Biden, Groucho Marx e a China

Considerando o tortuoso trajeto dos últimos cem anos anos, se de algo a política externa norte-americana não pode ser acusada é de coerência. Não me refiro à maldade ou à bondade das suas escolhas – essa será outra conversa -, mas da sua permanente capacidade para dar uma no cravo e outra na ferradura, usando o poderia económico e militar de que dispõe para tomar medidas e afirmar escolhas tantas vezes profundamente contraditórias. Talvez Rossevelt e Obama tenham, pelo menos em parte, procurado escapar a esse destino, mas ainda assim não o conseguiram de todo. E Joe Biden, com a forma como organizou a saída do Afeganistão, o modo como encarou inicialmente o problema ucraniano, e como está a tratar a vontade de reunificação do território chinês por Pequim, está a garantir um capítulo mais nessa tradição de incoerentes ziguezagues.

De facto, com todos os tiques autoritários e imensos defeitos que contém a forma de governar do cleptocrata Vladimir Putin, parece tornar-se bem mais fácil prever aquilo que pode esperar-se das suas escolhas do que ter uma ideia minimamente clara sobre o que os EUA realmente pretendem hoje, poderão fazer amanhã ou decidirão lá para o final do ano. É óbvio que os EUA jamais irão envolver-se numa guerra com a China por causa de Taiwan, mas a ameaça nesse sentido que Biden acaba de fazer em Tóquio emite um sinal, sem dúvida bem sonoro, de que Washington, em vez de opções coerentes, continua convencida de que a bravata pode ser uma forma de política na arena internacional. E se o que afirma não der certo, pode sempre seguir aquele lema um dia proposto por Julius «Groucho» Marx: «Estes são os meus princípios, mas se você não gosta deles eu tenho outros».

Adenda (escrita no dia seguinte): O desnorte estratégico evidenciado por Joe Biden ao ameaçar a China com uma intervenção militar dos EUA caso esta decida anexar Taiwan já teve a devida resposta do outro lado: a China mostrou um apoio mais claro à Rússia na guerra da Ucrânia e a Rússia declarou querer aproximar-se mais ainda da China. Podem chamar a isto «diplomacia criativa» norte-americana, mas aqui só vejo arrogância e falta de noção das prioridades. Os antiamericanos primários daqui e dacolá rejubilarão com tal disparate. Putin também.

[Originalmente no Facebook]

    Apontamentos, Democracia, Olhares, Opinião.