Arquivo de Categorias: História

Um mapa «da Palestina» negativo e danoso

Está a circular profusamente pelo Facebook e outras redes sociais, deixado inclusive por pessoas que muito prezo ou de quem sou amigo, e que acredito terem sobre o tema posições mais equilibradas e racionais, e não apenas emotivas e epidérmicas, um suposto mapa «da Palestina», legendado em árabe e na perspetiva do Hamas, destinado a celebrar o combate do povo palestiniano pela sua independência. A causa é, sem qualquer dúvida, justíssima, para mais nesta altura tão dramática para a população de Gaza, e essa lembrança é adequada. O mapa em causa, todavia, além de estar manifestamente errado, por muito incompleto, parte de um pressuposto político, vindo de determinado grupo, que é negativo e danoso para a própria causa palestiniana.

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    O 25 de Novembro que foi (e o deles)

    Muito tem sido escrito por aí, nestes tempos mais próximos, sobre os acontecimentos de 25 de Novembro de 1975. A começar por reflexões de pessoas, historiadores e não só, que sabem do que estão a falar, e a terminar em banalidades ou atestados de ignorância. Limito-me, pois, a um banal parágrafo. Para resumir muito resumidamente, vou ao essencial: o que aconteceu naquele dia traduziu-se historicamente numa vitória do Partido Socialista, da «ala moderada» do MFA e, em consequência, do modelo constitucional da democracia representativa. Marcou também, como toda a gente sabe, o termo da fase necessariamente experimental e mais intensa da nossa revolução democrática. Recordo-me de, na manhã do dia seguinte, ter acordado tristíssimo e com uma sensação amarga de «fim da utopia». A tentativa de aproveitamento da direita e da extrema-direita para os seus objetivos revanchistas, procurando construir um sentido simbólico sem qualquer referente histórico ou o menor fundo de verdade, é patética. Mas também significativa e perigosa, sobretudo por estar a inquinar a opinião pública.

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      Schutzstaffel e extrema-direita

      A Schutzstaffel, palavra composta alemã que em português se pode traduzir por «tropa de proteção», é vulgarmente conhecida pelo seu acrónimo SS. Sim, refiro-me à força de elite composta por voluntários à disposição de Hitler, a quem jurava absoluta fidelidade, sujeita a critérios de seleção apurados e destinada a executar as operações mais difíceis e cruéis, que os militares e polícias normais muitas vezes tinham relutância em realizar. De 1929 até o colapso do regime em 1945, a SS foi a principal agência de segurança, vigilância e terror na Alemanha e na Europa ocupada, sendo particularmente responsável pelas ações de extermínio, muitas indiscriminadas, e pelo funcionamento mecânico e implacável dos campos de concentrações.

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        Devaneios, História, Opinião

        A Palestina, Israel e a paz como causa comum

        Existe um alarme global associado aos últimos desenvolvimentos do conflito palestiniano-israelita e às suas ondas de choque. Longe da inquietação ou da indignação sentida pelos que, sobretudo na Europa ou nos Estados Unidos, no conforto das suas vidas, dele colhem apenas o eco, os povos da região, muitos israelitas, mas em particular a população civil de Gaza, têm vivido de forma dramática esta nova fase de violência generalizada. Começou a 7 de outubro de 2023 com o ataque infame do movimento islamita Hamas sobre populações civis de Israel, prosseguindo com as brutais represálias do governo de Benjamin Netanyahu, lançadas em escala absolutamente desproporcionada e destinadas a reduzir ainda mais as áreas sob controlo palestiniano.

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          Coimbra, o movimento estudantil e o 25 de Abril

          É muitas vezes evocada a importância do movimento estudantil na resistência ao Estado Novo e o seu importante contributo para a queda do regime caduco e injusto que o sustentou. Infelizmente, esta evocação é com frequência bastante parcial, sendo acompanhada de um esquecimento de vários dos seus importantes momentos, escolhas e protagonistas. Esta tendência determina perspetivas incompletas, que relativizam o papel crucial e de longo fôlego, para a vitória da democracia, da intervenção política e cultural de sucessivas gerações de estudantes. Nos cinquenta anos de Abril, vale a pena mencionar esta lacuna centrando a atenção no caso de Coimbra e nos últimos anos do anterior regime.

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            Coimbra, Democracia, História, Olhares

            Uma homenagem e um equívoco

            É hoje, 17 de Abril, quando se completam 55 anos sobre o episódio que desencadeou a «crise académica» de 1969, inaugurado em Coimbra pelo PR um mural de homenagem àquele momento que é centrado em Alberto Martins, então o presidente da AAC e o seu mais conhecido protagonista, dado o papel que teve ao pedir a palavra em nome dos estudantes. Parece-me bem e justo, embora discorde da forma como o episódio, que teve uma natureza coletiva e distendida no tempo, continua a ser recordado e representado como centrado num momento e numa só pessoa, que «apenas» foi instada – como a própria ainda há dias reconheceu num debate em que também participei – a falar em nome de todos.

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              Longe da vista, longe da cabeça

              No século XIX um conjunto de teóricos urbanistas defendeu, diante do crescimento das cidades e da sua população marginalizada e politicamente instável, a necessidade de afastar as «classes pobres» para as periferias das cidades. Assim, pensavam, se reduziria o perigo que representavam para os poderosos, e os centros urbanos seriam mantidos mais bonitos, mais limpos e mais tranquilos. Na Paris dos meados desse século foi particularmente importante a atividade do perfeito Barão Haussman, o «artista demolidor». O projeto de renovação da cidade que levou a cabo teve como objetivo, além de tornar a cidade de certo modo mais bela e imponente, pôr termo às constantes revoltas populares e barricadas. Ao mesmo tempo, serviu para expulsar os antigos moradores das ruelas centrais e aqueles que, havia pouco tempo, ali tinham afluído vindos das áreas rurais. Para a burguesia parisiense, em breve essa população se tornou uma realidade quase inexistente, confinada a escassas e necessárias atividades importantes para o aprovisionamento da capital.

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                O tal mapa de 1947

                A propósito do mapa da Palestina que anda por aí a ser reproduzido, datado de 1947, um ano antes da fundação do Estado de Israel, destinado a «provar» que não existia ali nenhum território chamado Israel. Desde já, isto não é verdadeiro, pois a designação existe na região há pelo menos três mil e trezentos anos. O primeiro registo histórico do termo Israel surge na Estela de Merneptá, documento epigráfico que celebra as vitórias militares do faraó Merneptá, datado do final do século XIII a.C. Depois, os judeus nunca deixaram de habitar a região, apesar de terem recomeçado a afluir em maior quantidade sensivelmente a partir de 1850, e mais ainda após o Holocausto. Depois ainda, toda aquela região, no mapa genericamente designada Palestina – na origem «terra dos filisteus» -, é uma manta de retalhos cultural, política, linguística e religiosa, combinada com traços comuns a todos os povos, incluindo judeus e palestinianos. Israel é também plural, apesar dos esforços dos conservadores belicistas e da extrema-direita sionista para o impedir. Finalmente, e para não cansar: imediatamente antes da independência de Israel o território, que havia sido controlado durante séculos pelo Império Otomano, era-o pela Grã-Bretanha. Situação colonial que se vivia na data do tal mapa. Quando não sabemos ou não queremos saber, um direito que nos assiste, o melhor é não falarmos à toa.
                [Originalmente no Facebook]

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                  A Coreia do Norte e a falsificação da História

                  Ao ver na AppleTV uma excelente série que percorre oitenta anos da história da Coreia, e ao procurar aferir da veracidade das inúmeras referências históricas, dou de caras com um facto poderoso que ignorava e com uma mentira que tomava por verdade, ainda que manchada por algum exagero do qual já suspeitava. Em Pachinko, de Soo Hugh, estreada em 2022 e falada em coreano, japonês e inglês, uma saga familiar baseada no romance homónimo da escritora coreana-americana Min Jin Lee, encontra-se um cenário que reporta a relação complexa e traumática da Coreia com o Japão ao longo do século XX. O facto que ignorava tem a ver com a dimensão do domínio japonês sobre a península, exercido entre 1910 e 1945, ter sido traduzida na redução à escravatura, ou pelo menos à servidão, da quase totalidade da população local, com, níveis de repressão e de crueldade sem comparação à escala europeia.

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                    Democracia, Etc., Ficção, História, Olhares

                    O meu 11 de março: uma memória

                    11 de março de 1975, data sobre a qual se completam hoje 48 anos, corresponde, como sabe quem na época já tinha razoável tempo de vida ou quem estudou alguma coisa sobre a a nossa história recente, ao dia no qual, iniciada e gorada a tentativa de golpe de Estado de direita que tinha António de Spínola como «cabeça de cartaz», a revolução portuguesa se radicalizou. Superando anteriores hesitações, passou-se então à ocupação de muitas empresas e propriedades rurais, bem como a um processo acelerado de nacionalizações, incluindo a da banca. Dando-se também início a uma fase da revolução na qual o socialismo foi definido como meta por quase todos os partidos democráticos. Ao ponto de a nova Constituição a ter integrado logo no artigo 2º.

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                      Um ano de sofrimento, hipocrisia e esperança

                      Completa-se hoje um ano sobre o início da guerra na Ucrânia, determinada pela súbita invasão russa imposta pela política imperial e belicista de Vladimir Putin. Um ano que, na altura, apressados analistas, alguns deles oficiais generais, anunciavam ir durar «no máximo, uma semana». Um tempo determinado em primeiro lugar pela sistemática e brutal destruição de boa parte do país invadido, pelo imenso sofrimento do seu povo, pela devastação de vidas e de esperanças, e por um número, ainda indeterminado, mas na escala dos largos milhares, de mortos, entre civis e militares. Contando-se também entre estes muitos cidadãos russos, alguns deles mercenários e ex-presos de delito comum incorporados com a promessa de um perdão, embora a maioria sejam recrutas e reservistas incorporados à força, às dezenas de milhar, pelo regime de Moscovo.

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                        Para além e para aquém de Kiev

                        Ao longo de vários séculos a população da Europa viveu atormentada por uma sombra ameaçadora que os historiadores designaram «o medo do turco». Isto é, o constante receio subjetivo de uma conquista otomana que virasse o seu mundo ao contrário. Ao mesmo tempo, setores da elite cultural ocidental foram alimentando uma dimensão de fascínio por esse universo, instalado a oriente, que a maioria desconhecia tanto quanto temia. Num e noutro dos casos, o sentimento dominante era o de grande estranheza perante hábitos, crenças, valores e formas de organização política e social substancialmente diversos daqueles que, apesar da pluralidade de regimes e sociedades, eram basicamente compartilhados pela generalidade dos europeus.

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                          Contextualizar contextualizar

                          Uma das maiores dificuldades que ocorre de forma muito habitual nas abordagens da história e da memória – obrigando a uma permanente vigilância da parte de quem a escreve ou a transmite -, e que perpassa em todos os processos que envolvem a comunicação pública do passado, é a disseminação do anacronismo e, pior que este, da tendência para ignorar os contextos. Olhar escolhas e momentos do passado, seja o pessoal ou o coletivo, no lugar onde hoje vivemos ou a milhares de quilómetros dele, no território das ideias ou no dos costumes e decisões, pelos olhos e valores da cultura agora dominante e da diferente sensibilidade que hoje detemos.

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                            «Que tempos estes!»

                            Vejo por aqui, repetidas até à náusea, muitas vezes por amigos e amigas que prezo, frases como a que encima este apontamento. A história mostra que ela traduz uma atitude muito antiga, defendida de forma consciente ou inconsciente por quem no passado, sobretudo no seu próprio passado, vê um mundo melhor, mais «correto» ou mais feliz que o atual. Em décadas de investigação sobre diferentes passados, frases como esta passaram por mim largas centenas de vezes, embora a referência mais básica seja sempre aquela, pronunciada por Cícero pelo menos em quatro discursos, que pelo século I antes da nossa era bradava «O tempora, o mores», isto é, «ó tempos, ó costumes!». Como quem dizia «malditos estes tempos sem valores», ou «esta juventude está perdida», ou ainda «antigamente é que era bom». Existem, sem dúvida, no curso do tempo, momentos críticos e de alteração brusca de valores e de práticas, nem sempre compreendidos e muitas vezes tomados como negativos, mas não existem épocas boas e épocas más. Na realidade, todas combinam experiências que cada pessoa vive ou interpreta da sua forma e em contexto. Aliás, dizer-se «que tempos estes!» aplicando-a a um país que, com todos os problemas inerentes à vida no planeta e às suas injustiças, atravessa a época de maior bem-estar, de mais direitos e de mais liberdade do seu longo trajeto de oito séculos e meio é, no mínimo, imerecido e absurdo.
                            [originalmente no Facebook]

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                              O estalinismo e quem o alimenta

                              O estalinismo representa a maior perversão do grande ideal de socialismo, justiça e progresso que o movimento operário do século XIX duramente construiu. Tomou na antiga União Soviética, sobretudo a partir de 1928-1929, a forma de um regime unipessoal e de culto da personalidade, de uma ditadura feroz e sanguinária, de um sistema rigidamente policial e censório, e também de uma forma de fazer política que colocou os objetivos do partido único, como suposta vanguarda, acima das pessoas que um dia proclamou servir.

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                                Completaram-se ontem, 6 de janeiro de 2023, cinquenta anos de vida do semanário «Expresso». Fui seu leitor desde o primeiro número, saído ainda em pleno marcelismo como expressão de uma oposição consentida pelo regime, e durante mais de quatro décadas não perdi um só. Mesmo quando fora do país ou em algum lugar onde o jornal não chegava, tinha sempre um quiosque que guardava o meu exemplar. Boa parte desse tempo integrou um ritual das manhãs de sábado, comprando o «espesso» e lendo-o depois normalmente no café. Em particular o bom suplemento cultural, durante uma boa época designado «Revista», e deixando de lado a volumosa publicidade e o caderno de Economia, uma área que infelizmente jamais foi a minha praia. A partir de certa altura passei para a edição digital, que assinei e lia no tablet, libertando-me de vez daquele saco de papel que alguns leitores costumeiros e mais tradicionais ainda exibem como um emblema geracional.

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                                  Com dezenas de prisões de pessoas com algum destaque social e político, acaba de ser desmantelada na Alemanha uma conjura, sustentada em teorias da conspiração, destinada a preparar a tomada do parlamento e a provocar um golpe de Estado, da qual sairia de seguida uma revisão das condições de rendição do país após a Segunda Guerra Mundial. A reação imediata de muitos de nós foi de incredulidade, pois geralmente damos como assente que a Alemanha é uma democracia estabilizada e que os traumas associados à ascensão e à queda do nazismo estariam enterrados. Esta é, todavia, mais uma prova da ascensão da extrema-direita revanchista fundada agora nas dinâmicas do populismo, nas falhas da memória coletiva e na visível apatia da democracia.

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                                    Democracia, Direitos Humanos, História, Opinião

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                                    Estão, por estes dias, a ser lembrados os noventa anos volvidos sobre a ocorrência do genocídio do Holodomor. Refiro-me à morte pela fome ou através de execuções e de deportações assassinas, entre 1932 e 1933, de no mínimo 4 milhões de ucranianos – algumas estimativas mais ousadas chegam aos 12 milhões, incluindo-se aqui os fortes abalos na natalidade – sobretudo entre camponeses pobres e pequenos proprietários rurais (os kulaks), mas tocando também setores políticos e intelectuais.

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