Arquivo de Categorias: Apontamentos

Programas eleitorais apenas reivindicativos

Leio com cuidado as propostas mais destacadas que os dois principais partidos à esquerda do PS adiantam para esta campanha eleitoral. Tenderia a dizer, não que «concordo com tudo», pois algumas apontam para medidas de governo dificilmente exequíveis, mas que estou de acordo com as áreas de intervenção governamental onde elas são necessárias, em alguns casos mesmo urgentes. Trata-se de medidas que aproximem a sociedade portuguesa de um melhor quadro de justiça social e de bem-estar nos domínios da habitação, da saúde, da educação, da justiça fiscal, da legislação laboral, da comunicação social, da corrupção, do clima, dos salários, das pensões e do combate à pobreza. Para todas, em diferentes escala, reivindicações concretas, que apontam para medidas possíveis e outras impossíveis, ainda que todas, sem a menor dúvida, muito desejáveis.

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    Talvez o fim do meu diário

    Sou fiel leitor do Diário de Notícias desde os finais dos anos 50. Foi o meu avô paterno, seu correspondente e representante local, quem, antes ainda da primária, me ensinou a ler pelas então enormes páginas do jornal, transmitindo-me ao mesmo tempo esse vício da informação e sede de notícias que me acompanha até hoje. Tinha 5 anos e o avô Manuel gostava de me exibir aos amigos, como um macaquinho de bibe, lendo-lhes notícias inteiras. Que, obviamente, pouco ou nada compreendia.

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      Dois princípios para dois meses

      Ultrapassado o período do Natal e do novo ano, no qual boa parte das pessoas presta pouca atenção a tudo o que vai para além do seu círculo pessoal e familiar, entramos agora, aqui em Portugal, nos cerca de dois meses que nos vão levar às eleições legislativas antecipadas. Partilharei regularmente aqui o que me parecer poder ter algum interesse público. Para já, refiro apenas dois princípios sobre os quais tenho já poucas dúvidas.

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        A boa coerência

        A coerência, entendida como forma de equilíbrio entre aquilo que alguém proclama, aquilo em que acredita e o que faz, é uma qualidade positiva e, se não rara, pelo menos escassamente distribuída. Não pode, porém, ser confundida, e tantas vezes é-o, com a teimosia das atitudes ou a calcificação do pensamento, próprias de quem se recusa a conformar as convicções às mudanças do mundo e da história. Por este motivo, ser-se ortodoxo, no sentido de tomar sempre como falsos e inaceitáveis ideias e factos que questionam as suas ideias ou as revelam caducas, não pode ser tomado – e por vezes assim é, quando aplicada a alguns percursos de vida – como grande qualidade. Existe, todavia, uma coerência positiva: a de quem não desiste de uma perspetiva do mundo crítica e atenta à mudança, ou a de quem vê nos princípios elementares da solidariedade humana algo de que jamais abdica. Por muito que em alguns momentos para o fazer tenha de se mostrar «incoerente» e fazer escolhas difíceis
        [Originalmente no Facebook]

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          Quando deixámos de nos tocar?

          Há algumas décadas ainda era natural, aqui em Portugal, ver pessoas que davam grandes abraços na rua quando se encontravam, amigas que passeavam de mão dada, homens que caminhavam de braço dado enquanto conversavam. Para além do hábito, hoje quase raro, de ver namorados de mão na mão à mesa do café ou nos bancos de praças e jardins. Nas fotografias de grupo, em jantares e encontros, os dedos por cima do ombro ou a apertar a cintura do amigo ou da amiga, eram igualmente comuns. Juntando-lhes o costume do beijo fraterno entre homens e mulheres, entre mulheres e mulheres ou, embora menos frequente, entre homens. É difícil precisar em que momento este hábito começou a recuar e estas formas de aproximação passaram a ser, como agora acontece, excecionais.

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            Reforma e idadismo

            Desde que há cerca de ano e meio fechei a fase da minha vida pessoal como professor no ativo e passei à condição de «aposentado» – um quase eufemismo utilizado para mascarar a dimensão negativa, em regra pejorativa, muitas vezes socialmente associada à palavra «reformado» – começando, como é natural, a ter uma vida algo diferente da que antes tinha. Não que me falte trabalho para realizar ou projetos para desenvolver, e alguns amigos já nem me devem poder escutar a repetir que trabalho mais agora do que antes, o que até é verdade, embora num horário bem mais maleável e sem ter de cumprir os fretes impostos pela burocracia, mas porque mudei inevitavelmente alguns dos meus hábitos, ritmos e trajetos.

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              O país de Novembro

              Afirma o arquiteto e designer francês Philippe Starck, em entrevista saída no diário Público: «Portugal é o último país do mundo onde encontro os valores que acredito que todos devemos conhecer. E que nós, franceses, tivemos há um, quase dois séculos, penso, e que são de uma humanidade profunda, de respeito, de profunda afeição, uma grande capacidade amorosa e diversa, um grande cuidado com o outro. É o último país com valores humanos.» É claro que esta é uma afirmação subjetiva e parcial, por certo aplicável deste modo a vários outros lugares do mundo. Todavia, é verdade que, ao longo das últimas décadas, entre nós se desenvolveu uma cultura maioritariamente de afabilidade e de tolerância que foi herdada, sem dúvida, não dos supostos «brandos costumes» inventados pelo salazarismo, mas dos valores de solidariedade e de humanidade emanados de Abril, e que, mesmo muitos daqueles que formalmente se lhes opunham, acabavam por partilhar. Suspeito que, por via da chegada e instalação da cultura global do ódio, estejamos no fim desse ciclo. O país de Abril a dar lugar a um país de Novembro que não se distingue dos outros.
              [originalmente no Facebook]

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                Erros e desculpas

                Leio esta manhã um artigo do Público – «Quando os políticos pedem desculpa pode ser por “sobrevivência” ou por “estratégia”», assinado por Mariana Tiago – que me parece conter uma perspetiva negativa e perniciosa para a observação pública da democracia. Pelos dois motivos que brevemente exponho. Em primeiro lugar por qualificar os «políticos» como uma espécie à parte, na qual a dimensão humana tem sobre si uma camada da conveniência e de calculismo que, a meu ver obviamente, se aplica apenas a alguns. Olhar os «políticos» como gente à parte – «eles», diz-se por vezes – é próprio do discurso populista, e se o artigo não se integra neste universo, na realidade alimenta-o. Em segundo, por não incluir uma única referência à dimensão ética que deve desejavelmente conter a atividade política e cidadã. Para a autora do artigo, e aparentemente, também para as pessoas que ouviu para o escrever, os «políticos» são necessariamente pessoas ambiciosas e opacas, não podem ser- e alguns são-no – apenas honestos, tanto quanto possível transparentes, e capazes de genuinamente reconhecer os seus próprios erros. Podendo esta prática reforçar até a grandeza de quem a assume.
                [originalmente no Facebook]

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                  Duas posições contra a paz

                  O apelo, feitos por muitas pessoas que se têm manifestado a seu favor, à existência de um Estado palestiniano «do rio até ao mar», isto é, do Jordão ao Mediterrâneo, significa apoiar o fim do Estado de Israel e a inversão da condição de pária do povo palestiniano para o judeu. Ela nega, no fundo, a única solução possível, embora difícil, para a martirizada região e para os povos que a habitam: a existência de dois Estados independentes, política e economicamente viáveis, pacíficos e que, um dia, poderão até colaborar.

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                    O inaceitável cerco ao PS

                    Que fique muito claro: tendo muitíssimas pessoas amigas, ou que admiro, seja pelo que fazem ou apenas como seres humanos, na condição de militantes, de simpatizantes ou de votantes do Partido Socialista, sempre mantive em relação a este uma razoável distância crítica. Apenas por uma vez votei PS nas legislativas, jamais o fiz nas autárquicas e, nas presidenciais, só coincidimos no apoio dado a Mário Soares e depois a Jorge Sampaio. Afora estas ocasiões, somente em algumas importantes campanhas cívicas nos aproximámos.

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                      O próximo cenário

                      A decisão do PR no sentido de dissolver a Assembleia da República e convocar eleições não foi a melhor solução. Todavia, foi tomada em termos menos gravosos do que se chegou a supor, dado permitir a aprovação do Orçamento de Estado para 2024 e apontar para uma data eleitoral, 10 de março, suficientemente distante para deixar que o Partido Socialista se recomponha politicamente com nova liderança e uma linha política necessariamente revista. Se o não tivesse feito, deixaria por certo mais satisfeitos os partidos da direita e da extrema-direita que, com o apoio de uma comunicação social maioritariamente sensacionalista e manipuladora, por certo cavalgariam o ruído causado pelo estranho caso que forçou António Costa a pedir a demissão, condicionando desse modo a reflexão serena e a clara enunciação de propostas que as eleições legislativas sempre requerem.

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                        A crise e o escrutínio

                        1. É imprudente, e apenas resultado da ambição de poder ou de cegueira política, exigir eleições antecipadas neste momento. João Miguel Tavares, de quem habitualmente divirjo (e muito), explica porquê: o PS detém uma maioria absoluta no Parlamento; existe uma altíssima probabilidade de as próximas eleições virem a produzir uma solução governativa muito mais instável do que a actual; o PRR, com um Governo em gestão e meses de campanha eleitoral, poderá nunca vir a ser executado na totalidade; a TAP e o aeroporto ficarão congelados; a entrada em vigor do Orçamento do Estado será posta em causa; o PS não terá tempo para assimilar o que lhe aconteceu; e o PSD e a comunicação social não terão tempo para escrutinar Luís Montenegro e a sua equipa.

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                          António Costa

                          Em especial nos tempos mais próximos, discordei de algumas opções políticas e de certas escolhas processuais de António Costa. Penso que essa usura do poder que, em regra, ao fim de um certo tempo vai afastando quem governa de quem é governado, por alguns tomada como inevitável, o foi afetando também. Não esqueço, todavia, o que lhe devo como a pessoa que em primeiro lugar, num gesto de ousadia política, nos libertou do governo de direita Passos-Portas-Troika, e do estado de empobrecimento e de depressão coletiva em que este desgraçado trio tinha mergulhado o país. Perante as circunstâncias – que mais parecem configurar uma espécie ‘sui generis’ de golpe de Estado – compreendo que não tivesse outra solução além daquela que escolheu, mas como não sou ingrato ou esquecido, nesta hora de despedida agradeço-lhe ter-nos devolvido o país. [Originalmente no Facebook]

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                            O imperativo da paz e as «identidades assassinas»

                            Uma frase de Camus, deixada em 1945 no jornal clandestino da Resistência Combat, proclamava que «a paz é a única batalha que merece a pena ser travada». Exprimia um sentido de justiça e um imperativo ético cuja formulação permanece atual. Neste artigo ajuda a sublinhar a necessidade de um combate pela paz entre a Palestina e Israel, possível num quadro de equilíbrio apenas alcançável através da solução de dois Estados independentes, livres e cooperantes, recomendada desde 1974 pela ONU com base na divisão territorial anterior a 1967. Após oito décadas de conflito sangrento e traumático, da intensa presença de ódios instalados, de interferências externas potencialmente trágicas e do sofrimento dos povos, sobretudo do palestiniano, ela será sempre dificílima de obter; no entanto, as alternativas são piores.

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                              O tal mapa de 1947

                              A propósito do mapa da Palestina que anda por aí a ser reproduzido, datado de 1947, um ano antes da fundação do Estado de Israel, destinado a «provar» que não existia ali nenhum território chamado Israel. Desde já, isto não é verdadeiro, pois a designação existe na região há pelo menos três mil e trezentos anos. O primeiro registo histórico do termo Israel surge na Estela de Merneptá, documento epigráfico que celebra as vitórias militares do faraó Merneptá, datado do final do século XIII a.C. Depois, os judeus nunca deixaram de habitar a região, apesar de terem recomeçado a afluir em maior quantidade sensivelmente a partir de 1850, e mais ainda após o Holocausto. Depois ainda, toda aquela região, no mapa genericamente designada Palestina – na origem «terra dos filisteus» -, é uma manta de retalhos cultural, política, linguística e religiosa, combinada com traços comuns a todos os povos, incluindo judeus e palestinianos. Israel é também plural, apesar dos esforços dos conservadores belicistas e da extrema-direita sionista para o impedir. Finalmente, e para não cansar: imediatamente antes da independência de Israel o território, que havia sido controlado durante séculos pelo Império Otomano, era-o pela Grã-Bretanha. Situação colonial que se vivia na data do tal mapa. Quando não sabemos ou não queremos saber, um direito que nos assiste, o melhor é não falarmos à toa.
                              [Originalmente no Facebook]

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                                Análises & «Análises»

                                Análise, lembra o Priberam, é «um exame minucioso de uma coisa em cada uma das suas partes», podendo ainda incluir «a separação dos princípios componentes de um corpo ou de uma substância» e corresponder a «um exame que se faz de uma produção intelectual». Toda a vida, em que, a par do trabalho mais metódico ligado à atividade profissional, escrevi pequenos textos de circunstância que apenas exprimiam uma leitura simples ou uma opinião – comecei a escrever em jornais em 1970 precisamente com uma pequena rubrica de notas pessoais de um parágrafo chamada «Conta-Gotas» – fui-os vendo rotulados de «análises».

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                                  «Barbie» em 2023

                                  O «Síndrome da Barbie» traduz o desejo de ter uma aparência física e um estilo de vida idêntico ao da boneca, lançada em 1959 pela Mattel. Ao longo de sucessivas gerações, tem sido associado a raparigas pré-adolescentes de origem caucasiana, embora possa ser aplicável a diferentes faixas etárias, géneros ou etnias. A síndrome é vista como uma forma de distúrbio dismórfico corporal e tem imposto determinados modos de parecer, estando associada a graves distúrbios alimentares ou a experiências de elaborada cirurgia estética. Juntamente com o seu «par» Ken, tem vindo também, ao longo de décadas, a servir para tornar hegemónica em muitas crianças uma noção de feminilidade ou de masculinidade profundamente formal, estática e contrária aos avanços no campo da igualdade de género e da diversidade no domínio da sexualidade.

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                                    JMJ: crítica e discriminação

                                    Uma boa parte da opinião pública portuguesa, seja aquela que tem voz na imprensa e televisão ou a que se exprime principalmente através das redes sociais, tem vindo a fazer críticas à forma como se organizou e está a funcionar a Jornada Mundial da Juventude de 2023. Boa parte delas prende-se com o despesismo excessivo e absurdo, parcialmente levado a cabo com recurso ao erário público de um Estado que se autodefine como laico. Outra parte liga-se ao modo como o evento está a perturbar a vida corrente de uma boa parte de cidadãos que com ele rigorosamente nada têm a ver. Outra ainda, esta de uma natureza mais objetiva, respeita ao empenho da Igreja católica portuguesa no evento por comparação com a sua simultânea recusa em tomar posição sobre graves e provados comportamentos que têm sido imputados a muitos dos seus membros e colaboradores.

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