, quer pelas formas de sátira social, que a chamavam de «chaminé» e nela viam, crescentemente, um sinal de estúpida sobranceria e uma marca de desigualdade tantas vezes de todo inadequada ao figurão, ou à figurinha, que a utilizava no parecer.

(mais…)
    Apontamentos, Atualidade, Coimbra, Olhares

    Direito à diferença e dever de partilha

    Tomo como princípio jamais comentar de forma pública declarações desta ou daquela personagem sem primeiramente as escutar/ler e as situar em contexto. Livro-me assim de cair em apriorismos, determinados pela simpatia ou pela desconfiança, e sobretudo de ser injusto, contribuindo ao mesmo tempo para a vaga, hoje crescente e avassaladora, de desinformação. Vem isto a propósito das declarações de Pedro Nuno Santos ao semanário Expresso, logo usadas, inclusivamente por militantes socialistas, para o acusar de «cedências ao Chega» na questão da imigração. Lido agora, finalmente, aquilo que o secretário-geral do PS disse, no meio de muitas outras coisas, nada tenho a questionar neste particular. Afirmar «Quem procura Portugal para viver e trabalhar tem de perceber que há uma partilha de um modo de vida, uma cultura que deve ser respeitada», no contexto, não exclui o respeito pela diversidade, apenas colocando esse respeito de ambos os lados do binómio no qual ela se põe. Só não vê isto quem por cegueira não quer, quem fala sem saber de quê ou quem considera que a diferença é um valor «em si», respeitável mesmo que contraria direitos básicos que são necessariamente partilha de todos.

      Apontamentos, Atualidade, Democracia, Direitos Humanos

      Não, não é «tudo igual»

      Bastou um dia de presidência Trump para começarem a ser revolvidos na América, de alto a baixo, os fundamentos do Estado de direito e das relações com o resto do mundo. Não é preciso mostrar aqui o rol das medidas, chegando uma consulta aos títulos sonantes dos jornais. Uma situação calamitosa que, ao mesmo tempo e infelizmente, desmascara quem, associado a uma franja estreita e bem identificada do nosso sistema político, dita «progressista», considera que por ali «é tudo igual», tudo fazendo para não distinguir as duas Américas, e os dois mundos, que estão abertamente em confronto. Mais, considera até, na sua cegueira sectária, que a atual situação «engana menos». Visível em certos blogues e em algumas páginas de redes sociais, é gente que dificilmente se encontra em condições de integrar a imprescindível frente mundial anti-Trump e anti-Musk, ou, na sua interpretação arcaica e rígida da história e do mundo atual, o decide fazer sem aliados fortes e do lado errado. Amarrados a uma verdade revelada ou à sua caricatura, não aprendem e não querem aprender.

        Apontamentos, Atualidade, Democracia, Olhares, Opinião

        Sobre a complexidade de tudo e de todos

        Após aquela fase da vida associada à adolescência e à juventude, em que, como quase todos nós, salvo os naturalmente fracos ou medrosos, produzi verdades e absolutos sobre certas pessoas e a propósito de determinadas ideias, rapidamente me habituei a aceitar e a conviver com a complexidade de todos e de tudo. Logo deixei de dividir o mundo entre bons e maus, entre o preto e o branco, e talvez por isso, tendo toda a vida sido politicamente de esquerda, cedo também passei a rejeitar formas de sectarismo e a generalizações que neste campo por vezes divide os vivos entre «os nossos» e «os outros». Uma escolha que tem até gerado incompreensões da parte de gente de quem me sinto politicamente próximo, mas a quem perturba toda a tendência para a relativização e a rejeição do dogma. Ainda que esta escolha jamais tenha, acredito, questionado a defesa das convicções mais fortes e profundas que fui construindo.

        (mais…)
          Apontamentos, Etc., Olhares, Opinião

          A mais bela idade e a lição de Nizan

          Em murais do Facebook, como lugares onde tantas vezes se exprimem de uma forma bastante livre, e muitas vezes sincera, gostos próprios, sentimentos pessoais ou notas de teor autobiográfico, encontro muitas referências ao caráter «maravilhoso» e único da época que correspondeu essencialmente aos anos de juventude de quem o exprime. Na boca destas pessoas, consoante a idade, os anos cinquenta foram fantásticos, os sessenta incríveis, os setenta formidáveis, os oitenta espetaculares, os noventa soberbos, mas cada um deles «único». A mim, que passei por eles todos e de todos retenho memórias boas, outras más e quase todas razoavelmente complexas, não vejo nada de tão absoluto, parecendo-me esse limitado foco bastante redutor e tantas vezes falso.

          (mais…)
            Apontamentos, Devaneios, Memória, Olhares

            Femme Fatale

            Há sensivelmente 17 anos, escrevi neste blogue um post que, lido hoje, de algum modo denuncia não apenas a transformação da minha leitura sobre o tema que aborda, mas também uma forma de pensar a masculinidade que vivi, como milhões de outros homens, num contexto cultural geracional que, podendo hoje ser reescrito, deve ser compreendido e não liminarmente criminalizado, como por aí está a suceder.

            Eis o parágrafo:

            (mais…)
              Apontamentos, Artes, Etc., Olhares

              Olhares sobre a Síria

              Existem muitas dúvidas sobre o que acontecerá de seguida na Síria, com o país ainda a permanecer a manta de retalhos que já era sob Al-Assad. Não é difícil prever uma situação caótica, como a que ocorreu no Iraque e na Líbia. E pouco se espera de alguns setores até agora rebeldes. Para já, todavia, compreende-se o júbilo dos refugiados sírios no exílio, forçados a fugir, aos milhões, pelas forças governamentais ajudadas pela Rússia e pelo Irão. E só pode ser positiva a libertação das dezenas de milhares de presos políticos, saídos das prisões mais inumanas que é possível conhecer. Não reconhecer isto, como já pode ler-se por aí, em especial nas redes sociais, não diz grande coisa de quem o faz. Sobre aquilo que virá, veremos na altura própria.

                Acontecimentos, Apontamentos, Atualidade

                A sua escolha

                Ao longo dos anos fui conhecendo direta ou indiretamente, e fui também acompanhando na sua atividade, muitas pessoas que dispunham daquilo a que já alguém chamou «um bom capital de prestígio e de poder». Muitas, colocadas em lugares de decisão a diferentes níveis, desfrutavam deles exibindo tiques de autoritarismo e arrogância, desinteressando-se por quem não lhes servisse para subir a sua colina e depois para manter-se lá no topo. E ali se foram conservando até que o tempo – o grande escultor do qual nos falou Marguerite Yourcenar no romance – fez o seu incessante trabalho, levando-as a entrar numa etapa da vida em que, num repente, perderam seguidores e bajuladores, supostos amigos até ali sempre de sorriso pronto, palmada nas costas e vénia à medida. Vejo-as hoje, tristonhas e curvadas, já sem préstimo para quem delas se servia, passarem na rua sozinhas, sem voz e sem séquito, à procura de quem lhes possa ainda estender a mão ou fazer um aceno de reconhecimento. Não teria de ser assim, mas foi a sua escolha.

                  Apontamentos, Etc., Olhares

                  1º de Dezembro: a «revolução» que o não foi

                  Durante o Estado Novo, associado ao esforço nacionalista de aproveitamento da História pátria – neste caso, vincando um forte sentimento anticastelhano identitário que ainda vai moldando algumas mentes -, a data do 1º de Dezembro era lembrada pelas autoridades e no sistema educativo como uma «Revolução». Na realidade, tratou-se de um golpe de Estado palaciano, associado a um combate dinástico e depois a uma bem dura e custosa guerra que durou quase três décadas, prolongando-se entre 1640 e 1668. No pós-25 de Abril, durante algum tempo a extrema-direita a que tínhamos direito ainda a celebrava o 1ª de Dezembro como data sua, sendo notados, embora apenas como curiosidade, os desfiles Avenida da Liberdade abaixo organizados pela antiga jornalista Vera Lagoa. A extrema-direita de hoje, que fala em nome da História sem a conhecer, ainda evoca a data como sua. Alguns monárquicos, lembram-se com ela que ainda existem. E o cidadão comum apenas sabe que é feriado, este ano, para azar do descanso, tendo calhado a um domingo.

                    Apontamentos, História, Olhares

                    O beabá do 25 de novembro e a direita

                    O aproveitamento simbólico, pela direita e pela extrema-direita, do 25 de novembro de 1975, a data que de alguma forma fechou a fase mais dinâmica do processo revolucionário de 1974-75, só pode ser suscitado pela ignorância da história, por puro oportunismo, ou, mais provavelmente, por ambas as coisas. Por ignorância porque nem sabem, ou nem querem saber, que os vencedores dos acontecimentos que tiveram lugar nessa data foram, do ponto de vista político, os setores moderados do MFA e o Partido Socialista. Por oportunismo porque tudo lhes serve para, no seu cinquentenário, minimizarem o significado e o impacto dos 25 de Abril, que na verdade desvalorizam, quando não odeiam visceralmente e desde há muito. Vão, desta forma, celebrar, como data sua, um acontecimento para o qual não meteram prego nem estopa. Dele se aproveitando agora, após cinquenta anos a ganharem coragem para o fazer.

                      Apontamentos, Democracia, História, Olhares

                      Pensar, agir, mobilizar

                      A par das múltiplas tentativas de análise que tentam interpretar a vitória da direita e da extrema-direita populistas nas eleições norte-americanas, a opinião política tem também procurado olhar os novos e ainda mais preocupantes dilemas que a partir de agora se colocam à Europa, ao mundo e, de uma forma geral, à vida das democracias. Todavia, tendo em conta a catástrofe ocorrida e as condições nas quais ela se deu, começa a ser cada vez mais urgente, seja onde for, e por cá também, mais do que queixumes e previsões do apocalipse, o projetar de olhares plurais e cuidados sobre o modo como as forças da democracia e do progresso devem encarar a sua atividade próxima futura. Perante o inimigo colossal que representam as múltiplas forças autoritárias e imperiais, e as formas por estas utilizadas para escravizar os povos e as consciências das pessoas comuns, cada vez é mais importante pensar estratégias de aproximação política, agir no crucial campo da cultura e mobilizar alternativas realistas.

                        Apontamentos, Democracia, Olhares

                        Israel, os EUA e os problemas de visão

                        É totalmente incompreensível alguém coerente e simultaneamente democrata e de esquerda não preferir, nas eleições presidenciais nos EUA deste dia 5, que Kamala Harris derrote Trump apenas porque ela não tem a posição sobre Israel e a Palestina que gostariam que tivesse (e eu também provavelmente gostaria). Vamos ser claros: Kamala, na senda de Joe Biden, não tem uma posição coerente e clara sobre o tema, condenando abertamente Israel e afirmando claramente que defende a independência da Palestina. Mas mostra uma abertura ao diálogo sobre o mesmo, e uma condenação formal da política de genocídio, que Trump, já apoiado formalmente por Netanyahu, de todo exclui, preferindo estar do lado dos falcões israelitas. Além disso, torna-se evidente que, se a candidata democrata exibisse uma posição inflexível de imediata rutura com Tel Aviv, nem precisaria ir a votos, pois seria esmagada nas urnas pelos eleitores. Custa muito compreendê-lo? Fazer política com alcance e visão jamais é mover peças num simples tabuleiro de jogo de damas.

                          Apontamentos, Atualidade, Democracia, Olhares

                          Não se desculpa, nem se ignora

                          Reparei há dias, a acompanhar uma fotografia que circulou profusamente e mostrava a real dimensão, pequena de cerca de cem pessoas, da manifestação em favor de uma abstrata «defesa da polícia» convocada pelo Chega junto do parlamento, num comentário quase eufórico a proclamar «afinal são tão poucos!». Esquece quem o fez, esquecemos muitos de nós quando observamos estas aparentes demonstrações de insignificância, que uma das caraterísticas da extrema-direita é ser alimentada, em boa parte, por gente com medo de tudo, cheia de rancor por isto ou por aquilo, habituada a calar e a levar, sempre pela penumbra, a água ao seu moinho egoísta. Gente que não dá o rosto ou se manifesta.

                          (mais…)
                            Apontamentos, Democracia, Olhares

                            O Chega na fronteira do crime

                            Para além das divergências políticas e ideológicas que, entre nós, o separam dos restantes partidos, sejam os de esquerda ou os da direita – embora os últimos ensaiem algumas aproximações oportunistas -, o Chega, maior partido da extrema-direita portuguesa, possui duas marcas que claramente o separam das demais forças políticas. A primeira consiste na defesa declarada e sem máscara do racismo, da xenofobia, do Estado autoritário, da homofobia, da nostalgia do Império e dos valores da ditadura derrubada a 25 de Abril. Inclui também a defesa da violência social contra minorias, pobres não-obedientes e imigrantes, e a rejeição da democracia, usada apenas em proveito próprio.

                            (mais…)
                              Apontamentos, Democracia, Olhares

                              Má educação e ar puro

                              Começou por acontecer com alguns jornalistas que me contactavam para pedir informações relacionadas com certos temas ou situações. Em regra, se estivesse ao meu alcance e não violasse princípios de ética dos quais não abdico, prontamente respondia. Por vezes, informava que não tinha forma de responder, disponibilizando-me no entanto para outra altura. Na larga e crescente maioria dos casos, nem um obrigado. Depois, começou a ocorrer com colegas organizadores de eventos ou publicações académicas, que perguntavam se estava disponível para colaborar. Quando não podia mesmo, ou não me interessava, ou não me considerava a pessoa certa, dava conta da impossibilidade, sempre de forma educada e cordial, agradecendo e ficando ao dispor. Uma palavra de apreço pela resposta, nem vê-la. Tornou-se um hábito, num universo ainda há não muitos anos maioritariamente pautado pela afabilidade e a ajuda mútua, o império do interesse imediato determinado pela «carreira» sobre o valor da relação pessoal. Face a esta feia e tristonha realidade, há anos que comecei a fazer uma lista negra de pessoas que passaram por este crivo, a quem por certo não mais responderei positivamente. Tenho bastante cuidado com a pureza do ar que respiro.

                                Apontamentos, Etc., Olhares

                                O partido da triste figura

                                Tenho escutado isto menos, mas durante décadas o Partido Ecologista Os Verdes foi entre nós sistematicamente apelidado de partido-melancia. Como esta, verde por fora e vermelho por dentro. Na verdade, tratou-se sempre, praticamente desde a sua fundação em 1982, e mais acentuadamente nos últimos anos, de um agrupamento satélite criatura do PCP, com a utilidade prática de agregar uns poucos votos de pessoas sensíveis à temática ecologista – pessoas com dificuldade em reparar que existem partidos, como o Livre, o PAN ou mesmo o BE, mais consequentes e ativos neste domínio – e sobretudo de justificar a formação de uma frente eleitoral designada «unitária», colocando nos boletins eleitorais, ao lado da foice e do martelo, um belíssimo girassol estilizado.

                                (mais…)
                                  Apontamentos, Atualidade, Democracia, Olhares

                                  O 7 de outubro

                                  A 7 de outubro, quando se comemora o primeiro dia da era judaica, iniciada a 3761 AEC, completou-se um ano sobre o ataque do Hamas, lançado principalmente sobre alguns kibbutzim próximos da faixa de Gaza, aldeias comuns limítrofes e um festival de música para jovens, dele resultando de imediato o assassinato de cerca de mil israelitas, o rapto de perto de 250, muitos idosos e crianças, a violação de dezenas de mulheres, e um grande número de civis feridos. Teresa de Sousa chama-lhe «o maior massacre de judeus desde o Holocausto».

                                  (mais…)
                                    Apontamentos, Atualidade, Olhares

                                    Os incêndios, os incendiários e as televisões

                                    Por razões sobretudo pessoais sou muito sensível ao drama anual dos incêndios florestais de verão. Nascido e criado na «Zona do Pinhal Interior Norte» – área que inclui 14 concelhos dos distritos de Coimbra e Leiria – recordo desde sempre o panorama regular destas calamidades e o medo que elas provocavam. Aconteceu mesmo, por duas vezes, ajudar no combate ao fogo, tendo numa delas chegado, juntamente com um pequeno grupo de populares, a ficar cercado pelas chamas. Uma memória inesquecível, como o é também a de exaustão absoluta, que nunca mais voltei a sentir, sentida após dois dias e duas noites sem dormir a combater o fogo.

                                    (mais…)
                                      Apontamentos, Memória, Olhares, Opinião