O «menino de Alepo» e as leituras enviesadas

Já estava um tanto admirado por não aparecer de imediato algo que pudesse denegrir a imagem perturbante e icónica do «menino de Alepo» e servisse de defesa do governo sírio de al-Assad, o suposto herói da luta anti-imperialista, bem como dos seus aliados russos. Vindo daquele setor da opinião para o qual todo o mal de um mundo muito simplificado e apenas a dois tons tem como responsável e beneficiário único e exclusivo os Estados Unidos da América, financiador ultraconsciente e contumaz da Al-Qaida e do Daesh.

Um juízo que não iliba, obviamente, sucessivos governos norte-americanos de políticas desastrosas, erradas e danosas no Médio Oriente que alimentaram de facto os grupos islamitas, é verdade, mas que é perigosamente redutor. É óbvio também que aquela fotografia foi usada como uma ferramenta de propaganda, como tem acontecido em todas as partes e em todos os conflitos pelo menos desde a Guerra da Crimeia de 1853-1856. Mas a desmontagem que dela se está a fazer pode atingir proporções insólitas.

Hoje passou-me pelos olhos um artigo do jornalista José Goulão, um dos expoentes nacionais dessa área de opinião, que termina assim: «Ocupando Alepo estão os «moderados» criados pela sra. Clinton & Cia e, sobretudo, os verdadeiros senhores da guerra na Síria, a al-Qaida e o Daesh. Quem os protege, tentando evitar o regresso à legitimidade institucional, são os interesses igualmente defensores do nosso «civilizado modo de vida» e que, para tal, não hesitam em recorrer à mais cobarde pedofilia como arma de propaganda e de guerra.»

Como é habitual no que escreve, o artigo de JG contém uma sobrecarga de «provas», que não se encontram em mais lado algum, com as quais pretende «esmagar» o eventual contraditório e «comprovar» as suas teorias da conspiração de sentido único. Os termos em que o faz associam ainda, de forma inaceitável, a divulgação da imagem da criança em estado de choque a práticas de pedofilia. A explicação está na sua cabeça, presume-se. Quanto ao estado de sofrimento sem fim em que se encontra a população sobrevivente de Alepo, esse é silenciado. Não serve a leitura política desejada, logo não existe. São inimigos, ponto. Ataca também, considerando-a como cobertura de atividades «da CIA», a ONG White Helmets, candidata a Nobel da Paz, que se dedica a salvar vidas na cidade sitiada. Goulão classifica esta, aliás, como “ocupada”, não como cercada.

Recordo ataques análogos, de várias proveniências mas um deles escrito pela mesma pessoa, feitos a Malala Yousafzai, a menina paquistanesa atacada pelos taliban, ativista e hoje prémio Nobel, acusada de ser um mero instrumento de propaganda nas mãos do imperialismo norte-americano e sendo desvalorizado o seu combate heróico, com risco da própria vida, pelo direito à educação das meninas e das crianças do seu país. E fico-me por aqui sobre este triste e lamentável assunto.

[escrito originalmente para o facebook]

    Atualidade, Democracia, Direitos Humanos.