Arquivo de Categorias: Olhares

A nostalgia do «Expresso» que foi

Completaram-se ontem, 6 de janeiro de 2023, cinquenta anos de vida do semanário «Expresso». Fui seu leitor desde o primeiro número, saído ainda em pleno marcelismo como expressão de uma oposição consentida pelo regime, e durante mais de quatro décadas não perdi um só. Mesmo quando fora do país ou em algum lugar onde o jornal não chegava, tinha sempre um quiosque que guardava o meu exemplar. Boa parte desse tempo integrou um ritual das manhãs de sábado, comprando o «espesso» e lendo-o depois normalmente no café. Em particular o bom suplemento cultural, durante uma boa época designado «Revista», e deixando de lado a volumosa publicidade e o caderno de Economia, uma área que infelizmente jamais foi a minha praia. A partir de certa altura passei para a edição digital, que assinei e lia no tablet, libertando-me de vez daquele saco de papel que alguns leitores costumeiros e mais tradicionais ainda exibem como um emblema geracional.

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    Apontamentos, História, Jornalismo, Olhares, Opinião

    «Pegada digital», vida pública e solidão

    A rápida transformação nos processos de comunicação que teve lugar nos últimos trinta anos, associada ao papel dos meios eletrónicos, determinou alterações bruscas e extremas nas diferentes formas de qualquer de nós se relacionar em sociedade. À distinção tradicional entre os que procuravam o reconhecimento pessoal e o das suas ideias, e aqueles que preferiam viver no completo anonimato, juntou-se um campo híbrido intermédio e em constante expansão: o daqueles que, tendo ou não produzido «obras valerosas», podem ser escutados por bom número dos seus semelhantes.

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      Apontamentos, Cibercultura, Democracia, Olhares, Opinião

      «Etc.»

      Como sabem muitas pessoas, «Etc.» é a abreviatura da expressão latina «Et cetera», ou «Et coetera», que significa «e outras coisas mais», ou «e assim por diante». Durante o meu (antigo) ensino secundário diversos professores nos avisaram repetidamente para evitarmos a expressão, sobretudo se quiséssemos exprimir-nos com clareza e de forma completa. Como professor fiz o mesmo a muitos milhares de alunos: poderiam usar a abreviatura nos seus apontamentos, ou então em mensagens privadas, mas jamais em teste, exame ou trabalho escrito, sabendo toda a gente que o que apresentavam seria muito desvalorizado se o fizessem. Não era um mero capricho: «Etc.» traduz uma forma de preguiçoso facilitismo, por vezes de descrédito, que tende a apagar conhecimento ou a afirmar a ideia segundo a qual onde existe diversidade «é tudo mais ou menos a mesma coisa». Hoje mesmo escutei uma alta responsável ligada a um orgão de gestão de uma prestigiada universidade portuguesa usar de forma repetida esta miserável muleta durante uma comunicação pública e admito que senti algo entre a náusea e o arrepio.

      [originalmente no Facebook]

        Apontamentos, Olhares, Opinião

        A grande arte do aforismo

        «A verdadeira eloquência consiste em dizer tudo aquilo que é preciso,
        e não em dizer seja lá o que for.» (La Rochefoucauld, 1613-1680)

        Insisto na declaração de amor pela grande arte do aforismo. Vindo do grego ἀφορισμός, «aphorismós», que significa «definição breve» ou «sentença», o termo traduz essencialmente a enunciação sucinta de um pensamento de natureza moral. A sua brevidade, todavia, pode ser enganadora a respeito do seu valor. Na verdade, ela articula reflexão, saber e experiência num todo em que determinados aspetos da vida do indivíduo ou da coletividade emergem sob a forma de mensagem de uma humanidade e de uma profundidade intemporais. Parecendo semelhante ao adágio, vai mais longe que este pois apela mais ao conhecimento, à sabedoria transmitida, que à simples evidência. Também não emerge como mera intuição, como «achismo» mais ou menos repentista, sendo sempre resultado, por parte de quem o produz, de um trabalho de amadurecimento. «Aforismistas» essenciais foram Erasmo de Roterdão, provavelmente o criador do género, Rabelais, La Rochefoucauld, Voltaire, Benjamim Franklin, Flaubert, Nietzsche, Kafka, Karl Kraus, Sartre ou Adorno, mas os meus favoritos são Montaigne, Emil Cioran e, é claro, Camus. Nessas curtas linhas plenas de sensibilidade e sabedoria que nos foram legando tenho encontrado o que de mais essencial pude aprender.

          Apontamentos, Heterodoxias, Olhares, Recortes

          A «ortodoxia suave» do PCP

          Talvez mais em resultado da conjugação dos astros que por um efeito do mero acaso, no mesmo dia desta semana de dezembro os jornais «Público» e «Diário de Notícias» atribuem um grande destaque ao que consideram ser sinais de moderação, ou de distanciamento e de suavização da ortodoxia, por parte do PCP. Os sinais que referem não permitem, no entanto, inferir com clareza essa dinâmica, e apontam a aspetos que até nem seriam os mais importantes num processo de eventual e efetivo «aggiornamento» do partido. Os articulistas, porém, entendem que assim é.

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            Atualidade, Democracia, Olhares, Opinião

            O papel do trabalho de revisão

            Como sabe quem escreve com regularidade livros e artigos, o trabalho de revisão de um original realizado por alguém competente e sensível é crucial, podendo salvar a correção e a elegância do texto, embora possa também traduzir-se em alguns desastres. Muitos autores consagrados, certos deles premiados, sentiriam vergonha ao ler os seus originais publicados sem estes terem passado por essa etapa. E os leitores habituais nem os reconheceriam. Erros e gralhas, repetições de frases ou de palavras, parágrafos pouco claros, falhas de concordância, pontuação deficiente, e por aí afora. Basta, para quem preste atenção, ver como alguma dessas pessoas atabalhoadamente escrevem nas redes sociais e depois o modo como os seus originais são publicados impressos ou no digital.

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              Apontamentos, Etc., Leituras, Oficina, Olhares

              Problemas de um contador

              Como a maior parte das pessoas sabe, embora nem todas levem esta perceção às últimas consequências, ficção e realidade constituem dimensões diferentes, ainda que sempre se misturem. Seja no domínio dos factos, das representações ou da linguagem. Jamais a ficção pode prescindir da realidade, pois é esta que lhe fornece os códigos básicos de comunicação. E jamais a realidade pode dispensar a ficção, pois sem ela não passaria de um conjunto de ocorrências mecânicas e sem sentido algum. Por isso não é possível deparar com ficção ou com realidade em forma pura.

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                Apontamentos, Artes, Devaneios, Olhares

                Experimentalismo e vanguarda… ou nem por isso

                Na arte, como na política e na vida em geral, o novo requer sempre impulso, ousadia, experimentação, por vezes a árdua capacidade de provocar, de remar contra a corrente ou de saltar sobre ela. Durante duas décadas e meia organizei todos os semestres na minha faculdade, em aulas de disciplinas de história cultural contemporânea, três horas de exposição e debate sobre o nascimento e o papel das vanguardas ocidentais sensivelmente entre 1910 e 1970. As estéticas, as filosóficas, as políticas e as vivenciais. Costumava alertar os alunos, todavia, sobre como sempre foi fácil – e mais ainda no tempo mais próximo – elas serem recuperadas pelo sistema de mercado e pelo pensamento dominante. Ou então transformadas, geralmente por ignorância, em formas de repetição do que se fez há já algumas décadas atrás.

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                  Apontamentos, Artes, Atualidade, Olhares

                  Encontrar a felicidade na melancolia

                  Na Anatomia da Melancolia, de 1631, o escritor inglês Robert Burton lançou as bases para entender os estados depressivos, dos quais, aliás, ele próprio padecia. Acreditava que a causa principal desse mal estaria na ociosidade, no que acompanhava aquilo que, sensivelmente pela mesma época, escreviam os tratadistas de arte militar empenhados em evitar estados de espírito que prostrassem os soldados e os afastassem da firmeza necessária na guerra. Declararam repetidamente esses autores que a melhor forma de manter os homens em estado de prontidão para o combate seria impedi-los de pensar em excesso na sua vida e no seu desgraçado destino. A imposição de tarefas constantes e severas que os ocupassem o tempo todo seria a melhor forma de os preservar desse mal inibidor da capacidade para agir.

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                    E agora, Brasil?

                    Logo no dia após a vitória tangencial de Lula, colunistas e jornalistas de todo o mundo começaram a elaborar listagens dos «problemas» e dos «desafios» que a partir de 1 de janeiro de 2023 terá pela frente a nova presidência do Brasil. Não repito esse esforço, em regra bastante completo, mas anoto os meus oito principais temores e desconfianças em relação ao que aí vem. Acreditando que serão partilhados por bom número de pessoas, muitas delas apoiantes ou votantes do candidato do PT.

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                      A China e o espetáculo do poder

                      Há alguns dias, perante uma fotografia dos membros do novo Comité Central do Partido Comunista Chinês rigidamente perfilados na tribuna do Congresso destinado a estender e reforçar o mandato de Xi Jinping, senti um frémito de horror. Não é preciso ser semiólogo para ler aquele rebuscado cerimonial, a fixidez dos corpos robotizados, a impassibilidade dos rostos, a coreografia de cores e gestos, incluindo-se nestes a exclusão forçada, diante das câmaras, de Hu Jintao, o anterior presidente caído em desgraça. Mais que traduzir «uma especificidade cultural», como certas boas almas julgarão, eles visam impor internamente a aceitação incontestada da autoridade e, no plano externo, o reconhecimento da força. Se ao cenário juntarmos a quase ausência de mulheres, temos a imagem perfeita de um poder misógino e arbitrário que se celebra a si próprio. 

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                        Ignomínia e absurdo

                        Sei que a regra, para muitas pessoas perturbadas com a complexidade dos factos – não, não se trata de um linear conflito entre «bons» e «maus» -, ou com receio de ser injuriada, até por pessoas que considera (ou que até agora considerava), é falar o menos possível sobre o tema. O mesmo acontece com os setores, enredados na defesa de uma paz a todo o custo, que esquecem a necessidade de uma política de alianças em caso de guerra e tendem a equiparar um esforço de defesa a um plano de ataque. Uns e outros procuram meter a cabeça na areia, e isso passa por deixarem, mesmo neste espaço, de escrever sobre o tema ou sequer de o comentarem.

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                          A normalização do plágio

                          A definição é retirada literalmente da Wikipédia: «O plágio é o ato de assinar, apresentar e publicar uma obra intelectual de natureza literária, científica ou artística (texto, música, obra pictórica, fotografia, obra audiovisual, entre outras), em partes ou na íntegra, cuja autoria pertença a outra pessoa, sem que haja a permissão do autor, no caso de obras com direito reservado, ou reconhecimento da fonte, no caso de obras públicas. Portanto, comete plágio quem se apropria indevidamente da obra intelectual de outra pessoa, assumindo a autoria.» Trata-se de um gesto miserável, não apenas porque supostamente confere a quem o pratica conhecimentos e aptidões que na realidade não possui, como omite e deprecia o esforço e a criatividade detidos por outros, bem como o seu trabalho.

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                            Professor para sempre

                            Ontem, 5 de outubro, celebrou-se o Dia Mundial do Professor. Professor não é apenas «aquele que dá aulas», como muitas pessoas dizem. Pode ser isso, sem dúvida, mas é sobretudo aquele e aquela que procura, a partir da sua formação – que deve prosseguir sempre, bem para além dos cursos que frequentou – contribuir para a disseminação do conhecimento e para a dinamização da capacidade crítica. Nos anos em que dei aulas, entre 1982 e 2022, quem nelas estava ouviu necessariamente esta recomendação: muito mais importante do que colecionar conhecimento, do que «saber coisas», é ser capaz de relacioná-lo e de tomá-lo na dimensão sempre mutante e contraditória que contém, pensando pela sua cabeça e jamais se submetendo a dogmas e ideias feitas, venham de onde vierem. Como «professor uma vez, professor para sempre», é o que continuo a defender.

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                              Putin e o regresso ao passado

                              O principal responsável pela política ditatorial e agressiva da Rússia, a par da China um imperialismo em franca e rápida ascensão – contra o norte-americano, que obviamente não se evaporou -, acaba de justificar, neste 30 de setembro, a anexação de parte de um país soberano que agrediu e procurou destruir com base num «referendo» completamente ilegítimo e manipulado e em nome de um suposto «anticolonialismo». Que é de facto, e acima de tudo, um combate contra as sociedades democráticas e os direitos dos povos, incluindo nestes o russo, à autodeterminação, à paz e à liberdade. Sei de muita gente que estará a delirar com as suas palavras, antevendo já o regresso a um passado pelo qual sentem uma nostalgia sem limites e a que pensam poder um dia poder regressar. Por certo já hoje assobiaram, pelo menos mentalmente, a Kalinka e os Barqueiros do Volga.

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                                Sete «novidades» que chegam do Kremlin

                                Na sua cegueira, amigos e cúmplices de Vladimir Putin terão exultado com a sua última declaração. Principalmente por sete motivos, perante os quais é fácil contra-argumentar, mas que estes setores jamais questionam, ficcionando a sua própria visão da situação. Em primeiro lugar, porque assumiu formalmente que a Rússia está em guerra, deixando claro que antes andou a enganar os seus próprios concidadãos. Em segundo, porque decidiu o lançamento da mobilização de 300.000 reservistas, o que apenas confirma as notícias sobre o desastre militar que tem sido a sua iniciativa na Ucrânia. Em terceiro, porque acusa o ocidente de «chantagem nuclear», embora todos os jornais mostrem há meses as sucessivas ameaças feitas neste preciso sentido por ele e por Lavrov. 

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                                  Por causa de um longo artigo a publicar em breve, passei perto de três semanas a ler e a escrever sobre a história do Mar Negro. Esse «lago asiático» – como se lhe referia em 1765 a Enciclopédia de Diderot e D’Alembert – que, devido à presente guerra de invasão da Ucrânia pela Rússia, subitamente passou de lugar distante, quase ignorado ou mesmo recôndito para a larga maioria dos europeus, a espaço que nos habituámos a reconhecer como próximo e em condições de afetar o nosso modo de vida. Todavia, por muitos séculos este papel foi inexistente, ocupadas que estavam as suas margens apenas por pequenos poderes e por comunidades isoladas e autossuficientes. 

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                                    Isabel e o fim de uma era

                                    Nasci menos de um ano após Isabel II ter subido ao trono do Reino Unido. Por isso, para mim, como para uma grande parte dos humanos vivos, a «Rainha de Inglaterra», agora desaparecida, faz parte da mobília cultural do mundo em que vivemos. Mesmo sendo republicano desde que recordo – nas lições da história jamais foram reis, príncipes e duques a entusiasmar-me, preferindo sempre quem se batia pela justiça, pela igualdade, pela beleza ou pelo conhecimento –, e tendo construído ao longo dos anos uma perceção clara do caráter caduco e inútil da realeza britânica, não pude, todavia, ficar imune à figura omnipresente nos jornais e revistas, nos documentários e nos livros de história, até no cinema e na ficção, de Elizabeth Alexandra Mary. Para mais uma mulher bonita e de semblante tranquilo, quase sempre sorridente, que alimentava o imaginário mágico de tanta gente. No meu caso, em particular, o de algumas tias e primas, e do respetivo grupo de amigas, que talvez acompanhassem melhor o que se passava nos salões de Buckingham ou de Balmoral que na casa da vizinha ou mesmo na sua.

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