O desaparecimento da Queima das Fitas, tal como o das praxes, materializados em Coimbra com o «luto académico» decretado em 1969, foi um gesto coletivo de coragem e de grande impacto político, até porque se ergueu contra as expectativas de algumas famílias ciosas dos seus meninos doutores e as conveniências de parte do comércio da cidade. No entanto, não caiu do céu e, visto sob a perspetiva do tempo, não pôde deixar de ficar ligado a uma gradual democratização política dos valores em curso dentro das comunidades estudantis universitárias da cidade e do país. A escolha dos estudantes foi o resultado de uma evolução natural e daí o facto de, nos anos que se seguiram, a suspensão de tais práticas não ter sido levantada.
Em 1972, porém, um grupo minoritário de estudantes, conotados então com a direita académica, tentou reatá-las. Apesar de nessa precisa altura o movimento estudantil começar a viver uma fase particularmente aguda de radicalização dos objetivos de luta, e de a repressão da polícia e da PIDE-DGS se ter acentuado. Até 1969, de facto, o estudante oposicionista, apesar de vigiado e por vezes punido, gozava quando preso – se não fosse declaradamente militante comunista ou da ainda incipiente extrema-esquerda -, de um estatuto de relativa proteção no que respeitava ao tratamento por parte das polícias e dos tribunais. Na viragem para a década de 1970 a situação modificou-se e muitos foram os estudantes presos, torturados e sujeitos a penas que só não foram muito prolongadas porque entretanto ocorreu o 25 de Abril.
Por isso, essa tentativa de reatar a Queima das Fitas, que aconteceu primeiro no Porto (talvez curiosamente, dada a primazia de Coimbra na matéria…) e depois na cidade do Mondego, foi objeto de larga contestação por uma importante faixa de estudantes. Os panfletos que a seguir se transcrevem, na sua radicalidade e na ingenuidade da sua linguagem, representam o testemunho de um dos setores estudantis que se lhe opunham. Lidos hoje, estes documentos poderão fazer sorrir, mas, pelo menos por alguns setores, minoritários mas ultra-ativos e certos das suas razões, foram então levados muito a sério.
Sendo formalmente dois, são de facto três os documentos que a seguir se transcrevem (disponíveis nos arquivos do Centro de Documentação 25 de Abril):
– O primeiro, saído em Coimbra, designa-se “Queimar a Queima” e foi da responsabilidade dos Núcleos Sindicais de Base, uma organização estudantil proto-maoista da qual fui um dos fundadores na cidade (éramos sete na fundação: o Zé, o Pedro, o Rui, o outro Rui (eu), a Teresa, o Teotónio e o Sérgio). Fui o autor do essencial da primeira parte (talvez menos ortodoxa que o habitual, o que me terá valido ficar doravante dispensado de escrever panfletos). Só uma parte é original, pois incorpora a partir da segunda página, como se pode ver, outro documento sobre o mesmo tema, produzido no Porto e, segundo o próprio, da autoria de José Pacheco Pereira.
– O segundo panfleto intitula-se «A Queima foi Queimada! A Luta Continua!» é um balanço mais ou menos épico e apologético, feito também pelos NSBs – que em breve iriam deixar cair o «de base» após um debate enérgico a propósito de certos «desvios guevaristas» – do combate travado em Coimbra contra a direita estudantil que, ao arrepio da luta da maioria da academia, decidira tentar repor o evento. Não sei identificar a autoria, apesar de o ter ajudado a imprimir e a distribuir, mas creio ser notória uma alteração da linguagem, com um jargão político mais acentuado.
Quanto à qualidade de ambos, era aquela que permitiam os policopiadores «vietnamitas», movidos, noite fora, a stencil, a bisnagas de tinta e a força de braço. Ah, e a alguma coragem também.