Arquivo de Categorias: Democracia

Essa verdade a que temos direito

Fotografia de Gerkitda

«Pós-verdade». O termo terá sido cunhado em 1992 pelo dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich e em 2004 Ralph Keyes usava-o já para identificar uma certa «era da desonestidade e do engano», mas foi ao longo deste ano que surgiu por todo o lado, em artigos de jornal, programas de televisão, posts das redes sociais e até debates académicos. «Vivemos um tempo de pós-verdade», diz-se a propósito da dinâmica que tem feito com que os factos objetivos – aquilo a que geralmente se chama «verdade» – tenham menor influência na formação da opinião pública e nos resultados das eleições que os apelos emotivos, as opiniões subjetivas, os boatos ou mesmo as mais despudoradas mentiras. Refere-se também a um sistema de comunicação no qual a «notícia» vale por si, pelo impacto que gera, pelo número de leitores que atrai, pelo volume de publicidade que gera, e não pelo caráter isento, completo e autêntico da informação que oferece. (mais…)

    Atualidade, Democracia, Opinião

    Será isto ou nada, a Europa

    Fotografia de Boris Voglar
    Fotografia de Boris Voglar

    O uso da força como instrumento da autoridade política é uma das experiências mais antigas das sociedades humanas. Porém, terá sido apenas em 1879, ao rebater em livro algumas ideias do filósofo alemão Eugen Dühring – defensor de uma variante de socialismo de pendor moral, concorrente com a marxista –, que Friedrich Engels considerou a violência a «parteira da História». Por si tomada como fator decisivamente dinâmico da origem e do desenvolvimento das sociedades. Porém, o amigo e correligionário de Marx não se referia apenas à guerra, invocando também os outros processos de afirmação da ordem política impostos pela coação e pela ameaça, projetadas sobre os poderes menores e sobre os povos subjugados, ou então por estes invocados. Um processo necessário, aos seus olhos, para substituir o velho pelo novo, sempre no quadro da luta de classes. (mais…)

      Atualidade, Democracia, Opinião

      Alepo e a culpa

      Fotografia: Reuters/Rami Zayat
      Fotografia: Reuters/Rami Zayat

      A propósito da guerra, escreveu Karl Kraus (1874-1936) no jornal A Tocha: «De início um dos lados espera vencer; depois o outro espera que o inimigo perca; de seguida cada um queixa-se daquilo que está a sofrer; no final, ambos percebem que todos perderam.» A guerra é sempre iníqua e dolorosa, mesmo quando se afigura justa para um dos lados, ou até quando parece explicável, necessária e de alguma forma regeneradora. A luta dos Aliados durante a Segunda Guerra Mundial, as guerras de emancipação do domínio colonial ou aquelas que visaram o derrube de ditaduras, seguem esta linha justa, mas nem por isso foram ou serão belas. (mais…)

        Atualidade, Cidades, Democracia, Direitos Humanos

        O «menino de Alepo» e as leituras enviesadas

        Já estava um tanto admirado por não aparecer de imediato algo que pudesse denegrir a imagem perturbante e icónica do «menino de Alepo» e servisse de defesa do governo sírio de al-Assad, o suposto herói da luta anti-imperialista, bem como dos seus aliados russos. Vindo daquele setor da opinião para o qual todo o mal de um mundo muito simplificado e apenas a dois tons tem como responsável e beneficiário único e exclusivo os Estados Unidos da América, financiador ultraconsciente e contumaz da Al-Qaida e do Daesh.

        Um juízo que não iliba, obviamente, sucessivos governos norte-americanos de políticas desastrosas, erradas e danosas no Médio Oriente que alimentaram de facto os grupos islamitas, é verdade, mas que é perigosamente redutor. É óbvio também que aquela fotografia foi usada como uma ferramenta de propaganda, como tem acontecido em todas as partes e em todos os conflitos pelo menos desde a Guerra da Crimeia de 1853-1856. Mas a desmontagem que dela se está a fazer pode atingir proporções insólitas. (mais…)

          Atualidade, Democracia, Direitos Humanos

          A Europa e a Turquia, agora

          Há séculos que a existência do Império Otomano, e mais tarde da Turquia, representa uma fonte de temores e de problemas para a Europa. A expansão do seu território no final da Idade Média, traduzindo um avanço do Islão e de um modelo de sociedade totalmente diverso do instalado nos reinos e Estados cristãos, assustou milhões de europeus ao longo de gerações, e convém lembrar que, não fora a derrota do Grão-Vizir Kara Mustafá em 1683, na decisiva batalha de Viena, com todas as probabilidades a história do nosso continente teria sido radicalmente outra. Foi, aliás, a continuação deste risco que determinou o empenho de D. João V quando, em 1717, enviou uma esquadra de seis poderosos navios a ajudar Veneza na batalha naval de Matapan. Mas apesar do avanço militar ter sido estancado, o recuo decisivo apenas foi consumado em 1923, com a retirada turca de quase toda a Península Balcânica e a proclamação da República, sob a liderança secular, modernizadora (leia-se «ocidentalizante») e formalmente democrática de Kemal Atatürk. (mais…)

            Atualidade, Democracia, Opinião

            Excesso de tradição e diálogo político

            Nas Aventuras de Tom Sawyer, Mark Twain disse ser «fácil justificar uma tradição, mas muito difícil vermo-nos livres dela», dada a força que pode tomar. O historiador Eric Hobsbawm mostrou em 1983 que as tradições são sempre invenções, mais próximas de um certo imaginário cultural que da realidade da vida. Simplificando a interpretação: aquilo que produz uma tradição e lhe confere essa força não é a reprodução das mesmas práticas, supostamente antigas, através do tempo, mas antes a tendência para repetir uma interpretação conservadora enquanto os factos e os contextos se vão transformando. Por isso, tantas vezes é anacrónica e imobilista.

            Isto não significa, porém, que funcione apenas como uma prisão, forçando o presente a reproduzir o passado, e que não tenha qualquer valor dentro da vida social. Longe disso. Muitas vezes a tradição pode, no seu sentido verdadeiro – isto é, como a imaginação de uma continuidade cultural forte – cimentar as identidades das nações, dos coletivos, das regiões ou das cidades. Em Coimbra, onde a palavra «tradição» tem um peso muito grande no discurso público, em particular naquele que é veiculado por algumas instituições e por certos setores sociais, bem como pela generalidade da imprensa local, ela desempenha um papel importante, embora complexo e nem sempre consensual, na construção interna e na projeção exterior de uma imagem da cidade. (mais…)

              Coimbra, Democracia, Memória, Opinião

              Escola pública, direitos privados

              Fotografia de Nguyen Phuong Thao
              Fotografia de Nguyen Phuong Thao

              A ideia de escola pública nasceu com os debates que precederam e acompanharam a Revolução Francesa. E foi também em França que, sob a iniciativa de Jules Ferry, primeiro-ministro e ministro da Instrução Pública da Terceira República, entre 1880 e 1883 ela foi lançada de forma coerente. Pela primeira vez na história, a educação deixava de ser um privilégio concedido a alguns e tornava-se tendencialmente universal e gratuita, perdendo a dependência das instituições de natureza privada, corporativa ou confessional que lhe diminuíam o alcance e a condicionavam. Para além de republicana, era agora laica e plural, passando a assegurar, como um direito, o acesso a um conhecimento e a uma formação que deveria destinar-se a todos os cidadãos. Ocorreram depois avanços e recuos, consoante as épocas e os lugares, mas a tendência tornou-se irreversível, consolidando-se gradualmente nos regimes democráticos. (mais…)

                Atualidade, Coimbra, Democracia, Opinião

                Queima 72 em Coimbra e no Porto

                O desaparecimento da Queima das Fitas, tal como o das praxes, materializados em Coimbra com o «luto académico» decretado em 1969, foi um gesto coletivo de coragem e de grande impacto político, até porque se ergueu contra as expectativas de algumas famílias ciosas dos seus meninos doutores e as conveniências de parte do comércio da cidade. No entanto, não caiu do céu e, visto sob a perspetiva do tempo, não pôde deixar de ficar ligado a uma gradual democratização política dos valores em curso dentro das comunidades estudantis universitárias da cidade e do país. A escolha dos estudantes foi o resultado de uma evolução natural e daí o facto de, nos anos que se seguiram, a suspensão de tais práticas não ter sido levantada. (mais…)

                  Coimbra, Democracia, Etc., História, Memória

                  O sentido do tempo e a lição de Abril

                  O filósofo italiano Giorgio Agamben afirmou em entrevista recente: «A minha perspetiva do tempo histórico não pode deixar de ser descontínua. Nunca se sabe onde vai parar a ideia de um tempo contínuo. A antiguidade tomou-o como um círculo. O cristianismo, como uma linha. Por mim, prefiro a interrupção. O momento da liberdade de ação».  Quem possua uma visão dinâmica do percurso histórico – não me refiro à sequência à qual chamamos cronologia, mas ao movimento que percorre as sociedades – decerto aceitará este ponto de vista. Uma perspetiva que não reconhece o valor e a necessidade dos momentos de viragem, é imobilista e incapaz de explicar a torrente dos dias. No fundo, é essa a origem última do pensamento conservador. Seja qual for o quadrante político – existe também, é sempre bom lembrá-lo, um conservadorismo de esquerda – no qual este se inscreva. (mais…)

                    Democracia, Ensaio, Olhares, Opinião

                    Bye bye, Brasil

                    Passeata dos Cem Mil. Rio, 26/6/1968
                    Passeata dos Cem Mil. Rio, 1968

                    Os que mais sofrerão com o clima de ódio e o bloqueio institucional no Brasil serão, como sempre, «os de baixo». É o povo brasileiro. O povo mesmo, aquele que não tem voz, que trabalha e sobrevive graças ao engenho, à largueza da terra e a algum apoio do Estado. Será também boa parte da classe média, débil aqui como em todo o lado, logo que uma crise se instala. Mas temo também por aquilo que acontecerá aos músicos, intelectuais, escritores, poetas, atores, cineastas, apresentadores, jornalistas, professores, filósofos, religiosos, e tantos outros, que com a voz, o corpo e a escrita têm tentado incutir um pouco de racionalidade, tolerância e sentido de justiça e de beleza na vida social, nos meios de comunicação e no sistema político. (mais…)

                      Apontamentos, Atualidade, Democracia, Memória

                      Palavras em luta

                      Fotografia de Enrique Jardim
                      Fotografia de Enrique Jardim

                      A propósito do projeto de resolução do Bloco de Esquerda que visa sugerir uma designação mais inclusiva para o Cartão de Cidadão, tenho lido e escutado posições que me têm deixado estarrecido. Muitas chegam de pessoas de quem gosto, com quem partilho muitas opiniões, e que considero sensíveis, sensatas e inteligentes, mas que neste caso mostraram um lado intempestivo e desnecessariamente agreste que desconhecia, colocando-se até ao lado de gente de quem em regra se distanciam. Desde logo pelo tom agressivo e liminarmente depreciativo – porquê tanto fel e sarcasmo por uma matéria destas? –, mas também pela natureza meramente reativa e não racional de alguns dos argumentos e comentários utilizados. (mais…)

                        Apontamentos, Democracia, Olhares, Opinião

                        O 17 de Abril e a «crise de 69»

                        Coimbra69 – Fot. Fernando Marques «Formidável»

                        Foi numa quinta-feira, 17 de Abril, que em Coimbra, quando da inauguração do Edifício das Matemáticas pelo almirante Thomaz, teve lugar o episódio que deu início à «crise de 69». Falo dessa etapa da luta estudantil que marcou a vida da cidade e da sua Universidade, ajudando a ampliar a base social de rejeição do regime e, de certa forma, integrando as circunstâncias que conduziriam ao seu derrube. Os factos, bem conhecidos, não ocorreram por acaso. Resultaram de uma importante mudança que começara a ocorrer no meio estudantil universitário português a partir da viragem para a década de 1960 e tivera já um primeiro momento crítico em Lisboa no ano de 1962.

                        Ao contrário do que acontecera nas décadas anteriores, o associativismo estudantil, em consonância com uma tendência gradual de parte importante da sociedade portuguesa para se afastar do regime, começava a deter uma componente crescentemente autonomista e reivindicativa. A esta não era alheio o rápido crescimento da própria população estudantil, agora com um número cada vez maior de alunos provenientes da classe média, uma presença também cada vez mais importante de mulheres (na altura da «crise» rondavam já os 50%) e uma crescente imersão na nova e pujante cultura juvenil internacional dos anos sessenta. (mais…)

                          Democracia, História, Memória, Olhares

                          Coimbra, Luanda e a ironia da História

                          Fotografia de João Relvas/Lusa

                          Em Abril de 1969 principiou em Coimbra uma «crise académica» na qual a ampla maioria dos estudantes universitários se manifestou contra a política educativa e o autoritarismo de um regime caduco que iria durar ainda mais seis anos. Com raras exceções, a maior parte desses estudantes, se já não era da oposição, passou a sê-lo, dada a atitude inflexível então tomada pelo governo e reforçada pela ação da polícia e da PIDE. A história abalou o país, é bem conhecida e não vou aqui detalhá-la. Menos conhecido é porém o que aconteceu a partir do ano letivo seguinte, com a intensificação da repressão do movimento. Esta materializar-se-á em Fevereiro de 1971 no encerramento da Associação Académica – iniciada, eu estava lá, com a dispersão pela polícia de choque de uma assembleia que decorria de forma pacífica –, e deveu-se em primeiro lugar ao facto da intervenção estudantil se estar a politizar de forma cada vez mais acentuada, alterando a qualidade de um movimento que em 69 era ainda sobretudo de protesto. (mais…)

                            Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, Memória

                            Os dias da ira

                            Observada do exterior, a situação no Brasil parece mais confusa e perigosa a cada minuto que passa. Mas para a generalidade dos brasileiros, seja qual for o campo político no qual se situem, sê-lo-á de um modo ainda mais intenso. Terão a triste vantagem de conviver há muito com a instabilidade política, a desigualdade social e uma corrupção endémica, mas a enorme desvantagem de sofrer na pele as suas imprevisíveis e nefastas consequências. Já para nós, acantonados no observatório razoavelmente protegido deste lado do Atlântico, é sempre menos difícil, pois sofremos as suas ondas de choque somente em diferido. Por isso se entende a forma como, do lado de lá, estes dias estão a ser vividos com as paixões à solta e as cabeças bem quentes. (mais…)

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                              Uma memória dolorosa a revisitar

                              Museu da História do Gulag, Moscovo

                              Há alguns dias, a propósito do lançamento em Espanha dos diários da poeta russa Marina Tsvietáieva, Antonio Muñoz Molina escreveu o seguinte no suplemento literário do El País: «Dizia George Orwell que a grande cegueira da esquerda europeia nos anos trinta tinha sido querer ser antifascista sem ser antitotalitária: em termos mais claros, denunciava a Hitler, Mussolini e Franco [em Portugal, acrescento, também a Salazar], fechando os olhos aos crimes de (…) Estaline. Essa antiga cegueira continua sem se dissipar de todo: a diferença é que agora a ninguém falta a informação contrastada necessária para curar-se dela.»

                              Não sendo este um tema premente nas preocupações políticas da esquerda internacional, ou sequer da portuguesa, com toda a justeza e sentido mais preocupada com as prioridades do presente, estamos agora em bom tempo para olhá-lo sem temores e interditos. Como é sabido, varrer fantasmas para debaixo do tapete só os esconde temporariamente, e quando saímos das declarações diplomáticas das direções partidárias e viajamos até aos mitos e às crenças profundas de uma parte dos militantes – por vezes, até dos mais jovens, com escasso ou deturpado conhecimento da história – verificamos que eles continuam lá. (mais…)

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                                Dias de folga

                                Creio que não tem sido dada completa importância ao que representa, no plano social, a recuperação dos quatro feriados e «dias santos» que a Assembleia da República aprovou durante esta semana. Insistiu-se sobretudo na dimensão cívica e religiosa das datas em causa, em particular a propósito do 5 de Outubro e do 1º de Dezembro, e na forma como a sua recuperação tem um importante valor político e simbólico. Falou-se também de como a sua eliminação pelo governo anterior foi uma decisão fútil, sem verdadeira utilidade económica. Tendo até, ao contrário do que na cegueira administrativista que a caraterizou a anterior maioria supôs, sido prejudicial para a fluidez do consumo. (mais…)

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                                  Ler jornais (ou não)

                                  Os sinais não são de agora, mas ganharam particular relevo nos últimos tempos. A maioria dos grandes jornais especializados na atualidade, no comentário político, na informação generalista e na vida cultural, vive uma fase crítica e tem vindo a perder leitores de forma rápida e exponencial. E não apenas no que respeita às edições em papel, uma vez que o crescimento do digital, notório nos anos mais recentes, parece também ter parado. As razões são múltiplas e complexas e têm uma dimensão global, centrada em particular nos países nos quais a indústria do entretenimento e a proliferação da informação rápida e superficial têm sido mais fortes e constantes. Em termos relativos, aliás, lêem-se hoje menos jornais na Itália ou no Japão que na Índia ou na Costa do Marfim. (mais…)

                                    Democracia, Leituras, Olhares, Opinião

                                    À procura de um presidente

                                    Começo por uma nota autobiográfica. Só por duas vezes, ambas distantes, vivi as eleições presidenciais com genuíno entusiasmo. A primeira foi em 1976, quando da campanha eleitoral de Otelo Saraiva de Carvalho, tomado por muitos portugueses, entre os quais então me incluí, como capaz de se opor à reversão do processo revolucionário português que havia sido lançada com o 25 de Novembro. A segunda vez foi dez anos depois, com a candidatura de Maria de Lourdes Pintasilgo, projetada já contra a implantação do «reino dos falsos avestruzes» – a expressão foi cunhada nessa altura por João Martins Pereira, aplicando-se aos protagonistas de uma política de interesses feita a contracorrente dos ideais de Abril – cúmplices de uma democracia formal, cinzenta e amputada. À exceção desses dois momentos, o meu voto foi, nas presidenciais, sempre um voto útil, depositado em quem me parecia estar em melhores condições para impedir a vitória do candidato da direita ou que com esta aceitava pactuar. Como infelizmente acabou por acontecer há uma década, deixando o país e a república representados pela figura rústica, timorata e retrógrada da qual agora nos despedimos. (mais…)

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