Arquivo de Categorias: Olhares

Não, não é «tudo igual»

Bastou um dia de presidência Trump para começarem a ser revolvidos na América, de alto a baixo, os fundamentos do Estado de direito e das relações com o resto do mundo. Não é preciso mostrar aqui o rol das medidas, chegando uma consulta aos títulos sonantes dos jornais. Uma situação calamitosa que, ao mesmo tempo e infelizmente, desmascara quem, associado a uma franja estreita e bem identificada do nosso sistema político, dita «progressista», considera que por ali «é tudo igual», tudo fazendo para não distinguir as duas Américas, e os dois mundos, que estão abertamente em confronto. Mais, considera até, na sua cegueira sectária, que a atual situação «engana menos». Visível em certos blogues e em algumas páginas de redes sociais, é gente que dificilmente se encontra em condições de integrar a imprescindível frente mundial anti-Trump e anti-Musk, ou, na sua interpretação arcaica e rígida da história e do mundo atual, o decide fazer sem aliados fortes e do lado errado. Amarrados a uma verdade revelada ou à sua caricatura, não aprendem e não querem aprender.

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    O mal é o mal

    Conto-me entre os muitos que, reconhecendo a solução pacífica dos dois Estados independentes e democráticos como a única justa e com a possibilidade de, a longo prazo, se tornar duradoura, solucionando o interminável e sangrento conflito israelo-palestiniano. Por isso mesmo, sou totalmente contrários à iniciativa no terreno dos violentos setores extremistas, sejam estes a extrema-direita ortodoxa de Israel, associada a Netanyahu e agora, previsivelmente, com um ainda maior respaldo da administração Trump, ou o Hamas palestiniano, apoiado pelo Irão e pelo Hezbollah. Pelo mesmo motivo, também não considero aceitável a existência de um mal menor, tomando os extremistas de ambos os lados como igualmente insensíveis ao sofrimento de ambos os povos, seja o outro ou mesmo o seu.

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      Acontecimentos, Democracia, Etc., Olhares, Opinião

      Sobre a complexidade de tudo e de todos

      Após aquela fase da vida associada à adolescência e à juventude, em que, como quase todos nós, salvo os naturalmente fracos ou medrosos, produzi verdades e absolutos sobre certas pessoas e a propósito de determinadas ideias, rapidamente me habituei a aceitar e a conviver com a complexidade de todos e de tudo. Logo deixei de dividir o mundo entre bons e maus, entre o preto e o branco, e talvez por isso, tendo toda a vida sido politicamente de esquerda, cedo também passei a rejeitar formas de sectarismo e a generalizações que neste campo por vezes divide os vivos entre «os nossos» e «os outros». Uma escolha que tem até gerado incompreensões da parte de gente de quem me sinto politicamente próximo, mas a quem perturba toda a tendência para a relativização e a rejeição do dogma. Ainda que esta escolha jamais tenha, acredito, questionado a defesa das convicções mais fortes e profundas que fui construindo.

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        Apontamentos, Etc., Olhares, Opinião

        Maldição e necessidade de opinar de forma pública

        Este artigo contém uma vertente autobiográfica. Tem como tema a experiência da crónica como género literário, com o qual, na páginas deste jornal e em outros espaços públicos, regularmente evoco determinados temas ou discuto problemas da atualidade. Como forma necessariamente abreviada e efémera de comunicação, a crónica é geralmente uma narração curta, com um objetivo pré-determinado da parte de quem a escreve, ligando-se sempre à realidade do quotidiano e apresentando uma visão tão informada quanto pessoal e subjetiva dos assuntos que aborda. Atravessou séculos como simples relato de acontecimentos dispostos em ordem cronológica, mas no século XIX, com o progresso das ideias democráticas e a expansão da imprensa, evoluiu no registo, que passou do meramente descritivo e informativo para o opinativo e crítico, entre nós já usado n’As Farpas de Eça e de Ramalho.

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          A mais bela idade e a lição de Nizan

          Em murais do Facebook, como lugares onde tantas vezes se exprimem de uma forma bastante livre, e muitas vezes sincera, gostos próprios, sentimentos pessoais ou notas de teor autobiográfico, encontro muitas referências ao caráter «maravilhoso» e único da época que correspondeu essencialmente aos anos de juventude de quem o exprime. Na boca destas pessoas, consoante a idade, os anos cinquenta foram fantásticos, os sessenta incríveis, os setenta formidáveis, os oitenta espetaculares, os noventa soberbos, mas cada um deles «único». A mim, que passei por eles todos e de todos retenho memórias boas, outras más e quase todas razoavelmente complexas, não vejo nada de tão absoluto, parecendo-me esse limitado foco bastante redutor e tantas vezes falso.

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            Apontamentos, Devaneios, Memória, Olhares

            O «espírito do tempo» e a utopia contra o pessimismo

            Na passagem de cada ano para o seguinte tornou-se um hábito realizar balanços do que finda e anunciar planos, desejos ou previsões para o que vai começar. Neles se misturam dados objetivos, impressões ou simples anseios, sejam estes coletivos ou mais pessoais, em registos que se distinguem consoante quem os enuncia e partilha, conforme a sociedade onde vive, ou, de uma forma decisiva, de acordo com o «espírito do tempo» em que os formula. Sirvo-me aqui dessa expressão, surgida com Herder e os românticos alemães, e particularmente pensada e divulgada por Hegel na Fenomenologia do Espírito, de 1807, usada para identificar e dar consistência ao clima político, sociológico e cultural que, em escala ampla e dinâmica, domina e determina uma dada época. 

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              Atualidade, Democracia, Devaneios, Olhares, Opinião

              Femme Fatale

              Há sensivelmente 17 anos, escrevi neste blogue um post que, lido hoje, de algum modo denuncia não apenas a transformação da minha leitura sobre o tema que aborda, mas também uma forma de pensar a masculinidade que vivi, como milhões de outros homens, num contexto cultural geracional que, podendo hoje ser reescrito, deve ser compreendido e não liminarmente criminalizado, como por aí está a suceder.

              Eis o parágrafo:

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                Apontamentos, Artes, Etc., Olhares

                O papel das claques no futebol e na política

                Nas últimas décadas, as claques de futebol, originalmente concebidas como grupos organizados de apoiantes que iam aos jogos do seu clube favorito apenas para o apoiarem, para conviverem e para se divertirem, transformaram-se em fatores de preocupação e de sobressalto público. As ligadas às agremiações mais populares e antigas são geralmente as mais perigosas, pois não só são maiores como incorporam modos de cultura tribal, associados a práticas, símbolos e padrões de discurso que lhes são próprios, agora claramente pautados pela violência. Legalizadas ou não, nelas se afirmam cada vez mais, a par daquela dimensão lúdica e festiva, formas de coação sobre outros, além de processos orgânicos que têm transformado algumas, ou pelo menos os seus setores «ultras», em instrumentos do crime organizado.

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                  Os cem anos de Mário Soares e a social-democracia

                  Completam-se neste sábado, dia 7 de dezembro, cem anos sobre o nascimento de Mário Soares. Enquanto homem estruturalmente de esquerda, politicamente democrata e defensor constante do ideal de socialismo desde adolescente, e também na condição de pessoa com memória, sempre mantive, antes e depois do 25 de Abril, uma apreciação complexa e contraditória, embora atenta, daquele que foi uma das figuras-chave – a par de Afonso Costa, Salazar e Cunhal – para a compreensão do século XX português. Aliás, Soares foi também, e isto é um elogio, uma personalidade complexa e contraditória, dotada simultaneamente de pragmatismo, ousadia, inteligência e, sem dúvida, um amor enorme à democracia, mesmo quando num ou noutro momento agiu de uma forma autoritária. Era também homem com enorme bonomia e um grande sentido de humor, o que hoje tanta falta faz à generalidade dos nossos políticos. Discordei dele muitas vezes, mas jamais depreciando as suas escolhas e a sua personalidade. Tenho, por isso, noção da falta que nos faz.

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                    Biografias, Democracia, História, Memória, Olhares

                    A sua escolha

                    Ao longo dos anos fui conhecendo direta ou indiretamente, e fui também acompanhando na sua atividade, muitas pessoas que dispunham daquilo a que já alguém chamou «um bom capital de prestígio e de poder». Muitas, colocadas em lugares de decisão a diferentes níveis, desfrutavam deles exibindo tiques de autoritarismo e arrogância, desinteressando-se por quem não lhes servisse para subir a sua colina e depois para manter-se lá no topo. E ali se foram conservando até que o tempo – o grande escultor do qual nos falou Marguerite Yourcenar no romance – fez o seu incessante trabalho, levando-as a entrar numa etapa da vida em que, num repente, perderam seguidores e bajuladores, supostos amigos até ali sempre de sorriso pronto, palmada nas costas e vénia à medida. Vejo-as hoje, tristonhas e curvadas, já sem préstimo para quem delas se servia, passarem na rua sozinhas, sem voz e sem séquito, à procura de quem lhes possa ainda estender a mão ou fazer um aceno de reconhecimento. Não teria de ser assim, mas foi a sua escolha.

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                      1º de Dezembro: a «revolução» que o não foi

                      Durante o Estado Novo, associado ao esforço nacionalista de aproveitamento da História pátria – neste caso, vincando um forte sentimento anticastelhano identitário que ainda vai moldando algumas mentes -, a data do 1º de Dezembro era lembrada pelas autoridades e no sistema educativo como uma «Revolução». Na realidade, tratou-se de um golpe de Estado palaciano, associado a um combate dinástico e depois a uma bem dura e custosa guerra que durou quase três décadas, prolongando-se entre 1640 e 1668. No pós-25 de Abril, durante algum tempo a extrema-direita a que tínhamos direito ainda a celebrava o 1ª de Dezembro como data sua, sendo notados, embora apenas como curiosidade, os desfiles Avenida da Liberdade abaixo organizados pela antiga jornalista Vera Lagoa. A extrema-direita de hoje, que fala em nome da História sem a conhecer, ainda evoca a data como sua. Alguns monárquicos, lembram-se com ela que ainda existem. E o cidadão comum apenas sabe que é feriado, este ano, para azar do descanso, tendo calhado a um domingo.

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                        O beabá do 25 de novembro e a direita

                        O aproveitamento simbólico, pela direita e pela extrema-direita, do 25 de novembro de 1975, a data que de alguma forma fechou a fase mais dinâmica do processo revolucionário de 1974-75, só pode ser suscitado pela ignorância da história, por puro oportunismo, ou, mais provavelmente, por ambas as coisas. Por ignorância porque nem sabem, ou nem querem saber, que os vencedores dos acontecimentos que tiveram lugar nessa data foram, do ponto de vista político, os setores moderados do MFA e o Partido Socialista. Por oportunismo porque tudo lhes serve para, no seu cinquentenário, minimizarem o significado e o impacto dos 25 de Abril, que na verdade desvalorizam, quando não odeiam visceralmente e desde há muito. Vão, desta forma, celebrar, como data sua, um acontecimento para o qual não meteram prego nem estopa. Dele se aproveitando agora, após cinquenta anos a ganharem coragem para o fazer.

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                          Sectarismo, fanatismo e combate cultural

                          O tema desta crónica ganha relevância nos tempos que correm, quando os dois grandes campos do combate político global dos últimos dois séculos, o da democracia e o do autoritarismo, se defrontam como não se via desde o final da Segunda Guerra Mundial. Como formas próprios de relacionamento de cada indivíduo com os seus semelhantes, o sectarismo e o fanatismo expandem-se como flagelos que cruzam a história e, no mundo atual, tendem a toldar a lucidez e a reforçar os projetos que sustentam ou preparam tiranias. Para serem contrariados, importa observar como funcionam, mas também de que modo se instalam no nosso dia a dia e no universo do combate político. 

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                            Pensar, agir, mobilizar

                            A par das múltiplas tentativas de análise que tentam interpretar a vitória da direita e da extrema-direita populistas nas eleições norte-americanas, a opinião política tem também procurado olhar os novos e ainda mais preocupantes dilemas que a partir de agora se colocam à Europa, ao mundo e, de uma forma geral, à vida das democracias. Todavia, tendo em conta a catástrofe ocorrida e as condições nas quais ela se deu, começa a ser cada vez mais urgente, seja onde for, e por cá também, mais do que queixumes e previsões do apocalipse, o projetar de olhares plurais e cuidados sobre o modo como as forças da democracia e do progresso devem encarar a sua atividade próxima futura. Perante o inimigo colossal que representam as múltiplas forças autoritárias e imperiais, e as formas por estas utilizadas para escravizar os povos e as consciências das pessoas comuns, cada vez é mais importante pensar estratégias de aproximação política, agir no crucial campo da cultura e mobilizar alternativas realistas.

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                              Israel, os EUA e os problemas de visão

                              É totalmente incompreensível alguém coerente e simultaneamente democrata e de esquerda não preferir, nas eleições presidenciais nos EUA deste dia 5, que Kamala Harris derrote Trump apenas porque ela não tem a posição sobre Israel e a Palestina que gostariam que tivesse (e eu também provavelmente gostaria). Vamos ser claros: Kamala, na senda de Joe Biden, não tem uma posição coerente e clara sobre o tema, condenando abertamente Israel e afirmando claramente que defende a independência da Palestina. Mas mostra uma abertura ao diálogo sobre o mesmo, e uma condenação formal da política de genocídio, que Trump, já apoiado formalmente por Netanyahu, de todo exclui, preferindo estar do lado dos falcões israelitas. Além disso, torna-se evidente que, se a candidata democrata exibisse uma posição inflexível de imediata rutura com Tel Aviv, nem precisaria ir a votos, pois seria esmagada nas urnas pelos eleitores. Custa muito compreendê-lo? Fazer política com alcance e visão jamais é mover peças num simples tabuleiro de jogo de damas.

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                                Não se desculpa, nem se ignora

                                Reparei há dias, a acompanhar uma fotografia que circulou profusamente e mostrava a real dimensão, pequena de cerca de cem pessoas, da manifestação em favor de uma abstrata «defesa da polícia» convocada pelo Chega junto do parlamento, num comentário quase eufórico a proclamar «afinal são tão poucos!». Esquece quem o fez, esquecemos muitos de nós quando observamos estas aparentes demonstrações de insignificância, que uma das caraterísticas da extrema-direita é ser alimentada, em boa parte, por gente com medo de tudo, cheia de rancor por isto ou por aquilo, habituada a calar e a levar, sempre pela penumbra, a água ao seu moinho egoísta. Gente que não dá o rosto ou se manifesta.

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                                  O Chega na fronteira do crime

                                  Para além das divergências políticas e ideológicas que, entre nós, o separam dos restantes partidos, sejam os de esquerda ou os da direita – embora os últimos ensaiem algumas aproximações oportunistas -, o Chega, maior partido da extrema-direita portuguesa, possui duas marcas que claramente o separam das demais forças políticas. A primeira consiste na defesa declarada e sem máscara do racismo, da xenofobia, do Estado autoritário, da homofobia, da nostalgia do Império e dos valores da ditadura derrubada a 25 de Abril. Inclui também a defesa da violência social contra minorias, pobres não-obedientes e imigrantes, e a rejeição da democracia, usada apenas em proveito próprio.

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                                    Má educação e ar puro

                                    Começou por acontecer com alguns jornalistas que me contactavam para pedir informações relacionadas com certos temas ou situações. Em regra, se estivesse ao meu alcance e não violasse princípios de ética dos quais não abdico, prontamente respondia. Por vezes, informava que não tinha forma de responder, disponibilizando-me no entanto para outra altura. Na larga e crescente maioria dos casos, nem um obrigado. Depois, começou a ocorrer com colegas organizadores de eventos ou publicações académicas, que perguntavam se estava disponível para colaborar. Quando não podia mesmo, ou não me interessava, ou não me considerava a pessoa certa, dava conta da impossibilidade, sempre de forma educada e cordial, agradecendo e ficando ao dispor. Uma palavra de apreço pela resposta, nem vê-la. Tornou-se um hábito, num universo ainda há não muitos anos maioritariamente pautado pela afabilidade e a ajuda mútua, o império do interesse imediato determinado pela «carreira» sobre o valor da relação pessoal. Face a esta feia e tristonha realidade, há anos que comecei a fazer uma lista negra de pessoas que passaram por este crivo, a quem por certo não mais responderei positivamente. Tenho bastante cuidado com a pureza do ar que respiro.

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