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Kamala e a América

A noite passada, madrugada aqui em Portugal, o discurso de aceitação de Kamala Harris, perante a Convenção do Partido Democrata, como candidata à presidência dos EUA, foi, como seria de esperar, um excelente exercício de determinação e de retórica, recebido no centro de congressos de Chicago com um enorme entusiasmo e de forma triunfal. Se tivesse, como um certo presidente da República, a incumbência de atribuir notas de 0 a 20 no domínio da oratória, se a Barack e Michelle Obama teria atribuído, sem pestanejar, a ambos um 20, a Kamala dou sem qualquer dúvida um 19. Mas os Obama são, de certa forma, seres de outro planeta no campo da capacidade de comunicação, enquanto a afirmativa candidata democrata ainda pertence ao domínio do humano.

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    As vidas, as obras e a complexidade de tudo

    De tempos a tempos, quando por alguma razão – seja uma polémica, um prémio recebido ou o seu desaparecimento físico – se destacam nos jornais ou nas redes sociais figuras com um recorte público, é fácil surgirem arrebatados testemunhos, sejam os de quem apenas as elogia ou, no lado oposto, aproveita o momento para as denegrir. Umas e outras tendem a desvalorizar a complexidade do humano e o facto, sem exceções, de jamais alguém ter apenas realizado coisas formidáveis ou só cometido erros, oferecido unicamente beleza ou defendido ideias detestáveis. E, todavia, um grande número de pessoas tende a olhar as demais, sobretudo aquelas que se destacam da mediania, apenas sob uma perspetiva unívoca, dividindo-as de forma, singelamente dualista, apenas em indiscutivelmente «boas» e inequivocamente «más». 

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      Esperança e expectativa

      A renovada candidatura democrata à presidência dos Estados Unidos, agora com duas figuras enérgicas, carismáticas e progressistas no boletim, está a oferecer uma nova esperança a quem já dava por certa a vitória de Trump e do seu programa de destruição da democracia na América e de agravamento do equilíbrio mundial. Kamala Harris e Tim Waltz têm ambos um tom vibrante e um currículo de defesa dos direitos humanos, das mulheres, do serviço público e da liberdade que é muito positivo. Quem acompanha a realidade política norte-americana sabe que os meandros do Partido Democrata são complexos e nem sempre transparentes, mas esta não é altura para esquisitices, uma vez que são, de facto, dois universos opostos que estão em confronto. Perante o que se avizinhava, e como já mostram as sondagens, há agora uma viragem que todos os e as democratas do planeta esperam que se mantenha e alargue até ao voto popular de 5 de novembro.
      [Foto: Chris Lachall /USA Today]

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        Fé ou convicção

        Aquilo a que chamamos fé designa habitualmente uma crença de natureza religiosa, política ou moral que não carece de justificação racional e determina o empenho diário de quem a possui em prol do ideal no qual ela se apoia. Já a convicção é um estado de espírito que resulta de um facto ou de numa ideia cuja existência e sentido podemos provar de modo racional, deste processo resultando uma dose de certeza e de necessidade que conduz à ação. Os dois conceitos parecem, pois, antitéticos, mas quando o primeiro deles em certas circunstâncias contamina o segundo, tudo o que daí resulta é pervertido, passando a apresentar-se como convicção aquilo que não passa de uma extensão de fé. Na história humana, particularmente com religiões assassinas ou ideologias totalitárias, este contágio tem produzido sucessivos desastres.

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          Um mapa «da Palestina» negativo e danoso

          Está a circular profusamente pelo Facebook e outras redes sociais, deixado inclusive por pessoas que muito prezo ou de quem sou amigo, e que acredito terem sobre o tema posições mais equilibradas e racionais, e não apenas emotivas e epidérmicas, um suposto mapa «da Palestina», legendado em árabe e na perspetiva do Hamas, destinado a celebrar o combate do povo palestiniano pela sua independência. A causa é, sem qualquer dúvida, justíssima, para mais nesta altura tão dramática para a população de Gaza, e essa lembrança é adequada. O mapa em causa, todavia, além de estar manifestamente errado, por muito incompleto, parte de um pressuposto político, vindo de determinado grupo, que é negativo e danoso para a própria causa palestiniana.

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            A guerra civil como «solução»

            Refere Jorge Almeida Fernandes, em artigo saído no Público de hoje, que um inquérito do Chicago Project on Security and Threats, da Universidade de Chicago, indica que que 10 por cento dos norte-americanos seriam favoráveis à violência para impedir que Trump chegue à presidência, enquanto sete por cento se declaram favoráveis à violência para reinstalar Trump na Casa Branca. Isto é, a confiarmos no estudo, 17% das pessoas de uma nação com 334 milhões de habitantes, ao redor de 57 milhões de seres humanos, defende, na prática, que a solução para os seus problemas coletivos será uma nova guerra civil. Para além da situação de bipolarização agregadora do ódio, a prova provada da continuada instalação da ignorância entre uma parte imensa da população dos Estados Unidos da América, seja a da história do seu próprio país, ou a dos simples efeitos de uma qualquer guerra civil, sempre a mais terrível e destruidora de todas ocorra ela onde ocorrer. [originalmente no Facebook]

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              Quatro notas sobre as eleições em França

              1. A melhor notícia da noite eleitoral de ontem foi, sem sombra de dúvida, a derrota da extrema-direita francesa, dada desde há meses, pela generalidade dos média e uma maioria de comentadores, como inevitável vencedora com uma maioria absoluta. A segunda melhor foi a clara vitória da recém-formada Nova Frente Popular, que ultrapassou todas as expectativas com um programa essencialmente reivindicativo, de resistência e de defesa de direitos, apoiada em boa medida num eleitorado urbano e jovem que se mobilizou. 

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                Perigo no Reino Unido

                As notícias sobre a vitória incontestável e estrondosa do Partido Trabalhista nas eleições gerais que tiveram lugar ontem no Reino Unido, com 412 deputados e 9,8 milhões de votantes para os 121 dos conservadores, com 6,8 milhões, merecem um olhar cuidado. Desde logo porque ela apenas foi possível com uma considerável inflexão dos trabalhistas ao centro, o que lhes poderá ter concedido a fácil vitória, mas os irá forçar também a manter compromissos que facilmente trarão problemas e descontentamento.

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                  Objetivo: esperança

                  O que está a ocorrer em França e que as eleições em curso mostram com clareza, como, em diferentes tonalidades, está também a acontecer na generalidade das democracias, é um renascimento e um avanço da extrema-direita. Apoiada hoje, não em ideologias de superioridade étnica e em grupos de choque nas ruas, mas nas estratégias oblíquas do populismo e na suja manipulação da informação e da verdade, cavalgando, ao mesmo tempo, as facilidades, a degradação dos projetos e um estado de entorpecimento presentes entre as forças progressistas. Talvez isto possa servir de safanão para que estas possam despertar do torpor e do hábito, abandonando o sectarismo e abrindo-se mais à inovação dos projetos e à colaboração entre si. Trata-se de uma esperança, é certo, mas de esperança sempre se alimentou o que de mais positivo emergiu do trajeto humano.
                  [Originalmente no Facebook]

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                    O 25 de Novembro que foi (e o deles)

                    Muito tem sido escrito por aí, nestes tempos mais próximos, sobre os acontecimentos de 25 de Novembro de 1975. A começar por reflexões de pessoas, historiadores e não só, que sabem do que estão a falar, e a terminar em banalidades ou atestados de ignorância. Limito-me, pois, a um banal parágrafo. Para resumir muito resumidamente, vou ao essencial: o que aconteceu naquele dia traduziu-se historicamente numa vitória do Partido Socialista, da «ala moderada» do MFA e, em consequência, do modelo constitucional da democracia representativa. Marcou também, como toda a gente sabe, o termo da fase necessariamente experimental e mais intensa da nossa revolução democrática. Recordo-me de, na manhã do dia seguinte, ter acordado tristíssimo e com uma sensação amarga de «fim da utopia». A tentativa de aproveitamento da direita e da extrema-direita para os seus objetivos revanchistas, procurando construir um sentido simbólico sem qualquer referente histórico ou o menor fundo de verdade, é patética. Mas também significativa e perigosa, sobretudo por estar a inquinar a opinião pública.

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                      Três reflexões em tempo de pós-europeias

                      1. A primeira coisa que um observador progressista dotado de razoável sentido de realismo político dirá é que os resultados globais das eleições para o Parlamento Europeu não foram tão maus quanto se esperava. Ao contrário de muitas sondagens e de diversos textos de reconhecidos analistas, a extrema-direita populista, apesar de ter crescido – e isso aconteceu particularmente em dois estados centrais, como a França e a Alemanha – não conseguiu, longe disso, impor uma maioria soberanista e antidemocrática. Ao contrário, os partidos democráticos do centro-direita e os do centro-esquerda, mantêm-se em maioria, o que augura, se nada inesperado acontecer, cinco anos de laboriosas negociações e, em muitos casos, de impasses. Em contrapartida, as forças associadas à política verde e às causas da esquerda recuaram de uma forma inquestionável, o que é uma má notícia, reduzindo a possibilidade de uma reformulação da política europeia no sentido cada vez mais imperioso da proteção do clima, da solidariedade social e da defesa da paz e dos refugiados. 

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                        É preciso não calar

                        Os termos nos quais hoje o jornalista Manuel Carvalho, do Público, aborda o tema do constante linguajar ofensivo do Chega – dirigido a etnias, a nacionalidades, a mulheres, a ciganos, a negros, a pessoas LBGTQIA+ ou simplesmente a cidadãos de esquerda – é típica de um modo de encarar este problema que me parece não apenas errado, mas inaceitável. Considera basicamente MC que o alarido levantado à volta do tema apenas favorece os deputados do Chega e o seu crédito junto de parte importante do eleitorado. Acaba, como muita gente também faz, por defender que se deve evitar levantar a questão em demasia. Como antes outras pessoas achavam que não se deveria nomear sequer a Ventura e ao seu partido, deixando-lhes na verdade o campo livre. A história do século XX, como a deste que agora partilhamos, está recheada de exemplos sobre o modo como ignorar a extrema-direita – ou os movimentos de pendor totalitário de uma forma geral – apenas tem servido para lhes dar lastro e espaço de manobra. Fazer política é também, talvez até sobretudo, divulgar a tolerância e a civilidade, combatendo abertamente, ao mesmo tempo, quem as rejeita.
                        [originalmente no Facebook]

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                          O 25 de Abril e a (falta de) cultura

                          «Maioria diz que democracia é “preferível”, mas 47% apoiariam “um líder forte” sem eleições». O título encima no Público uma notícia destacada sobre um significativo estudo do ISCSP de que o jornal foi parceiro. Conhecendo razoavelmente o meu país e estes cinquenta anos de história, não tenho dúvida alguma em afirmar que uma das razões desta tendência – não a única, é claro, mas uma das principais – se funda na ignorância do passado e na falta de densidade cultural da maioria dos cidadãos, com a qual o regime democrático e a generalidade dos partidos, aceitando nivelar a instrução básica por baixo e fazendo da área da cultura sobretudo um bibelô, sempre contemporizou. [originalmente no Facebook]

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                            Uma homenagem e um equívoco

                            É hoje, 17 de Abril, quando se completam 55 anos sobre o episódio que desencadeou a «crise académica» de 1969, inaugurado em Coimbra pelo PR um mural de homenagem àquele momento que é centrado em Alberto Martins, então o presidente da AAC e o seu mais conhecido protagonista, dado o papel que teve ao pedir a palavra em nome dos estudantes. Parece-me bem e justo, embora discorde da forma como o episódio, que teve uma natureza coletiva e distendida no tempo, continua a ser recordado e representado como centrado num momento e numa só pessoa, que «apenas» foi instada – como a própria ainda há dias reconheceu num debate em que também participei – a falar em nome de todos.

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                              Não banalizar o fascismo

                              É de todo contraproducente, além de um erro histórico gritante, apelidar de fascismo o que não é fascismo, apenas porque o objeto assim apelidado corresponde a escolhas e atitudes que articulam com posições de natureza conservadora ou assumidamente de direita. A extrema-direita atual, tirando curtas franjas completamente retrógradas e que ainda sentem nostalgia pelos regimes fascistas do século passado, não é formalmente fascista: é antes populista e xenófoba, mas também neoliberal e defensora das possibilidades que a democracia lhe oferece. Chamá-la de «fascista» é anacrónico e instala a confusão, desarmando os cidadãos perante as suas iniciativas, de uma natureza bem diversa da dos fascistas do século passado.

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                                O óbvio, antes que esqueça

                                Parece-me mais ou menos óbvio que nesta altura de viragem entre nós, o combate da esquerda plural, tanto no isolamento e no afastamento do populismo de extrema-direita como na busca para procurar evitar perder os inegáveis, ainda que sem dúvida insuficientes, avanços progressistas gradualmente obtidos a partir de 2015, passa por uma aproximação política e até orgânica das suas partes. Defendo-o há muito, se bem que quase sempre a nadar contra as marés do sectarismo ou da simples cegueira política. Isto não exclui, é claro, as diferenças, algumas bastante fortes e históricas, que existem entre as suas partes, mas tende a relevar, e sobretudo a desenvolver, aquilo que, no essencial, se não as une, por certo as pode aproximar.

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                                  No século XIX um conjunto de teóricos urbanistas defendeu, diante do crescimento das cidades e da sua população marginalizada e politicamente instável, a necessidade de afastar as «classes pobres» para as periferias das cidades. Assim, pensavam, se reduziria o perigo que representavam para os poderosos, e os centros urbanos seriam mantidos mais bonitos, mais limpos e mais tranquilos. Na Paris dos meados desse século foi particularmente importante a atividade do perfeito Barão Haussman, o «artista demolidor». O projeto de renovação da cidade que levou a cabo teve como objetivo, além de tornar a cidade de certo modo mais bela e imponente, pôr termo às constantes revoltas populares e barricadas. Ao mesmo tempo, serviu para expulsar os antigos moradores das ruelas centrais e aqueles que, havia pouco tempo, ali tinham afluído vindos das áreas rurais. Para a burguesia parisiense, em breve essa população se tornou uma realidade quase inexistente, confinada a escassas e necessárias atividades importantes para o aprovisionamento da capital.

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                                    O dogmático falhado

                                    Poucas vezes escrevo apontamentos num registo autobiográfico. Entre outros motivos, porque sei que a autobiografia é sempre complacente e, em consequência, porque experimento algum pudor em expor aos outros essa indulgência. Porém, de vez em quando lá liberto um episódio, no qual, de uma forma óbvia, aos meus próprios olhos sairei bastante favorecido. Este é a propósito da tendência natural que tenho para resistir ao pensamento dogmático e às atitudes que, por fé, medo ou ignorância, excluem o olhar sempre crítico, embora em regra convicto, que nesta vida procuro manter.

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