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Teremos papa

Face às previsíveis demonstrações de «enorme felicidade», «grande satisfação» e «esperança imensa» mecanicamente debitadas pelos católicos que em relação ao seu papa mantêm um relação de inquestionável fidelidade, surgiram também, logo após a escolha de Francisco para bispo de Roma, os juízos diametralmente opostos de quem, tal como em forma de caricatura alguém escreveu no meu mural do Facebook, ficou logo de pé atrás por se encontrar, provavelmente, «à espera da eleição de um hippie comunista, de um informático libertário ou de um transsexual saído dum bairro da lata.» Tentemos então escapar a este tipo de julgamento, fugindo de juízos apressados. De facto, a biografia do cardeal Ratzinger e o seu comportamento como papa Bento XVI, por constituírem um exemplo recente, deveriam ser suficientes para mostrar que a condição papal, pela dimensão e responsabilidades que envolve, pode reescrever muitos comportamentos e perspetivas. A mesma coisa se passa noutras áreas: assumir uma tarefa de responsabilidade máxima numa instituição de poder e prestígio investe, quem viva tal experiência, numa nova condição. A pessoa continua a ser quem é, mas ao mesmo tempo deixa de ser a mesma. Por isso será preferível esperarmos um pouco, sem crucificar já o novo papa por não se ter comportado neste ou naquele momento como eventualmente gostaríamos que se tivesse comportado. E sobretudo evitemos julgá-lo antes de fazer o quer que seja, para além de pronunciar umas palavras de circunstância na Praça de São Pedro e de dar aos fiéis a tradicional benção urbi et orbi. Ou por um passado com episódios mal conhecidos, que pode até não ter sido propriamente simpático, mas sobre o qual existem também muitos boatos e suposições. Cá estaremos para escrutinar aquilo que, na nova e pesada qualidade de sucessor de Pedro, o argentino Francisco vai dizer, escrever e fazer para os seus e perante o mundo inteiro. Ou pelo lado obscuro que possa eventualmente ter omitido do currículo. O «tempo de graça», como se sabe, é sempre curto. Mas um pouco de esperança, ainda que passageira, não faz mal a ninguém.

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    Péssimo sinal

    Pergunto-me, tal como se perguntará uma larga franja de portugueses interessados na queda do atual governo e na construção de uma solução de governabilidade à esquerda, se o PCP e o Bloco se darão conta da extrema gravidade que comporta o gesto de recusarem (o PCP abertamente, o Bloco implicitamente, dada a visível falta de empenho) a proposta do Partido Socialista e de António José Seguro para discutir eventuais alianças nas eleições autárquicas. É verdade que um dos flancos politicamente mais discutíveis, pessoalmente mais duvidosos e administrativamente mais obscuros do PS se define ao nível de boa parte das suas escolhas autárquicas. Vivendo e sendo desde há muito eleitor na cidade de Coimbra, estou particularmente habilitado para confirmar esta triste realidade. E sei perfeitamente que existe, aqui como em todo o país, um longo caminho a percorrer para que a aproximação à esquerda ocorra e sem desenvolva de um modo dinâmico e transparente, no respeito mútuo e no interesse da maioria dos cidadãos. Boa parte desse caminho será, aliás, forçosamente da responsabilidade do próprio PS. Mas não dar sequer ensejo a conversas sobre hipotéticas alianças a nível local, reagindo «de pedra na mão», constitui não só um ato de hostilidade em relação à possibilidade de construir alianças voltadas para a política do país como uma forma de mostrar publicamente que o sectarismo está longe de ser ultrapassado. Aceitando aproximações apenas se forem as «nossas regras» a determiná-las ou colocando sempre o acento tónico nas diferenças e nas divergências, apesar do tempo que vivemos, no qual uma rápida mudança de políticas associada a um vasto consenso eleitoral é, obviamente, a única solução para evitar o estado de calamidade e o salto do país para o mais negro dos abismos. O sinal que está a ser dado é negativo e deixará sequelas. E é também um fator de redução dessa dimensão de esperança sempre decisiva em tempo de mudança.

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      Mulheres e Mulherzinhas

      O Dia Internacional da Mulher, evocado como momento de rebelião e protesto no Portugal pré-Abril – devido ao lugar visivelmente secundário, marcado pela exploração material e pela depreciação cultural, que nele ocupavam as mulheres – foi-se banalizando nos últimos anos, e, tal como aconteceu com o Dia das Mentiras ou o dos Namorados, transformando num engodo para o consumo. Não que a data tivesse deixado de ser importante e não tenha permanecido na agenda dos movimentos e dos cidadãos cientes de que a emancipação das mulheres é uma tarefa apenas iniciada. Mesmo no mundo no qual estas são formalmente iguais em direitos e deveres e não precisam sair à rua com o rosto tapado ou vigiadas pelo marido. O que acontece é que a trivialização da data fez com que ela passasse a ser evocada também por mulheres com uma noção frágil da sua própria emancipação, confundindo-a apenas com a presença na rua e no mercado de trabalho, e ainda por homens que com o seu gesto de «homenagem às senhoras» apenas reforçam a desigualdade e o preconceito. São as mesmas e os mesmos que têm pavor do feminismo – grosseiramente julgado como expressão de uma hipotética luta «das mulheres contra os homens» ou de uma «recusa do feminino» – e que alimentam esta versão caricatural do 8 de Março. Na verdade, do que falam é do «Dia da Mulherzinha», essa criatura débil, frágil e desejavelmente rosada, decalcada do livro autobiográfico de Louisa May Alcott publicado há quase século e meio. A mulherzinha que se realiza no «final feliz», eventualmente consumado no casamento e na maternidade, mas, de facto, que permanece no seu lugar decorativo, dependente e subalterno. Mesmo quando sobe à tribuna, conduz um trator com presteza, toca pandeireta numa tuna ou dirige a economia familiar.

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        Como arruinar um projeto em 144 páginas

        Na História Politicamente Incorreta do Portugal Contemporâneo (De Salazar a Soares), editada há pouco pela Guerra & Paz, Henrique Raposo, o cronista do Expresso também «licenciado em História e mestre em Ciência Política», considera existir um padrão dominante no interior da historiografia nacional que é preciso meter na ordem. Este funcionaria como uma espécie de vírus, desvirtuando e falsificando o conhecimento que temos do século passado a partir da perspetiva vitoriosa da esquerda. Considerando-a intrinsecamente nefasta e objetivamente falsa, propõe-se então contribuir para atenuar essa influência. Resume-a neste livro através de um complexo de «mitos» que pretende questionar. Identifica essencialmente cinco: o de Salazar como mera criatura da Igreja católica, o de um Mário Soares sem o qual Portugal de facto não teria entrado na Europa, o do Estado Novo vergando os portugueses à irrevogável pobreza, o de uma esquerda que vez alguma fora «colonialista», e, por fim, o da hegemonia cultural da mesma esquerda como tendo começado antes do 25 de Abril e fechado as portas logo no final de 1975. A narrativa de Raposo procura negar radicalmente estes juízos, anunciados como fábulas. (mais…)

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          O elétrico vermelho

          Num livro sobre o levantamento, o apogeu e o fim da Cortina de Ferro publicado há poucos meses pela Doubleday (Iron Curtain: The Crushing of Eastern Europe), a jornalista e historiadora norte-americana Anne Applebaum, conhecida por ser a autora de uma das mais sérias e completas obras sobre a origem, a organização e o funcionamento do Gulag soviético, conta-nos um episódio extraordinário. Ele ocorreu em Varsóvia já depois de terminada a guerra, num belo dia do verão de 1945. Seguia um funeral por uma das muitas centenas de ruas reduzidas a destroços na altura da retirada pelos nazis quando os seus tristes acompanhantes depararam de repente com uma cena extraordinária: um verdadeiro carro elétrico varsoviano, vermelho como sempre mas o primeiro a cruzar a cidade depois do fim do conflito, fazia o seu percurso tocando a sineta. As pessoas nos passeios estacaram todas, surpreendidas, e muitas desataram a correr atrás dele, enquanto outras batiam palmas e gritavam vivas. E então o funeral parou, os seus enlutados participantes esqueceram por momentos o corpo gélido que conduziam à última morada, e envolvidos na euforia geral viraram-se para aquele elétrico saído das cinzas e começaram, também eles, a bater palmas. Por um instante, uma espantosa vibração de esperança e de vida esmagou, gloriosa, a fixidez da morte.

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            Para quem é…

            Os acontecimentos que nos últimos dias envolveram a presença pública de Miguel Relvas e a violenta contestação da qual esta tem sido objeto por parte de alguns grupos de cidadãos mais destemidos, levantam uns pequenos problemas. Não penso que, em democracia, a contestação dos governantes deva passar pelo cerceamento da sua liberdade de opinião e de expressão. Ou pelo insulto público. Existem formas e lugares para a demonstração do descontentamento, mesmo quando esta é muito veemente, e que podem passar por outras iniciativas sem que tal diminua o seu impacto. Porém, no caso deste governante, e do seu trajeto oportunista, obscuro, mercantil e politicamente desprestigiado, exibido com a conivência de um governo empenhado em pôr em causa a própria Constituição da República, justifica-se uma exceção. Perante a desfaçatez, enorme e insultuosa, que é a sua manutenção teimosa, artificial e até imprudente como responsável governamental da mais alta responsabilidade, a soberania pode ser transferida para os governados e estes adquirem todo o direito, desde que o não façam com recurso à violência física – o que jamais aconteceu, diga-se –, de fazerem ouvir a sua voz. Da forma, com a intensidade e nos lugares onde entendam por bem fazê-lo. O protesto e a indignação, para serem eficazes como protesto e indignação, não podem ser bradados em surdina, cantados em becos, mastigados em vãos de escada e exibidos à socapa com punhos de renda. Precisam ser visíveis e sonoros, e, de hoje em dia, de ganhar projeção mediática. Só que cantar o Grândola, Vila Morena em tal situação parece-me um pouco desprestigiante para este grande hino-canção, tão importante para a tradição democrática e a memória coletiva dos portugueses. É que «para quem é bacalhau basta», e por isso, como escrevia alguém com piada e carradas de razão no meu mural do Facebook, mais valia cantar a Relvas A Mula da Cooperativa.

              Apontamentos, Atualidade, Olhares

              Um cartaz perigoso

              Há cerca de duas semanas, quando nele reparei pela primeira vez, pareceu-me de imediato que valeria a pena comentar um dos mais divulgados dos cartazes com os quais a CGTP procurou mobilizar os cidadãos para as manifestações deste 16 de fevereiro contra as políticas antissociais do governo. A maior parte da propaganda difundida falava aliás, preferencialmente, de «trabalhadores», não de «cidadãos», menosprezando a mudança semântica que nas últimas décadas envolveu aquela palavra. Agora reforçada, aliás, no contexto de um alastramento dramático do desemprego, do trabalho precário, da desqualificação profissional e da pauperização da classe média. Tomei na altura algumas notas, mas não escrevi logo um post pois de modo algum queria, por ínfima que pudesse ser a sua divulgação, que este pudesse ser interpretado como um apelo à desmobilização de um combate imprescindível e agregador que é urgente travar. Ultrapassadas essas circunstâncias e de um modo agora mais sereno, vou direto ao assunto. (mais…)

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                Filosofia ao domicílio |6

                Albert Camus

                Noutro post da série que sugere uma hipotética biblioteca básica da filosofia contemporânea, hoje é a vez de apresentar O Mito de Sísifo, o «ensaio sobre o absurdo» publicado por Albert Camus (1913-1960) em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial e na sua fase de colaboração ativa e regular com a Resistência francesa.

                Albert Camus era existencialista? Apesar de o ter por diversas vezes negado e da desavença com Jean-Paul Sartre em 1952, um homem capaz de escrever, no primeiro romance, «Tenho a intenção de me casar, de me suicidar ou de me dedicar à Ilustração. Num gesto desesperado, talvez…», era naturalmente existencialista. Mais tarde, quando publicou O Estrangeiro, o livro foi repetidamente julgado «existencialista»… Qual o motivo? Porque Meurseault, o herói, passeia como um sonâmbulo num mundo que parece realmente não habitar. E no entanto ele age, come, bebe, fuma, faz amor e até comete um assassinato. Através deste personagem, Camus fornece a chave para o seu ensaio editado quase ao mesmo tempo, O Mito de Sísifo, que aparece como o manifesto da sua «filosofia do absurdo». Aí afirma que o absurdo se encontra em todo o lado. Evoca o personagem de Sísifo, o herói grego condenado pelos deuses a empurrar até à eternidade uma rocha para o cimo de uma montanha, de onde ela rola forçando-o a recomeçar. Sísifo incarna o tipo de ser humano dedicado a uma vida insana. Aproxima-se aí de uma das intuições de Martin Heidegger: a estranheza do sujeito em relação ao seu mundo, que designa como «desamparo», e à qual Sartre chama «abandono». Em Camus a palavra é no entanto mais forte: é «absurdo». Soren Kirkegaard e Edmund Husserl propõem soluções para o desespero: a fé para um, a procura das essências para o outro. E Camus? Está muito mais próximo de Sartre e do seu dever de liberdade. Em O Mito de Sísifo, encontram-se estas palavras: «Se o absurdo aniquila todas as minhas possibilidades de liberdade eterna, então ele força-me, contrariamente, a exaltar a minha liberdade de ação.» Num mundo sem Deus nem valores últimos, o ser humano é ainda mais livre. Camus, sem nada esperar, faz também o elogio da criação artística: «Criar, é assim dar uma forma ao seu destino.» Mais tarde dará um conteúdo ainda mais radical à sua ideia de liberdade: ela é a revolta. [Tradução e adaptação de um artigo de Nicolas Journet.]

                  Olhares, Séries

                  As faturas e a apoteose do ridículo

                  Contou-me certa vez um amigo açoriano que a imagem do medo da sua mais recuada memória de infância associava três elementos: a proximidade de hipotéticos navios russos, a intervenção certa e segura do diabo e a convicção de que, por onde quer que passeasse na sua ilha, existiriam fiscais do isqueiro para o autuarem por falta de licença de uso daquela ferramenta manual de ignição, imprescindível para os fumadores, como ele era na altura. Este terceiro medo era afinal o único que tinha razão de ser: a necessidade de porte de licença para uso de acendedores e isqueiros antes de 1974 não é uma invenção de pessoas com imaginação e prova-nos de que forma, naquela época, a vigilância policial dos cidadãos combinava por vezes a rigidez do controlo com a intervenção do ridículo. O aviso, feito agora pela Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais, de que, onde quer que se transacionem bens, poderão ser realizadas ações de fiscalização «que incidam sobre a obrigação de exigir a emissão de fatura por parte dos consumidores finais», ações que «podem ser realizadas à saída dos estabelecimentos comerciais para garantir que os consumidores exigem efetivamente as faturas pelas compras realizadas», reconduz-nos perigosamente a esse tempo. Pondo portugueses a vigiarem portugueses, de livro de autos na mão, inclusive à porta de capoeiras nas quais se possam transacionar clandestinos galináceos, ou encostados às carroças dos assadores de castanhas, como «medida de combate eficaz à economia paralela, à evasão fiscal e às situações de subfaturação». Para reequilibrar as contas do Estado, naturalmente. De volta pois à apoteose do ridículo.

                    Apontamentos, Atualidade, Memória, Olhares

                    Kapuściński e o socialismo

                    Quase a concluir a leitura da biografia do jornalista e escritor polaco Ryszard Kapuściński (1932-2007), da autoria do também jornalista e seu antigo colaborador Artur Domosławski. Um livro que justifica um post autónomo, dados os problemas que expõe, as informações que faculta, as dúvidas que levanta sobre as duas faces, a mais conhecida e a obscura, de uma das mais importantes, e das mais eloquentes, testemunhas da evolução do mundo na segunda metade do século XX. O que hoje aqui fica é apenas um extrato de um texto escrito por Kapuściński quando, após longos anos de trabalho como correspondente da imprensa polaca na América Latina, regressou ao seu país. Na Polónia vivia-se na altura a fase de transição que mais tarde determinaria o fim do regime «socialista», e Kapuściński, velho militante comunista mas homem que conhecia muito bem outras realidades, questiona-se nele sobre a diferença entre o idealismo e a entrega dos combatentes socialistas que conhecera na América Latina, e o panorama de laxismo e ausência de convicção com as quais deparava agora no seu próprio país:

                    «Ali: Devido à sua crença no socialismo, os jovens idealistas acabam muitas vezes na prisão, são torturados, são forçados a organizar-se na selva, e são por via de regra ignorados por aqueles que deveriam ser até os destinatários da sua luta. Aqui: Devido à sua crença no socialismo, os jovens carreiristas são os primeiros a conseguir um andar, um carro ou um lugar numa estância de férias. Ali: grandes ideais, o ruído metálico das espingardas; aqui: dinheiro fácil, viver indolentemente a ver televisão, passar a vida em bailes. Ali: rebelião, inconformismo, adrenalina; aqui: sorrisos falsos, mostrando apenas as caras que as autoridades querem ver. Se ali é o socialismo, aqui será o socialismo também?»

                      Apontamentos, História, Olhares

                      O lado negro de Walt Disney

                      Durante décadas, para milhões de pessoas de diferentes gerações a vida de Walt Disney foi uma história cor-de-rosa editada em capa de seda. Como se o paraíso de sonhos materializado nos vários parques temáticos da Disneylândia fosse uma extensão da personalidade dessa figura supostamente idealista, amável e criativa, impecavelmente penteada e de bigode aparado, plena de autoconfiança, que povoou as fantasias de tantas crianças dos dois hemisférios. No entanto, essa vida encantadora foi em larga medida ilusória, construída e alimentada pelo próprio e pela indústria que fundou, uma vez que a sua biografia verdadeira é bastante menos transparente, claramente menos heroica e está demasiado povoada de nódoas. Não que tal facto seja novidade para quem conheça o seu trajeto para além das linhas mais essenciais da lenda, mas a evocação do Rato Mickey e do Pato Donald, de Dumbo, Bambi e Peter Pan, da Cinderella e de Mary Poppins, ou de tantos heróis aventureiros em versão «para todas as idades», continua a ofuscar um público sedento de fantasia, humor e finais felizes que vê em Disney um seu mentor. (mais…)

                        Artes, Cinema, História, Olhares

                        Galão escuro

                        Não sou propriamente um admirador do estilo e do discurso pessoal, a meu ver um tanto obreirista, despojado de jogo de cintura e de léxico geracionalmente datado, de Arménio Carlos. E menos ainda o sou, apesar de lhe respeitar o lastro de dedicação e luta, da forma como a política sindical do seu partido tem orientado a atividade da CGTP. Mas estou inteiramente do lado de Arménio quanto a esta «questão do escurinho». Refiro-me à forma como o secretário-geral da central sindical se referiu publicamente a Abebe Selassié, o etíope que qualificou como o «terceiro rei mago» desta Troika alienígena que nos governa e empurra para o precipício. A obsessão do politicamente correto faz destas coisas: vigia até os pequenos detalhes, desvia-se do que é realmente importante, e erra o alvo com inábeis tiros de pólvora seca. Será preferível, para quem se entreteve a dissecar esta liberdade verbal, o discurso cinzento, permanentemente examinado e autovigiado, que retira humanidade ao combate político e faz de quem assume responsabilidades públicas um cidadão permanente acossado? Ou ficarão os críticos neste particular de Arménio Carlos menos perturbados com as sobrevivências dessa previsível «língua de madeira» que contamina tantas vezes, e em momentos decisivos, o seu discurso? Quando ressurgem estes fantasmas lembro-me sempre de um amigo que conheceu o antigo presidente moçambicano Samora Machel – nos anos que se seguiram ao 25 de Abril objeto regular de piadas racistas, bastante acintosas, que a generalidade dos portugueses de esquerda e de direita contava no meio de grande galhofa – e me garantiu terem sido as mais engraçadas de todas as que ouviu aquelas saídas da boca do próprio Samora. O antirracismo pratica-se e combate-se em muitas frentes, mas o policiamento severo, maníaco e por vezes demagógico da linguagem – sobretudo quando aplicado a pessoas insuspeitas de partilharem essa detestável atitude social – não será seguramente uma delas.

                          Apontamentos, Atualidade, Olhares

                          Delinquente

                          Fotografia de eda Pan
                          Fotografia de eda Pan

                          «Traficava droga, assaltava lojas e esfaqueava rivais. Mas continuava a esconder o cigarrito sempre que passava por um dos amigos do pai.»

                          De Galáxia de Berlindes, volume de «textos ultrabreves» de Pedro Monteiro; à venda ao excelentíssimo público em algumas das melhores livrarias.

                            Apontamentos, Ficção, Olhares, Recortes

                            Mudança em Israel?

                            Existe um equívoco, partilhado por muitas pessoas que têm o cuidado de separar o antissemitismo do antissionismo, fundado na ideia errada de acordo com a qual o sionismo foi e é, da base ao topo, sempre agressivo, expansionista e basicamente de direita. Como se sabe, a explicação mais simples aponta o antissemitismo como preconceito ou hostilidade contra os judeus, fundado no ódio contra a sua identidade histórica, étnica, cultural e religiosa. Esta é uma tendência que uma grande parte da esquerda sempre recusou ou continua a recusar, ainda que, na prática, a sua vertente mais dogmática com ela tenha pactuado ou continue muitas vezes a pactuar. Por sua vez, o antissionismo prevê uma oposição frontal ao direito do povo judeu à autodeterminação e à existência de um Estado nacional judaico independente e soberano. Simplificando: um grande número de bons cidadãos e de consciências democráticas admite que os judeus não devem ser perseguidos pelo facto de o serem, mas, sendo-o e vivendo no único estado judaico existente, devem tratar de empacotar os haveres e tornar à errância, devolvendo a integralidade do território àqueles, palestinianos principalmente, que dele foram espoliados quando do processo que conduziu à independência e depois, pela via da guerra e dos colonatos, à expansão territorial de Israel. O antissionismo alimenta assim o antissemitismo. (mais…)

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                              Filosofia ao domicílio |5

                              Deleuze & Guattari

                              No quinto post da série, destaca-se Mille PlateauxMil Planaltos, o segundo tomo de Capitalismo e Esquizofrenia, publicado em 1980 pelos filósofos Gilles Deleuze (1925-1995) e Félix Guattari (1930-1992).

                              «Um livro não é feito de objetos ou de assuntos, é feito de matérias diversamente constituídas, de datas e a velocidades muito diferentes.» Gilles Deleuze e Félix Guattari, recusando o modelo tradicional do «livro-raiz», incapaz de comportar a multiplicidade, escreveram em conjunto um livro único, pensado como verdadeira experimentação. Mille Plateaux (Mil Planaltos na edição portuguesa, em tradução discutida) é uma obra concebida de acordo com uma multidão de estratos, de plateaux (tabuleiros? planaltos?), uns ligados aos outros mas sem uma ordem ou hierarquia que lhes atribua um lugar certo. Para Deleuze, este livro foi o termo do seu pensamento antisistemático já desenvolvido em Différence et Répétition (1968) e em Logique du Sens (1969), livros nos quais elaborou as premissas de uma nova metafísica, destinada a promover uma filosofia da multiplicidade contra a dominante filosofia da unidade. Segundo tomo, após L’AntiŒdipe (1972), de Capitalisme et Schrizophrénie, Mille Plateaux prossegue a procura de um pensamento antiacadémico, liberto de todo o «aparelho do saber». Aspira aliás a dirigir-se aos não-filósofos, a libertar a filosofia da sua própria escola de intimidação, que não admite no seu seio senão os especialistas em determinados textos. O projeto de Deleuze é também o de fundar uma «filosofia pop» que, tal como acontecia com a cultura pop, se dirigiria a um público de massas. (mais…)

                                Olhares, Séries

                                Nós, albaneses

                                Apesar de já ter sido mais usada, a palavra «albanização» continua a fazer o seu curso no vocabulário político ordinário. Originalmente, reportava-se a uma vinculação às características do Estado albanês nos tempos da República Popular, proclamada no final da Segunda Guerra Mundial e governada com pulso de ferro por Enver Hoxha e o seu Partido do Trabalho. O território da Albânia, outrora local de um trânsito, nem sempre pacífico mas ruidoso e constante de povos muito diversos, servira de base de apoio nos Balcãs aos fascistas italianos e depois aos nazis. Expulsos estes, passou, após curto período de conflito civil que levou os comunistas ao poder, a fechar-se completamente ao exterior. Uma situação ampliada a partir de 1948 com a rutura completa com a Jugoslávia, à qual se seguiria, em 1961, o corte de relações com a União Soviética, e depois, em 1978, o distanciamento da China. A «albanização» tomou então dois rostos complementares: exprimiu, por um lado, a dimensão de um «Estado-pária», fechado sobre si próprio e que procurou viver de forma autossuficiente, na ignorância das mudanças que ocorriam à sua volta; e por outro, em consequência desses limites e do caráter totalitário do regime, marcou também a instauração de uma política interna de rígida contenção do desenvolvimento económico, cultural e social e de efetivo limite dos direitos individuais. (mais…)

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                                  Portugal, gare de partida

                                  Imagem de Zoë
                                  Imagem de Zoë

                                  Há pouco mais de um século a figura do «brasileiro», o ricaço fanfarrão recém-chegado do lado de lá do Atlântico, com fortuna incerta, feita de astúcias e aparências, ou efetiva, reunida sabe-se lá como, era notória na paisagem das nossas aldeias, vilas e pequenas cidades. Não que a sua presença fosse significativa em termos demográficos – de facto, surgia um aqui, mais dois acolá, um outro um pouco mais além – mas porque o seu porte extrovertido e esbanjador, e também o seu comportamento moralmente dúbio e um tanto pacóvio, se faziam notar em ambientes nos quais dominava o recato do fato escuro e a moderação dos gastos pessoais e das atitudes públicas. Na literatura portuguesa da segunda metade do século XIX, a pícara personagem surge em múltiplas obras, tendo sido Camilo quem dela traçou retratos mais ásperos e impiedosos, embora forçosamente caricaturais. (mais…)

                                    Atualidade, Olhares, Opinião

                                    Filosofia ao domicílio |4

                                    Paul Ricoeur

                                    No quarto post da série, a obra destacada é Tempo e Narrativa, publicada em três tomos, entre 1983 e 1985, pelo pensador francês Paul Ricoeur (1913-2005).

                                    Aberto a todas as filosofias, o pensamento de Paul Ricouer procurou dialogar com as diversas influências que o formaram, esforçando-se sistematicamente para diluir as oposições que entre elas pudessem existir. É no entanto na ação humana que se encontra o fio condutor do seu trabalho. Órfão a partir dos dois anos, Ricoeur interessou-se desde muito cedo pela questão do sofrimento, do mal e da culpa. Nos anos 30 descobriu Edmund Husserl, cuja obra ajudou a divulgar em França através da tradução das Ideias Orientadoras para uma Fenomenologia, que o filósofo checo-alemão havia publicado em 1913. A marca deixada pelo seu pensamento na teoria da fenomenologia será profunda. No entanto, para Ricoeur a filosofia não era uma atividade de natureza narcísica. E foi por isso que o seu espírito de abertura foi também de abertura para aquilo que se passava fora do campo mais específico da sua disciplina. (mais…)

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