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Quatro tópicos sobre a Festa do Avante!

1. A Festa do Avante!, organizada pelo PCP em setembro de cada ano, nasceu em 1976, já na fase de refluxo do processo revolucionário, como uma forma de agregação da militância comunista e também como espaço de resistência política e cultural à recuperação do capitalismo. Inspirou-se em boa parte na do jornal L’Humanité, criada em 1930, com a qual o partido francês visou objetivos análogos. A do Avante! teve desde o início uma componente lúdica – aquela que ocupou sempre mais tempo do programa e que atraiu pessoas de diferentes quadrantes sociais e políticos – e outra assumidamente política, traduzida em algumas escolhas artísticas, em uma ou outra sessão cultural, nas brochuras e bibelôs dos pavilhões da responsabilidade dos «partidos irmãos» e sobretudo no grande comício final de domingo à tarde.

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    Apontamentos, Democracia, Olhares, Opinião

    Conformismo, proselitismo e inconformismo

    A pessoa conformista aceita sem reagir situações que lhe são impostas e intimamente deveria rejeitar ou contrariar. A disposição que melhor a define é a passividade, temendo sempre que qualquer gesto ou palavra que possa afirmar lhe perturbe o modo de vida. Alinha as suas perceções, crenças e condutas pelas dos outros: encomenda a mesma bebida, adota os mesmos códigos de vestuário ou adere cegamente às escolhas que dominam o grupo a que pertence. O psicólogo social Solomon Asch mostrou que pessoas com este comportamento preferem até dar cobardemente respostas erradas, ou contrariar a sua consciência – como acontece com o triste personagem interpretado por Jean-Louis Trintignant no filme Il Conformista, de Bernardo Bertolucci –, a arriscar a reprovação social, que entendem como via para uma fatal exclusão. 

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      Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, Etc., Olhares

      História para iludir o povo

      Qualquer historiador minimamente a par dos debates ocorridos no seu campo disciplinar, ou naqueles que com ele confluem, no decorrer dos últimos cem anos – desde a velha «Escola dos Annalles», fundada em 1929 por Lucien Febvre e Marc Bloch para desmascarar o logro do positivismo histórico – sabe que não existe verdade única na leitura e na crítica do passado. Existem factos comprováveis e existem metodologias que visam aplicar critérios de verdade – de outro modo a história não seria história, mas antes romance, poesia ou lenda -, mas não existem verdades absolutas e estabelecidas por uma vez. As diferentes e renovadas interpretações dependem de fatores diversos, que vão do tempo e do lugar à personalidade do autor e ao seu percurso, como dependem também de novas perceções do fluir do mundo e do constante acréscimo de conhecimento objetivo determinado pelo estudo e pela investigação. Todavia, essa pluralidade, que é até uma das riquezas e fontes de interesse da história como saber e como arte, não pode determinar uma «história» que na realidade o não é, uma vez que deturpa e se molda aos poderes ou aos grupos, correspondendo a uma forma de propaganda ou de manipulação, tantas vezes em apoio de agendas políticas explícitas ou escondidas. Todos os dias deparamos com ela: essa suposta «história» feita por conveniência, à medida, para legitimar convicções ou para iludir o povo. Naturalmente, ela não se envergonha de inventar, de desvirtuar ou de mentir se isso servir os objetivos imediatos de quem inventa, desvirtua ou mente.

        Apontamentos, História, Olhares

        Contra as abreviaturas

        Na escrita, a abreviatura utiliza um ponto final, algumas vezes um traço oblíquo, para indicar que aquela se trata de uma palavra incompleta, em condições de dispensar parte da original. Nas últimas duas décadas, o veloz processo de simplificação associado ao uso intensivo das comunicações em linha, não só aboliu o uso desse ponto indicativo, como ampliou de um modo avassalador todo esse processo de simplificação, estendendo a hipótese de recurso à abreviatura a praticamente todas as palavras, e chegando até a abreviar abreviaturas consagradas. Para quem ama verdadeiramente a sua língua ou a dos outros, pode, todavia, seja no processo da escrita ou no da leitura, tornar-se um tormento, como ainda há pouco dias, na última entrevista que concedeu, afirmou a poeta Ana Luísa Amaral.

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          Apontamentos, Leituras, Olhares, Opinião

          Vigilância em rede

          Quando comecei a usar a Internet, nos idos de 1993, e durante uns seis ou sete anos, tudo aqui parecia positivo. Bem, quase tudo: ocasionalmente, muito ocasionalmente, lá surgia alguém mais agressivo ou oportunista a estragar o ambiente em seu proveito, mas essas pessoas compunham apenas uma pequena franja, uma vez que o anonimato era ainda raro, o reconhecimento de quem intervinha possível e, acima de tudo, existia uma ideia, então dominante, sobre o o uso deste meio como um lugar de utopia, onde era possível aprofundar o conhecimento, a criatividade e mesmo a democracia. Nessa altura ainda era impensável que alguém escrevesse algo tão negro – alguns dirão, «realista» – como o que se segue, chegado hoje por email.

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            Cibercultura, Democracia, Olhares

            Um livro tão útil quanto perturbante

            Editado originalmente em 2016 e traduzido agora pela Zigurate, Quanto menos soubermos, melhor dormimos, do jornalista e historiador David Satter, possui um subtítulo bastante esclarecedor: «Do terror à ditadura na Rússia sob Ieltsin e Putin». Escrito por um destacado analista da realidade russa desde o período soviético, que viveu décadas em Moscovo até ser expulso em 2013, é livro de leitura compulsiva que de modo algum deixa indiferente quem o leia. Serve também de importante auxiliar para quem pretenda compreender o tipo de gente criminosa que governa a hoje terceira potência militar do planeta – depois dos EUA e da China – e a partir dela procura lançar um novo projeto imperial, ficando também a conhecer os seus métodos, simultaneamente tenebrosos e impensáveis num Estado de direito.

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              Atualidade, Democracia, História, Olhares

              Nove meses em Luanda – 1

              Um dos períodos mais intensos da minha vida englobou a comissão de serviço militar em Luanda entre finais de janeiro e o início de novembro de 1975. Tinha sido desertor da guerra colonial, e por isso vivido alguns meses clandestino, mas o III Governo Provisório, de Vasco Gonçalves, após o Acordo do Alvor amnistiou os militares na minha situação e pude apresentar-me de novo. Fui então enviado para Angola, onde vivi o meu PREC. Desse período bastante atribulado tenho a memória de dezenas de episódios absolutamente únicos e diversas pessoas a quem os relatei têm sugerido que deveria passá-los a escrito. Como jamais escreverei uma autobiografia, para evitar esquecê-los vou deixar aqui alguns deles.

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                Biografias, Etc., Memória, Olhares

                Guerra, identidade e aversão ao outro

                Sendo uma verdade que a história jamais se repete, pode ter alguma utilidade, na tentativa de compreender momentos complexos da vida dos povos e das nações, ensaiar comparações entre situações históricas situadas em diferentes tempos e lugares. Ao procurar refutar o filósofo Hegel por este ter afirmado que todos os factos e personagens de importância na história mundial ocorriam duas vezes, Marx escreveu no 18 de Brumário de Luís Bonaparte, terminado em 1852, que «ele esqueceu-se de acrescentar: a primeira como tragédia, a segunda como farsa». Vejamos se isto pode ser aplicado a um arriscado exercício de comparação entre o Portugal do século XVII e a atual Ucrânia.

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                  Atualidade, História, Memória, Olhares, Opinião

                  Crítica democrática e caixas de ressonância

                  «Crítica» vem do grego kritikós, indicando a palavra aquele que está «apto a julgar». Manifesta-se na produção de uma opinião ou de um juízo de valor por quem a exerce. No campo das ideias, a «teoria crítica», expressão criada em 1937 por Max Horkheimer, é uma abordagem que, contrapondo-se à rigorosa separação das águas de matriz cartesiana, incorpora no pensamento tradicional uma tensão com o presente, de efeito criador e emancipatório. Na vida como professor, tenho insistido junto de quem escuta que a minha intervenção no espaço partilhado da aula, mais que destinada a comunicar saber, se destina a fazer com que cada aluno ou aluna seja capaz de usar o conhecimento para pensar por si e, seja na vida pessoal ou como cidadão, intervir de forma positiva e autónoma. Sublinho sempre: «criticar não é ‘dizer mal’, é dizer mais».

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                    Democracia, Olhares, Opinião

                    Quando «alguém» morre

                    Jamais a alguém, vivo ou morto, incluindo a mim próprio, aparentemente vivo, considero «acima de toda a suspeita». Impressiona-me o elogio de pessoas públicas, quando estas desaparecem, feito como se elas fossem perfeitas, sem a mínima ruga ou pecado. Quando, na realidade, não existe ninguém – eu não conheço, nem mesmo ao meu mestre Camus, que ponho acima de Cristo – sem defeitos, alguns até dificilmente desculpáveis. Basta conhecê-las um pouco melhor, e eu tenho conhecido algumas, não apenas dos livros ou da televisão, cuja partida nem por isso deixei de sentir com alguma ou muita dor.

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                      Apontamentos, Devaneios, Olhares

                      Biden, Groucho Marx e a China

                      Considerando o tortuoso trajeto dos últimos cem anos anos, se de algo a política externa norte-americana não pode ser acusada é de coerência. Não me refiro à maldade ou à bondade das suas escolhas – essa será outra conversa -, mas da sua permanente capacidade para dar uma no cravo e outra na ferradura, usando o poderia económico e militar de que dispõe para tomar medidas e afirmar escolhas tantas vezes profundamente contraditórias. Talvez Rossevelt e Obama tenham, pelo menos em parte, procurado escapar a esse destino, mas ainda assim não o conseguiram de todo. E Joe Biden, com a forma como organizou a saída do Afeganistão, o modo como encarou inicialmente o problema ucraniano, e como está a tratar a vontade de reunificação do território chinês por Pequim, está a garantir um capítulo mais nessa tradição de incoerentes ziguezagues.

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                        Apontamentos, Democracia, Olhares, Opinião

                        Anotar é viver

                        Não será forçosamente uma qualidade, mas é uma maneira de viver. Jamais me relaciono com o mundo como mero espectador ou simples mensageiro. Muito ou pouco, de forma mais completa ou ligeira, com detalhes ou superficialmente, de forma emotiva ou mais racional, tenho sempre, muitas das vezes apenas para mim próprio, algo a dizer ou a acrescentar. A tudo: uma conversa, uma notícia, um discurso, um artigo de jornal, um livro, uma peça de teatro, um filme, uma peça musical ou um jogo de futebol. Seja sob a forma de comentário, de dúvida ou de simples anotação. 

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                          Apontamentos, Atualidade, Devaneios, Olhares

                          Uma realidade sombria e ameaçadora

                          Lembrou a comissária Ursula von der Leyen que a Europa se está a deparar com sombras de um passado que muitos julgavam extinto. Retirando os conflitos mais localizados que nos anos noventa, após o desmoronamento dos Estados do «socialismo real», tiveram lugar nos territórios da antiga Jugoslávia e do Cáucaso, há já perto de oitenta anos que o continente não assistia a uma guerra com a extensão e as consequências da que tem lugar na Ucrânia. Cidades inteiras destruídas, morticínios de civis, um povo inteiro em fuga e despojado de condições elementares de vida, ataques de artilharia pesada sem sentido aparente, impostos por uma estratégia de conquista e chantagem que utiliza uma política de terra queimada.

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                            O reforço da NATO

                            A Finlândia acaba de formalizar o pedido de integração na NATO. Seguir-se-á rapidamente a Suécia e, mais adiante, como não pode deixar de ser, a Ucrânia. O reforço de uma aliança militar – e uma que, no seu historial, tem iniciativas desastrosas, em larga medida determinada pelas escolhas dos Estados Unidos – jamais é boa notícia, salvo, percebe-se agora ser este o caso, se ela puder funcionar como instrumento dissuasor do imperialismo e da mancha de ditaduras que se perfilam encostados à Europa do pluralismo. Como se viu rapidamente, esta guerra foi um erro de cálculo de Putin, que esperava uns EUA sem interesse em meter-se noutra aventura e uma Europa de novo pusilânime. Saiu-lhe o tiro pela culatra e acabou por contribuir para unir e reforçar o inimigo que visava enfraquecer. Para todos nós, o pior é que não se trata de um jogo de vídeo e a emergência de uma segunda Guerra Fria, porventura menos fria que a primeira, não é mera hipótese.

                            [Originalmente no Facebook]

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                              Poder da ignorância em tempos difíceis

                              Está por fazer, e talvez pudesse dar até uma curiosa e bastante útil tese académica em ciência política, em filosofia ou em história contemporânea, um inventário crítico da literatura que, nestes domínios do conhecimento, os nossos militantes amigos de Putin – entre aqueles, reconhecidamente uma minoria, com hábitos de leitura para além dos títulos dos jornais, das redes sociais e da imprensa partidária – alguma vez lê, leu ou lerá. Não apenas em termos de qualidade de conteúdo, de rigor e de abertura ao fluir do mundo, mas também no que respeita à atualização das obras que conhecem, à honestidade dos seus autores e ao vocabulário de que se servem. 

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                                Nesta segunda-feira, 9 de maio, como acontece desde 2020, a cidade ucraniana de Lugansk, capital de uma das autoproclamadas repúblicas de maioria russa estabelecidas desde 2014 em território ucraniano por Vladimir Putin, voltará por um dia a chamar-se Vorochilovgrad, designação que já manteve entre 1935 e 1958 e depois entre 1970 e 1990. A designação homenageia o antigo marechal Kliment Vorochilov (1881-1969), nascido na Ucrânia e uma das mais sinistras e mortíferas figuras da história da União Soviética. Tendo sido desde cedo membro do Partido Bolchevique, quadro do Exército Vermelho e um dos poucos amigos próximos de Estaline, integrando o seu persistente núcleo duro de operacionais brutais, dos quais, além de Trotsky e de outros bolcheviques, o próprio Lenine manteve sempre distância. 

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                                  Com o tempo de vida que levo e as experiências que fui juntando, péssima marca de caráter sustentaria se não tivesse muito para contar. Mais: seria por certo um tolo se em relação a muitos dos momentos que pude viver não experimentasse hoje alguma forma de nostalgia. Além disso, sendo historiador de formação e de profissão, sei muito bem como o passado nos forma e como importa invocá-lo para entender o presente e preparar o futuro. E ao mesmo tempo, aqui enquanto cidadão, sei também, como lembrou Primo Levi, que existe sempre um dever de memória para com quem se bateu, participou, sofreu, foi marginalizado ou mesmo morto por se bater por um presente mais feliz e por um futuro melhor.

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                                    Digo por vezes aos alunos que pedem para lhes recomendar «um livro onde esteja resumido o mais importante», que tudo é complexo, inclusive o simples. Porque quanto maior for a simplicidade de um determinado texto – e simplicidade não é aqui sinónimo de clareza -, mais denso será aquilo que permanece na sua sombra. No atual contexto de conflito, será bastante pedagógico comparar as análises da situação política e militar, sempre intrincada e em rápido processo de transformação, normalmente da autoria de especialistas, das declarações sobre o tema produzidas por partidos políticos e militantes seus, ou por pessoas que querem acima de tudo produzir doutrina.

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