Arquivo de Categorias: Heterodoxias

Um anticamuseanismo ciclicamente retomado

Através de um artigo que me foi enviado, acabo de tomar conhecimento da edição em França, ocorrida em setembro do último ano, do livro Oublier Camus (Esquecer Camus), da autoria de Olivier Gloag, académico francês que ensina em Ashville, EUA, na Universidade da Carolina do Norte. A sua preocupação central é denegrir a personalidade e a obra de Albert Camus (1913-1960), um dos autores do século XX mais lidos em todo o mundo, e também um daqueles que, pelo seu humanismo e preocupação com a dimensão ética da política, maior e mais duradoura influência tem mantido ao longo do tempo, incluindo até hoje, mais de seis décadas transcorridas após a sua bem trágica e prematura morte.

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    Artes, Biografias, Heterodoxias, Leituras, Opinião

    A grande arte do aforismo

    «A verdadeira eloquência consiste em dizer tudo aquilo que é preciso,
    e não em dizer seja lá o que for.» (La Rochefoucauld, 1613-1680)

    Insisto na declaração de amor pela grande arte do aforismo. Vindo do grego ἀφορισμός, «aphorismós», que significa «definição breve» ou «sentença», o termo traduz essencialmente a enunciação sucinta de um pensamento de natureza moral. A sua brevidade, todavia, pode ser enganadora a respeito do seu valor. Na verdade, ela articula reflexão, saber e experiência num todo em que determinados aspetos da vida do indivíduo ou da coletividade emergem sob a forma de mensagem de uma humanidade e de uma profundidade intemporais. Parecendo semelhante ao adágio, vai mais longe que este pois apela mais ao conhecimento, à sabedoria transmitida, que à simples evidência. Também não emerge como mera intuição, como «achismo» mais ou menos repentista, sendo sempre resultado, por parte de quem o produz, de um trabalho de amadurecimento. «Aforismistas» essenciais foram Erasmo de Roterdão, provavelmente o criador do género, Rabelais, La Rochefoucauld, Voltaire, Benjamim Franklin, Flaubert, Nietzsche, Kafka, Karl Kraus, Sartre ou Adorno, mas os meus favoritos são Montaigne, Emil Cioran e, é claro, Camus. Nessas curtas linhas plenas de sensibilidade e sabedoria que nos foram legando tenho encontrado o que de mais essencial pude aprender.

      Apontamentos, Heterodoxias, Olhares, Recortes

      Esquerda-direita e outras dicotomias

      É razoavelmente consensual que a clivagem política entre os conceitos de esquerda e de direita nasceu com o sucedido naquele salão de Versalhes onde, a 28 de agosto de 1789, em plena Revolução Francesa, se reuniu a Assembleia Nacional Constituinte. Ali se confrontaram os partidários de uma solução política que ainda oferecia ao rei da França um razoável poder de decisão, e os que defendiam que este mantivesse um papel apenas simbólico. Na altura de decidir, os primeiros juntaram-se do lado direito da tribuna, enquanto os segundos ficaram do lado esquerdo, assim se separando os que queriam uma monarquia constitucional e aqueles que já anteviam a república. Nesse dia, a «esquerda» venceu por 673 votos, contra os 325 da «direita». Sabe-se como evoluíram os acontecimentos e de que modo o final da disputa se revelou pouco amável para Luís XVI.

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        Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, Ensaio, Heterodoxias, Opinião

        Paul Nizan: apagado e reencontrado

        Desde o ano da sua morte em 1940, ocorrida em combate durante a terrível batalha de Dunquerque, quando o exército aliado, composto essencialmente por franceses e ingleses, sucumbiu completamente perante o avanço alemão, até à reeedição em 1960 do romance Aden Arabie, ainda a sua obra mais conhecida, Paul Nizan (1905-1940) permaneceu para uma parte da esquerda como mais um renegado. O pecado de Nizan foi – como aconteceu com outros intelectuais comunistas, que no pacto de não-agressão germano-soviético de 1939 viram, com razão, uma inaceitável cedência ao nazismo – ter-se oposto à vontade de Estaline, o que junto dos partidos comunistas era então inaceitável. Como resultado, após ter sido durante largos anos um escritor lido e prestigiado, viu, por iniciativa do PCF e de muitos dos seus simpatizantes, o seu nome desaparecer totalmente dos jornais e mesmo das livrarias.

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          Biografias, Democracia, Heterodoxias, Memória, Olhares

          Entre o passado e o futuro

          Uma destas noites sonhei que voltara ao passado, mas que o fizera de um modo calculista. Fora lá roubar, para usar nestes dias sombrios de inverno, aquilo que ele tinha de melhor. Não a juventude necessariamente insensata ou a energia desmedida, que recordo sem grande nostalgia e para as quais, à medida que as fui perdendo, fui achando alternativas. Também não fui lá buscar as memórias, mesmo as melhores, pois sei que elas têm sempre a forma de fábulas que embelezamos. Afinal, nesse passado fui tão feliz e tão infeliz quanto o sou hoje, ainda que em escalas e por motivos diversos. Naquele «sonho adormecido» – usando o termo cunhado pelo filósofo Ernst Bloch – fui recuperar outra coisa, que permanece perpétua, transcendendo o curto tempo de vida que sempre nos cabe. Falo da absoluta crença na possibilidade de construir um mundo melhor, e também da vontade de transformar a realidade, sabendo que nelas se misturam, em partes desiguais, a imaginação da utopia e a imersão nessa dose de realidade que sempre a confronta. (mais…)

            Heterodoxias, História, Olhares, Opinião

            O outro negacionismo

            Negar ou desculpar, como tem vindo a acontecer nos últimos tempos, os crimes numerosos, continuados e em muitos casos brutais do estalinismo, o original e as suas variantes, pode ser feito com intenções diversas daquelas invocadas pelos que negam os horrores do nazismo e dos vários fascismos, mas tem, no plano político e no campo da ética, rigorosamente o mesmo valor. Ainda que as razões de cada um dos dois modelos centralistas e repressivos do século passado tenham sido diferentes, e, sem dúvida, em alguns casos foram até opostas, ambos assentaram na consideração da vida humana como algo de instrumental e descartável, colocado sempre na dependência dos seus projetos de engenharia social e de manipulação do tempo histórico. (mais…)

              Democracia, Direitos Humanos, Heterodoxias, História, Memória

              A fera amansada

              Slavoj Žižek em entrevista à Babelia deste sábado.

              P. ¿De verdad no quiere tomar nada? Jela Krecic, periodista treintañera, y tercera esposa de Zizek, se asoma un instante por el salón del apartamento, amplio y agradable, pero sin lujos especiales. Desde el patio ajardinado llega el canto de los mirlos. Este es el santuario de Zizek.
              R. Aquí me gusta pasar el tiempo, trabajando en el ordenador, viendo películas [en un enorme televisor con pantalla de plasma], preparando nuevos proyectos. Con Sophie Fiennes voy a hacer la tercera guía pervertida, esta vez sobre el amor. Algo muy tradicional. El amor es percibido como patológico si es muy intenso. Hoy lo normal es ser promiscuo. Hasta tal punto estamos obsesionados con la idea moderna de hacer cosas, de ser dinámicos. Pero yo soy un romántico.
              P. ¿No le pesa a veces cargar con su personaje de filósofo adorado por las masas?
              R. No, porque soy un solitario. La gente cree que me gusta estar en público, pero mi momento más feliz es cuando acaba la conferencia. Aquí estoy en conflicto con todo el mundo, lo que me gusta es estar en casa, con mi mujer, dos o tres amigos. ¿Conoce usted Islandia? ¡Oh! Es el país donde querría vivir. No parece de este mundo, no hay árboles, ni hierba siquiera, es como otro planeta, como si Dios no hubiera terminado allí la creación.

                Apontamentos, Biografias, Heterodoxias

                Uma clarividência inaceitável

                Um artigo de Antonio Muñoz Molina publicado no Babelia – El País de 12 de Novembro de 2013. A propósito das apropriações redutoras de Albert Camus, levadas a cabo no ano do seu centenário, e da resistência que as suas palavras levantam a esse processo.

                Una claridad inaceptable

                Antonio Muñoz Molina

                Canonizar a Camus en la ocasión oficiosa de su centenario es seguir empeñándose en lo que ni sus peores enemigos lograron cuando estaba vivo: domesticarlo, o en su defecto sepultarlo en la irrelevancia, o peor todavía, en el malentendido. Más de medio siglo después de su muerte, cuando las causas que más le importaron —la guerra de la independencia de Argelia, la revolución antisoviética en Hungría— ya están olvidadas, cuesta poco seleccionar unas cuantas frases suyas que suenen bien y ponerlas al pie de una de sus fotografías en blanco y negro para lograr un Camus confortable, que nos venga bien para legitimar nuestras posiciones o nuestros prejuicios. Seguro en su lugar del pasado, inmóvil en sus imágenes como un santo en una hornacina, leído por encima o citado de oídas, y desde luego desprendido de las controversias feroces que lo angustiaban y lo estimulaban, Camus queda solemne, indiscutible, irrelevante en el fondo, un escritor con madera de galán del tiempo en que los intelectuales salían en las fotos con un cigarrillo en la boca, fotogénico, eso sí, más fotogénico que ningún otro, ideal para pósters de librerías y portadas de suplementos literarios. (mais…)

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                  Solidão e felicidade em Camus

                  «Não sou um filósofo, só sei falar daquilo que vivi», escreveu o autor de A Peste no terceiro volume dos Cahiers. A afirmação condensa um dos dois argumentos nucleares de A Felicidade em Albert Camus, de Marcello Duarte Mathias, primeiramente editado em 1975, do qual saiu há pouco tempo uma 3ª edição revista, acrescida de um prefácio atualizado e de três novos textos. Na verdade, e tal como se empenha em demonstrar o escritor e embaixador, «raros casos terá havido de uma tão completa osmose entre um autor e uma obra e de uma tão íntima associação entre os dois e o seu tempo». Se a leitura deste ensaio explica de um modo inequívoco essa interligação, mantida por Camus em tudo aquilo que escreveu, mostra também que ela teve consequências «para o bem e para o mal, como se diz». De facto, a imposição da coerência entre a vida e a obra, forçando atitudes de independência, determinou –sobretudo no confronto com os rígidos ambientes da esquerda filo-marxista do pós-guerra que o escritor frequentou – polémicas e ruturas dolorosas com aqueles com quem percorrera parte importante do seu caminho literário, filosófico e político. O resultado foi uma proscrição que só muitos anos após a sua morte começou a ser anulada. O obituário saído no Times em janeiro de 1960 intitulava-se com propriedade «A man who walked alone». (mais…)

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                    Arsène, ladrão e cavalheiro

                    Arsène Lupin

                    Jamais possuiu corpo físico, dado ter preenchido a sua inusitada vida como herói dos romances de Maurice Lablanc (1864-1941). Mas Arsène Lupin, fora-da-lei com lugar cativo nos camarotes da Opéra, na Wagons-Lits ou nos melhores hotéis de Paris, Londres e Veneza, teve uma existência intensa. Elegante e sedutor, adepto do vegetarianismo (e no princípio do século passado!), dos banhos turcos e dos pijamas em seda, amigo de Diaghilev, Poincaré e Caruso, evidenciou sempre um sentido de humor que associava sem peso ou medida ao lado pueril que tem sempre o desafio. A inteligência, a destreza e a coragem, essas usava-as para perturbar a ordem da distribuição da propriedade, espoliando os ricos para ajudar aqueles que considerava «perseguidos e inocentes». Tem, por isso, um lugar reservado no estranho panteão dos anarquistas aristocráticos. E também por isso conquistou vida própria.

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                      Passado sem futuro

                      Os invernos poderiam ter sido menos rigorosos, menos tristes as viagens de comboio, menos previsíveis os desfiles do Maio. Teríamos crescido a cruzar pacificamente as cidades dos irmãos Vesnine, a viver com os quadros de Altman, os poemas de Tsvetaeva e de Akhmatova, os compassos menos previsíveis de Chostakovitch. Aragon não teria cantado o cavalo metálico sob as chaminés poluentes de Magnetogorsk. Barbusse teria permanecido um desconhecido para os nossos avós. Eisenstein teria filmado grandes planos de gargalhadas e de mãos usadas em carícias. Ter-se-ia fundido menos bronze para robustecer as estátuas. Não teriam ressoado gritos nocturnos pelos corredores da Lubianka. Teria corrido menos gelo pelas almas e ter-se-ia notado mais ruído pelas ruas. E provavelmente o socialismo seria hoje uma expressão de humanidade tão calorosa e natural quanto o amor, a felicidade ou a compaixão. A desigualdade e a opressão, essas seriam palavras raras, apenas reconhecíveis em velhos romances e compêndios de História antiga. De facto, o futuro atrasou-se um pouco. Mas prometeu que virá.

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                        A voz dos futuros

                        utopia

                        Em entrevista publicada no número de Julho-Agosto do Magazine Littéraire, o professor e filósofo francês Miguel Abensour chama a atenção para dois entendimentos negativos, tão enganadores quanto limitativos, que a propósito da ideia de utopia a partir dos anos oitenta se tornaram voz corrente tanto no campo da teoria política quanto junto da opinião pública. Abensour afirma ali que «é preciso colocar a utopia do lado do despertar, e não da ilusão». Neste sentido, tornado óbvio para quem conheça a história da ideia, não poderemos continuar a identificá-la com o logro e com a derrota, mas antes com a possibilidade de futuros plausíveis, que só a falta de imaginação e de coragem pode avaliar como irrealizáveis. Ao mesmo tempo, Abensour sublinha que «não foi a utopia a lançar as bases do totalitarismo, mas a dominação totalitária que fez o funeral da utopia», contrariando o juízo, também ele corrente, segundo o qual foi o excesso de esperança, a imaginação infinita e ingénua de paraísos construídos na Terra, a legitimar regimes que durante o século passado governaram através do terror e da ordem do silêncio. Duas afirmações, aparentemente elementares, que ao serem relembradas ajudam a reavaliar o papel criativo e libertador do exercício utópico enquanto método da reflexão política, instrumento programático e voz de todos os futuros.

                          Heterodoxias, Olhares

                          Papéis Roubados #12

                          Eduardo Lourenço

                          Numa altura em que a livre e necessária contestação do único, a afirmação indispensável da divergência que ultrapassa a fronteira do consenso, a recusa da escolha entre dois únicos caminhos como gesto imperativo, volta a ser objeto de cerco no território da velha Europa – trocada pelo triunfo passageiro da normalização que encontra no que sai do carreiro, um escolho a remover, um vírus a eliminar – regresso ao ainda (ou quase) juvenil Eduardo Lourenço, daquela Heterodoxia I publicada pela Coimbra Editora no distante ano de 1949. Nele se destaca a necessidade e a grandeza, mas também o incontornável drama, do esforço de pensar e de agir em desacordo com os objetivos e a retórica do modelo de pensamento que se compraz com a sua própria imutabilidade.

                          Toda a vantagem parece estar do lado da ortodoxia em si mesma, da ideia de ortodoxia e não, claro está, desta ou daquela ortodoxia particular. A vida é, nas suas manifestações primordiais, afirmação, ato englobando uma série de atos, cada ser subordinado à lei dum ritmo, desobedecendo ao qual perecerá. Não quer isto dizer que a essência da individualidade é ortodoxia, caminho direito? Como a história é uma luta de individualidades (uni-individuais ou grupais), a luta é sempre entre ortodoxias.

                          Daí, segundo os ortodoxos, a necessidade inevitável da escolha. Os que se recusam à escolha, os eternos descobridores dum terceiro caminho que não existe em parte alguma (segundo as ortodoxias), os heterodoxos absolutos, devem ser destruídos quando o combate chegar. Assim pensava já o velho Sólon, a sabedoria laica de Atenas. Devem ser destruídos agora mesmo, que o combate, a luta pela verdade, está travada desde sempre. Não há lugar para os heterodoxos. Eles são incomensuráveis com Deus, com a Pátria, com o grupo, com a família, com o amor, com eles próprios. Abandonemo-los então à sua divisão tão amada e que pereçam, pois são o reino dividido em si mesmo de que fala o Evangelho. Inimigos do género humano.

                          Assim pensava Juliano dos cristãos e S. Domingos dos albigenses. Assim pensava Marx dos burgueses e os burgueses de Marx. Assim pensa Churchill dos comunistas e os comunistas de Churchill. Assim pensa todo o homem que possui certezas absolutas de outro homem que as nega.

                          (…)

                          A heterodoxia é a humildade do espírito, o respeito simples em face da divindade inesgotável do verdadeiro. Resistamos à ilusão de supor que tudo pode ser inundado de luz. Deixaríamos de ver.

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                            João Martins Pereira | colóquio-evocação

                            JMP na Alemanha, 1958
                            Na Alemanha, em 1958

                            Para os amigos, os seus leitores, os colegas de profissão e os companheiros das muitas causas com as quais se foi envolvendo, João Martins Pereira (1932-2008) permanece como uma referência da oposição de esquerda ao Estado Novo, da resistência às agressões do capitalismo e, já em plena democracia, da crítica aguda e inteligente à política oportunista e fulanizada. Engenheiro de formação e de profissão, ensaísta atento, governante efémero, jornalista acidental, escritor de causas, estudioso da história do capitalismo português e de economia industrial, foi também um independente obstinado, um marxista heterodoxo, um sartreano radical.  E sempre um pensador inconformista, empenhado numa intervenção pública que entendia como igualitária e democrática.

                            É deste português exemplar, e dos temas que o preocuparam e com os quais persistentemente se envolveu – muitos deles confluindo com o nosso presente –, que tratará o Colóquio-Evocação «João Martins Pereira e o seu, nosso tempo», a ter lugar nos dias 25 e 26 de Novembro, nesta sexta-feira e neste sábado, no Auditório do Picoas Plaza, em Lisboa. A organização é do Centro de Estudos Sociais e de Centro de Documentação 25 de Abril e integrará uma pequena mas significativa exposição. Pode consultar aqui o programa completo e a lista dos intervenientes. E recolher um flyer para divulgar ou imprimir. Pode ainda ler a partir daqui dois posts saídos neste blogue há cerca de três anos.

                              Apontamentos, Heterodoxias, Oficina

                              Longe do Paraíso

                              Orwell

                              Publicado em 1933, Down and Out in Paris and London (Na Penúria em Paris e em Londres, em tradução frágil que se tornou «norma») é um pungente testemunho da experiência da pobreza, dos seus efeitos sobre os comportamentos e da própria consciência individual do ser-se pobre. A vivência do desamparo não resultou em Orwell, filho de um country gentleman de Dorset e de uma herdeira do Conde de Westmorland, da imposição das circunstâncias. Foi à sua procura porque queria conhecê-la, buscou-a pois «queria viver entre os oprimidos, estar no meio deles», porque pretendia partilhar, como escritor mas também como militante convicto da causa do socialismo, das condições de existência da maioria dos humanos. A sua percepção de determinados factores associados à condição do indigente – o tédio da existência degradante, a ausência intensamente depressiva de uma perspectiva de futuro, a despersonalização e o individualismo, a violência usada como instrumento de sobrevivência ou até como vestígio de dignidade – jamais deixou de ter a marca inerente à condição social e intelectual que o escritor detinha, mas nem por isso foi menos perturbante, funcionando, a par da experiência colonial na Birmânia, como factor determinante na construção da sua consciência política e do modo de viver que escolheu.

                              Neste relato circunstanciado e dorido sobressai então, por detrás da miséria humana mais extrema, a decisiva vertente solidária. Deixou gravado um momento de epifania, lembra o seu biógrafo John Newsinger, quando descreveu como em Paris, um certo dia, ajudou um vendedor ambulante a endireitar uma carroça que se havia virado em plena rua. «Obrigado, companheiro», agradeceu-lhe o vendedor com um sorriso. «Ninguém ainda me chamara assim “companheiro” em toda a minha vida – era o efeito das roupas a manifestar-se já», escreveria, falando dos efeitos sociais produzidos pelo seu próprio aspecto descomposto e exaurido. Por detrás do egoísmo imposto pela luta diária pela sobrevivência, encontrou assim um princípio de solidariedade que unia os excluídos, no qual jamais deixou de acreditar e pelo qual continuaria sempre a bater-se, mesmo quando, já perto do final de uma vida curta, se aproximou de um partido então já institucional como o Labour, ainda que o tenha feito junto da ala mais à esquerda. (mais…)

                                Heterodoxias

                                Camus fotográfico

                                Camus_avant

                                Tanto quanto a obra escrita, a projecção visual da presença física de Albert Camus incorporou sempre o contraste entre o lado diurno, solar, e um outro, mais reservado e taciturno. As muitas fotografias que dele ficaram, o rastro que sobrou das suas aparições públicas, constantes apesar de um desejo reiterado de privacidade, mostram também essa dupla face, que transparece ainda no modo como os outros – os que o admiraram, muitos, e os que o odiaram, muitos também – se foram relacionando com os dois rostos.

                                Nos anos 40, o escritor surgia refulgente, a good looking guy com êxito entre as mulheres, uma versão melhorada de Humphrey Bogart como se lhe refere o biógrafo David Sherman, cuja silhueta sóbria funcionava como protótipo do intelectual combatente. Não muda: sobretudo impecável, fato de bom corte, camisa clara, gravata, os cabelos puxados para trás, por vezes um cigarro Gauloise. Em A Queda, Clamance, o protagonista, declara o charme como «a forma de obter uma resposta sem ter colocado nenhuma questão clara», insistindo no modo como a exibição da harmonia, do «autodomínio sem esforço», fazia com que as pessoas que o olhavam «confessassem, por vezes, que tal as ajudava a viver». É este lado, solar mas tranquilo, que Camus evoca em O Verão: «Quando morava em Argel, suportava o inverno pois sabia que numa noite, numa certa noite pura e fria de Fevereiro, as amendoeiras do vale dos Cônsules se cobririam de flores». A tranquilidade manifesta nas fotografias não é porém esforço de poseur, como ocorreria com muitos dos da geração que nele decalcou atitudes, mas antes traço de uma personalidade capaz de fazer coincidir a disposição reflexiva com a energia activa e militante, vista pelo escritor como resultado da sua origem mediterrânica.

                                Já a reverberação de um semblante sombrio, muitas vezes desolado, começará a acentuar-se após a publicação, em 1951, de O Homem Revoltado, determinante para a ruptura com Sartre e com intelectuais de uma esquerda que jamais deixou de ver como sua. Muitos, especialmente os próximos do PCF, cortaram relações com ele e passaram a hostilizá-lo sem rodeios por não lhe perdoarem a concepção ética do acto de rebelião, contrária à subordinação do indivíduo ao colectivo. O isolamento – apesar do êxito público de algumas peças, apesar do reconhecimento trazido em 1957 pela atribuição do Nobel – surge acentuado, visível, nas fotografias de uma época que não mais lhe devolveu a energia e a esperança dos anos que haviam ficado para trás. Em Albert Camus – Solitaire et Solidaire, uma belíssima fotobiografia preparada com comovente carinho pela filha Catherine e editada em 2009, esta conta um episódio ocorrido nos últimos anos. Um dia, adolescente, encontrou o pai sentado num sofá de casa com o rosto fechado, aparentando desalento, e perguntou-lhe: «Papá, estás triste?». Camus respondeu: «Não estou triste, Catherine, estou apenas só.» As fotografias dos anos finais mostram-nos repetidamente este lado marcado pelo desconsolo. E todavia, olhado em perspectiva, o álbum da sua vida não revela um escritor recolhido, fechado na sua biblioteca, mas antes um homem em movimento que caminha e avança, razoavelmente seguro do percurso que escolheu.

                                Publicado na revista LER de Fevereiro de 2011.

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