O sentido do tempo e a lição de Abril

O filósofo italiano Giorgio Agamben afirmou em entrevista recente: «A minha perspetiva do tempo histórico não pode deixar de ser descontínua. Nunca se sabe onde vai parar a ideia de um tempo contínuo. A antiguidade tomou-o como um círculo. O cristianismo, como uma linha. Por mim, prefiro a interrupção. O momento da liberdade de ação».  Quem possua uma visão dinâmica do percurso histórico – não me refiro à sequência à qual chamamos cronologia, mas ao movimento que percorre as sociedades – decerto aceitará este ponto de vista. Uma perspetiva que não reconhece o valor e a necessidade dos momentos de viragem, é imobilista e incapaz de explicar a torrente dos dias. No fundo, é essa a origem última do pensamento conservador. Seja qual for o quadrante político – existe também, é sempre bom lembrá-lo, um conservadorismo de esquerda – no qual este se inscreva.

Como acontece com a vida de cada pessoa, que necessita sempre de momentos de acalmia e estabilidade, sociedade alguma é capaz de sobreviver a uma mudança acelerada e constante. Quando falo nas minhas aulas sobre a essência das revoluções, esclareço sempre que a estas, sobretudo quando são velozes e profundas, sucedem sempre épocas de ressaca e de normalização, de retorno ao sistema de hábitos. Até que um novo tempo de mudança se torne premente e apresse de novo os acontecimentos. Todavia, mesmo nestes momentos vertiginosos, uma perspetiva distanciada e reflexiva é sempre necessária, conferindo-lhes conteúdo. Sem essa reflexão, as revoluções não passariam de instantes de desordem, o que contrariaria o seu objetivo, que é produzir um reordenamento. Hannah Arendt falava da «lacuna» sempre necessária para que, mesmo em tempos de desassossego, alguma distância e alguma tranquilidade possam iluminar a desordem que eles comportam.

Vemos isso se olharmos hoje a Revolução de Abril. Quanto mais reapreciarmos as ideias e as reflexões de muitos dos seus intervenientes, melhor perceberemos que a imagem, por vezes divulgada, de um tempo de caos e anarquia, quase de coletivo desvario, é falsa. Quanto melhor conhecermos o trajeto de alguns dos seus protagonistas, militares e civis, melhor veremos como muitos deles foram de facto bússolas no meio da tormenta. Definiram-se então desejos, metas, projetos, e mesmo quando alguns destes perderam validade, ou se revelaram ingénuos ou insuficientes, nem por isso deixaram de pautar modificações das quais hoje permanecemos herdeiros. Utopias, tornadas reais, que produziram o presente justamente porque se lhes ligaram ideias que resultaram de processos pessoais ou coletivos de amadurecimento histórico e político. E que, numa perspetiva de rutura, foram pensados em termos de renovação e de futuro. Daqui a legitimidade dos momentos de viragem e, ao invés, o caráter conformista e imobilista das propostas que pretendem impor a ideia de que «as coisas são como são», ou, como agora tanto temos escutado, de que existe um caminho único, face ao qual «não há alternativa».

Ao contrário do proclamado por quem procura associar a opinião pública a uma mecânica de passividade, são precisamente estas ideias, esta atração para a imobildade e a fatal aceitação de um destino, que se revelam irrealistas. São elas que nos empurram para o precipício de um tempo cor de cinza, de inércia e desesperança. Pelo conhecimento que detêm do caráter relativo dos momentos da História e das suas revoluções, os historiadores têm-nos mostrado que só perdura aquilo que um dia incorporou a ousadia. Aquilo que interrompe, como disse Agamben. É esta a lição de Abril.

Rui Bebiano

Fotografia de Yannis Behrakis. Publicado no Diário As Beiras

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