A grande ilusão

comunismo

A historiografia das últimas duas décadas integra um grande número de obras e de autores que se ocupam com o trajecto do comunismo enquanto projecto e experiência, transmitindo uma multiplicidade de abordagens apenas possível devido aos acontecimentos súbitos e inesperados que antecederam a queda do Muro de Berlim e que esta precipitou. A abertura dos arquivos antes reservados dos antigos «países socialistas» e o fim dos medos impostos pela Guerra Fria possibilitaram estudos audaciosos e com uma forte carga de novidade. Muitos investigadores centraram então no tema o seu trabalho, desenvolvendo projectos que em poucos anos deram excelentes resultados. Não é este, todavia, o caso do historiador e cientista político britânico Archie Brown, que há mais de 40 anos, muito antes da vaga irromper, se dedicou a estudar o comunismo e as experiências de poder moldadas no exemplo da Revolução de Outubro. Ascensão e Queda do Comunismo é assim uma obra de síntese ligada a muitos anos de pesquisa de arquivo, trabalho de campo e reflexão. Desta combinação resulta aquilo que noutras condições seria difícil obter: um trabalho sóbrio e conciso que nem por isso deixa de informar, de oferecer novidade e de aliciar o leitor.

Temos pela frente uma completa história do comunismo enquanto desígnio vital na história do século XX, mas podemos observar também as condições do seu surgimento e declínio. A viagem distribui-se por cinco jornadas com um suporte cronológico: origem e desenvolvimento fundado nas intervenções de Marx e de Lenine, continuando até ao momento em que a União Soviética deixou de ser exemplo único; alastramento do modelo comunista entre o termo da Segunda Guerra Mundial e a morte de Estaline; fase de expansão através do chamado «Terceiro Mundo» e emergência do conflito sino-soviético; período de pressão, correspondendo à viragem para os anos 80, quando as contradições no interior do bloco socialista se agudizaram; fase final de desagregação e queda dos regimes. No entanto, o livro não se restringe a um levantamento sequencial das experiências de tomada e conservação do poder. É verdade que tem em consideração a história, mais longa e decisiva, da União Soviética, bem como o trajecto dos Estados que partilharam o seu destino, com uma atenção particular para a China, dado o seu prolongado impacto planetário. Mas vai muito para além da exposição dos factos, desenvolvendo aspectos menos abordados aos quais se ligam alguns dos momentos mais ricos e estimulantes. É o caso da fundamentação da capacidade sedutora do ideal comunista, dos meandros da tomada do poder pelos comunistas na Europa recém-arrancada das mãos de Hitler, da percepção da teia de intrigas que envolveu a tentativa de regeneração do sistema associada à «Primavera de Praga» e do papel decisivo das transformações ocorridas na Polónia na desagregação de todo o bloco socialista.

Um trabalho de interpretação do papel preenchido pelos partidos comunistas nos países democráticos, definindo invariavelmente uma influência superior ao seu real impacto eleitoral, tal como uma tentativa mais detalhada de compreensão das condições que possibilitaram a longa vida da experiência comunista ou que determinaram o seu colapso, funcionam também como factores de valorização deste livro. Importa acrescentar que, apesar de não ser propriamente um simpatizante do projecto histórico ao qual tem dedicado a vida profissional, Brown conserva em relação a ele uma posição de esforçada equidistância e objectividade. A obra reconhece o valor das «democracias consolidadas» como mais capazes de proporcionarem justiça e liberdade aos cidadãos do que os estados construídos «sobre as bases criadas por Marx e Lenine», mas de forma alguma pode ser tomada como anticomunista. Um bom livro para quem comece a interessar-se por estes temas ou sobre eles procure uma síntese útil e capaz.

[Archie Brown, Ascensão e Queda do Comunismo. D. Quixote. Trad. não identificada. 776 págs. Publicado na revista LER de Fevereiro de 2011.]

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