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Os Coldplay na paróquia

Coimbra vai ter a tranquilidade da sua vida habitual profundamente afetada durante quase uma semana. Ruas centrais cortadas, circulação condicionada ao longo de vários dias, hotéis lotados, bairros inteiros com o acesso limitado a moradores, dezenas de milhares de ruidosos forasteiros na cidade. Ao mesmo tempo, em muitas conversas e na imprensa local o momento é tratado como se de algo de extraordinário para a paróquia se tratasse. O motivo é um conjunto de concertos da banda londrina de rock alternativo Coldplay, em 27 anos de vida com apenas dois álbuns de êxito junto da crítica: «Parachutes», de 2000, e «A Rush of Blood to the Head», de 2002, que repetia já a sonoridade do primeiro.

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    Jornalistas… ou nem por isso

    Não apenas por ter aprendido a ler através de um jornal diário, por escrever na imprensa há mais de cinquenta anos, por ter dado aulas ao longo de cerca de uma década num curso de jornalismo de uma universidade pública, ou ainda por tomar a comunicação social como crucial para o adequado funcionamento das sociedades democráticas, tenho o maior respeito pela profissão de jornalista. Sou amigo de alguns e de algumas, e conheço muitos que o são com um J bem maiúsculo, seguindo-os sempre que posso a agradecendo o seu trabalho. Estes vivem a sua difícil profissão com grande empenho, dignidade e valor.

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      Entre o «tu» e o «você»

      As formas de tratamento, como todos os processos usados para verbalizar a interação humana, mudam de acordo com o tempo e os lugares. Em Portugal sempre foram complexas, e nos Estados de língua oficial portuguesa, por vezes consoante as regiões como acontece no Brasil, essa complexidade é replicada. Em Formas de Tratamento na Língua Portuguesa, livro de Lindley Cintra publicado em 1972, descreve-se particularmente a formação, em boa parte por decreto régio da primeira metade do século XVIII destinado a realçar as hierarquias, das fórmulas mais cerimoniosas. Como aquele intimidatório «Vossa Excelência» que alguns ainda utilizam. No geral e em todas as línguas, essas fórmulas tendem sempre a transformar-se, acompanhando a natural evolução vocabular e o contexto cultural e social em que esta sempre ocorre.

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        Lula e os seus equívocos

        Disse, repeti e insisto ainda: se tivesse a cidadania brasileira, teria votado Lula sem qualquer hesitação. Nas últimas presidenciais e nas anteriores, perdidas para Bolsonaro. Isto não significa que concorde com todas as suas posições, ou com muitas práticas do PT, sobretudo algumas do passado, mas que o que me aproxima dele – aquilo que dele aproxima todas as pessoas de esquerda – é muito mais importante do que o que nos pode pontualmente separar. Por isso, é com a maior satisfação que vejo as imagens da sua chegada esta sexta-feira a Portugal para uma visita de vários dias que culminará a 25 de Abril.

        Sublinho, todavia: satisfação, não entusiasmo. Uma reserva que se deve a posições recentes sobre política internacional que me parecem muito erradas e mesmo nocivas. A mais comentada refere-se à culpabilização da Ucrânia, e dos seus aliados ocidentais, pela guerra de invasão e destruição levada a cabo pela Rússia. Mas outra, menos referida nas notícias, é ainda pior, e diz respeito ao que proclamou em Pequim: a inscrição do Brasil numa «nova ordem internacional» que tem a ditadura chinesa e a tirania russa como eixo. Uma escolha inaceitável para um defensor da liberdade e dos direitos humanos.

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          Anonimato e cobardia

          Até a situação se encontrar esclarecida, não comentarei publicamente em detalhe o caso relacionado com o CES, do qual sou investigador sénior desde janeiro de 2002. Tenho uma posição sobre ele e sobre pessoas envolvidas, mas não me parece que neste momento a minha perspetiva acrescente algo de positivo a um processo entretanto objeto de inquérito. Não posso, porém, deixar de manifestar repulsa pela forma como várias pessoas que se afirmam investigadores/as do mesmo Centro – umas sê-lo-ão, outras são ou foram apenas colaboradores/as ocasionais – estão a recorrer sistematicamente ao anonimato, do qual alguma comunicação social se está a servir profusamente para revelar isto ou aquilo, ou para acrescentar invenções e suposições, numa exibição de péssimo jornalismo sempre no sentido de agravar o alvoroço público diante de um caso sério e que merece todo o cuidado. Em democracia, onde quem possui as suas razões tem todo o direito de as exprimir e de as defender, o anonimato chama-se cobardia e deve ser alvo de desprezo. E quem dele se sirva como arma de arremesso ou para obter público também.

          Adenda (escrita cerca de 48 horas depois) – A minha referência ao anonimato não se reporta, quero deixar isto bem claro, às eventuais vítimas de assédio. Em alguns casos ele é compreensível. Refere-se, sim, às pessoas, homens e mulheres, que aproveitam a situação para, sem darem a cara e se responsabilizarem pelo que afirmam, tentarem resolver ou agravar conflitos pessoais, inimizades ou ressabiamentos.

          [originalmente no Facebook]

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            A lucidez estratégica e a cegueira tática

            No campo da opinião política sobre o mundo em que vivemos e aquele que poderá perfilar-se mais adiante, tento sempre colocar a estratégia à frente da tática. Não significa que exclua a segunda do horizonte de propostas e de expetativas, mas que muito mal estaremos, pelo menos em democracia, se ela determinar a primeira. Dito isto de uma forma mais clara: o protesto e a reivindicação, bem como os programas eleitorais, ainda que fundados em situações concretas, devem sempre subordinar-se a objetivos de médio ou longo prazo para a vida da comunidade da qual emergem, não indo atrás apenas daquilo que parece urgente e «popular». Por isso mesmo, ainda que considere justas determinadas propostas, não as sigo, ou pelo menos não as tomos forçosamente como prioritárias e inegociáveis, se forem desfavoráveis ao cumprimento desses objetivos. 

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              É preciso enfrentar os moinhos do ódio

              A conhecida expressão «lutar contra moinhos de vento» é de há muito utilizada como metáfora da intrepidez destinada à derrota e da loucura nascida da fantasia. Alude a um dos mais conhecidos momentos do Dom Quixote de La Mancha, o romance publicado em 1605 por Miguel de Cervantes: aquele em que o sonhador «cavaleiro da triste figura» investe contra as pás dos moinhos de vento, que imaginava medonhos gigantes a vencer, tendo do ato resultado ver-se por terra com lança e armadura despedaçadas. Todavia, logo se recompôs, seguindo o seu destino, sobre o dorso de Rocinante e na companhia do escudeiro Sancho, para continuar a bater-se contra os males do mundo. Desta forma confirmando a grandeza essencial do gesto hoje designado «quixotesco».

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                Enid Blyton e os criadores de imbecis

                Creio que os primeiros livros com mais de cem páginas e exclusivamente de texto que li me foram oferecidos entre os oito e os dez anos, em pequenos embrulhos com três ou quatro volumes de cada vez, na qualidade de prendas de aniversário e de Natal. Como para muitos rapazes e raparigas mais ou menos da minha geração, as histórias d’Os Cinco (Famous Five), de Enid Blyton, no caso em versão traduzida, foram uma introdução ao maravilhoso da aventura e do mistério, à construção de uma distinção entre o bem e o mal, e ainda à saborosa arte de bem merendar. A série de 21 volumes foi escrita entre 1942 e 1963, trazendo consigo o mundo benévolo e inquietante do Júlio, um jovem de bom-senso, da Ana, moça desembaraçada, do brincalhão David, da Zé, a «maria-rapaz», como se usava dizer, e do imprescindível cão Tim. Sem dúvida o meu primeiro bando de heróis.

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                  21 de Março: Dia Mundial da Poesia

                  Em ‘Para que serve a poesia hoje?’, Jean-Claude Pinson tenta responder a uma pergunta atual: «O que pode ainda a poesia, quando as suas ilusões líricas do passado recente (proporcionar uma vista desimpedida para o Absoluto, “mudar a vida”…) foram desacreditadas?» Com uma intensidade ampliada quando na ordem-do-dia se encontra a eliminação por decreto – e por organizado descrédito – do que se revela supérfluo, daquilo que não possui valor de uso nem serve para trocar por papel-moeda ou linha de crédito, não podendo aplicar-se a reduzir défices, a aferir «competências efectivas» ou a cumprir «objectivos estratégicos», importa olhá-la como território da clarividência e de resistência, não meramente onírico ou projetado para a evasão, que jamais deixou de ser, mas deve reassumir.

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                    «Relógios de repetição»

                    Os «relógios de repetição» para uso doméstico ou no pulso surgiram por volta de 1890, possuindo a característica inteiramente inovadora de anunciarem com clareza, de forma acústica, uma hora pré-programada, ou tocarem um alarme por duas ou mais vezes sucessivas. Por analogia, passaram a ser pejorativamente apelidadas de «relógios de repetição» aquelas pessoas com tendência para falarem sempre do mesmo assunto, ou pronunciarem constantemente, como num eco, frases produzidas por outrem. 

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                      O meu 11 de março: uma memória

                      11 de março de 1975, data sobre a qual se completam hoje 48 anos, corresponde, como sabe quem na época já tinha razoável tempo de vida ou quem estudou alguma coisa sobre a a nossa história recente, ao dia no qual, iniciada e gorada a tentativa de golpe de Estado de direita que tinha António de Spínola como «cabeça de cartaz», a revolução portuguesa se radicalizou. Superando anteriores hesitações, passou-se então à ocupação de muitas empresas e propriedades rurais, bem como a um processo acelerado de nacionalizações, incluindo a da banca. Dando-se também início a uma fase da revolução na qual o socialismo foi definido como meta por quase todos os partidos democráticos. Ao ponto de a nova Constituição a ter integrado logo no artigo 2º.

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                        O fenómeno woke e as caricaturas

                        A última coluna de opinião de António Guerreiro é sobre o fenómeno woke. Como sei que muitas pessoas cultas e informadas não sabem do que se trata – nem toda a gente pode estar permanentemente atenta à infinita e cada vez mais rápida renovação dos léxicos – faço copy-paste do primeiro parágrafo do artigo da versão portuguesa da Wikipédia, inevitavelmente sintético e limitado

                        «Woke, como um termo político de origem afro-americana, refere-se a uma perceção e a uma consciência das questões relativas à justiça social e racial. O termo deriva da expressão do inglês vernáculo afro-americano “stay woke” (em português: continua acordado ou desperto), cujo aspeto gramatical se refere a uma consciência contínua dessas questões. No final da década de 2010, woke foi adotado como uma gíria mais genérica, amplamente associada a políticas identitárias, causas socialmente liberais, feminismo, ativismo LGBT e questões culturais (…). O seu uso generalizado desde 2014 é resultado do movimento Black Lives Matter.»

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                          Dar ou não a cara na rede

                          Como faz a generalidade das pessoas que têm muitos e constantes contactos fora do seu círculo próximo de vida e de trabalho, recorro inúmeras vezes aos motores de pesquisa ou às redes sociais para conhecer melhor quem me está a contactar ou quem pretendo contactar por isto ou para aquilo. Por vezes para ver por onde anda quem um dia conheci e gostaria de rever. É essencial ler a sua pegada: saber minimamente o que faz ou fez, conhecer-lhe um pouco o rosto, ter um mínimo de referências que nos permita identificar com razoável dose de segurança com quem queremos falar ou quem a dado momento nos procura.

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                            A morte exagerada do PCP

                            Escuto Ana Sá Lopes, analista com a qual na maioria das vezes concordo, afirmar num podcast que «num prazo de 20 anos poderemos assistir à extinção do PCP». É claro que duas décadas são muito tempo, e hoje tudo muda a mil à hora; todavia, sem ter qualquer simpatia por um dos últimos partidos comunistas europeus ortodoxos que ainda mantém algum peso social, tendo aqui a recorrer à ultracitada frase de Mark Twain sobre o exagero que tinham sido as notícias sobre a sua própria morte. A matriz, autoritária em política externa e conservadora nos costumes, que domina o partido, tenderá com toda a certeza – e sem estar aqui a fazer adivinhação – a ver-se transformada. Não de dentro para fora, pois boa parte dos seus mais rígidos militantes são precisamente muitos dos mais novos, mas antes de fora para dentro, em função da mudança social e, como dizia Cunhal, «da vida».

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                              Waters na sua franja

                              O músico Roger Waters, um dos fundadores dos antigos Pink Floyd, é claramente uma pessoa com uma orientação política incomum no seu meio. Está no seu pleno direito, e algumas das posições que toma até poderão ser em parte justas. Mas duas delas são obviamente erradas e nocivas, embora ambas coincidentes com as que defende como suas aquela franja, autoproclamada «de esquerda», para a qual tudo o que se oponha aos EUA é por uma boa causa e merece defesa, seja quem for que o faça e a forma como o faz.

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                                «A luta» não é sempre justa

                                Ao contrário do que ocorre sob as ditaduras, quando todos os meios para combater a tirania e a repressão são perfeitamente legítimos, em democracia o objetivo da luta social, em especial a de rua, não é derrubar o regime, mas sim defender medidas justas, procurar alargar e melhorar os direitos, e aperfeiçoar a própria gestão da vida coletiva. Por este motivo é muito importante distinguir quem sai da sua concha pessoal para combater coletivamente por causas e interesses legítimos, protestando e reivindicando, se necessário com força e veemência, de quem tem como objetivo da luta de rua enfraquecer um governo democrático, fazê-lo cair e trocá-lo por outro, a seu contento. De preferência, um que faça tábua rasa daquilo que foi maioritariamente decidido em eleições livres. Não existe comparação ou conciliação possível entre as duas escolhas.
                                [originalmente no Facebook]

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                                  Fazer os outros de parvos

                                  Parte dos partidos e organizações que integram o nosso espectro político, de um extremo ao outro, manifesta muitas vezes uma importuna tendência para afirmar pontos de vista que tendem – perdoe-se a crueza – a fazer os outros de parvos. A prática ocorre mais em algumas forças que em outras, e por certo não em todas, mas é muito negativa para a democracia, sobretudo quando vem de correntes que se bateram e batem pela justiça e pela igualdade. Consiste em afirmar ideias que qualquer ser pensante, informado e honesto consigo mesmo sabe que não são verdadeiras, mas esses setores insistem em proclamar ‘urbi et orbi’ como indiscutíveis verdades.

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                                    Paz não pode ser injustiça

                                    Trazer a paz diariamente na boca, tomando-a como um valor absoluto, mas sem distinguir a que se conquista e funda na justiça, na equidade e na democracia, daquela outra que se baseia na opressão, no direito do mais forte e na tirania, é, ao mesmo tempo, prova de hipocrisia, cegueira e cobardia. A paz é um valor essencial da dignidade humana, sem dúvida, e deveria corresponder à ordem natural do mundo, mas não pode ser alcançada e mantida à custa da indiferença e da injustiça.
                                    [originalmente no Facebook]

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