Todas as cidades, em particular aquelas que têm uma longa história e por isso uma forte capacidade magnética, integram uma tensão entre a vida vivida e as representações que delas os livros vão guardando. Baudelaire, Kafka e Pessoa construíram «cidades literárias» que não se confundem com as descrições prosaicas dos que habitaram as ruas e casas de Paris, Praga ou Lisboa. Odessa, a cidade-porto ucraniana do Mar Negro, é todavia um caso singular, dado o seu percurso, composto de reminiscências nostálgicas e futuros plausíveis, ter sido em larga medida ficcionado através da escrita. Tanya Richardson, que a tem visitado inúmeras vezes, lembra, em Kaleidoscopic Odessa (2008), o seu caráter intenso e singular advindo de uma cultura complexa, de uma história sinuosa, de um cosmopolitismo que alimentou um forte sentimento de pertença e até de missão. (mais…)
Quando vejo a subserviência e a ausência de coragem que pairam aí por tantas redações de jornais, rádios e televisões, com tantos jornalistas, mais papistas que o papa, a autocensurarem-se – eu sei, eu sei, que não são todos e que andam por aí muitos dos bons –, em vez de assumirem com nobreza e determinação a missão que é a sua, ocorre-me voltar a dois parágrafos exemplares de Manuel António Pina, saídos no Notícias Magazine em Outubro de 2011, como parte de uma crónica em registo memorialista.
Jovem repórter, fui uma vez enviado a Aveiro para cobrir o II Congresso da Oposição Democrática. Todos os dias escrevia dois ou três linguados e todos os dias a Censura reduzia a reportagem a duas ou três linhas. Ora aconteceu passar no Cine Teatro Aveirense (o Congresso decorria no Avenida) um filme que não queria perder, La bête humaine, de Jean Renoir. Decidi – pois, de qualquer modo, a Censura cortaria o mais que escrevesse – dizer do que, naquele dia, se passara no Congresso pouco mais que quem interviera e sobre o quê, e fui ver Renoir. Manuel Ramos [chefe de Redação] ficou furioso. «Mas é a única coisa que a Censura deixa sair…», tentei justificar-me. E a lição de Manuel Ramos: «A Censura que corte, é o seu papel. O nosso é escrever tudo, independentemente de haver ou não Censura».
Contra todas as expectativas, acabou por ser um dia feliz, vi La bête humaine e aprendi algo fundamental sobre a minha profissão: podemos ser forçados a calar-nos, mas é inaceitável que nos conformemos e nos calemos por nossa iniciativa.
Uma intervenção informal, destinada a dinamizar algum debate e concebida para um público que à partida desconhecia qual fosse. Trata-se da participação no TEDxCoimbra de 19 de Outubro de 2013, onde falei sobre «A História como Futuro» (o mote do encontro era Pelo sonho é que vamos).
À medida que vamos avançando no nosso próprio roteiro, cresce o número dos que vão morrendo e com eles levam uma parte de nós. Não acontece só com os familiares mais chegados, os amigos queridos, as ex-namoradas, os colegas de todos os dias, os rancores mal resolvidos, aqueles que foram parte mais ou menos sólida do nosso universo. Acontece também com os que, à distância, sem o verem, sem o suspeitarem, ajudaram a alimentar a fábula da nossa existência. De cada vez que partem, já se sabe, levam sem devolução possível alguma coisa nossa. Sem Lou Reed, a minha perfeição dos dias jamais será a mesma.
A 19 de outubro completou-se um ano sobre a morte de Manuel António Pina. O poeta, escritor de prosas várias, o cronista obstinado, o homem dos jornais, dos seus amigos e da vida dele. Na vaga quase unânime de elogios e recordações que inundou diários e semanários, rádios e televisões, blogues e redes sociais, duas facetas suas emergiram mais vincadamente. A primeira recordava «o Pina», assim lhe chamavam sempre os seus próximos, os seus amigos, como alguém que era rigorosamente aquilo que parecia; a segunda insistia na falta que nos faz por ter interpretado um papel público único, que mais ninguém parece estar em condições de preencher. (mais…)
Todos temos, daquela fase da vida que medeia entre os 6 e os 12 anos, lembranças ténues, esparsas e invariavelmente aleatórias. Nada recordamos de factos reconhecidamente importantes – um exame decisivo, o passamento de um familiar, o primeiro devaneio vagamente amoroso – e, de repente, percebemos que alguma coisa na qual ninguém mais reparou, insignificante para os outros mas para nós decisiva, ficou cravada na memória que nos cabe. Perfazem-se hoje exatos 50 anos sobre o desaparecimento de Edith Piaf e lembro-me muito bem da estrada do norte, da paisagem húmida e verde, sobre as quais, sentado no banco de trás do Volkswagen carocha, pude ouvir na rádio em onda média a notícia da sua morte. Logo seguida da passagem desse hino à vida, tão pessoal e triste e redentor, que é «Non, je ne regrette rien». Com a idade que tinha, não conhecia uma palavra de francês, não sabia que a Piaf falava da vida vivida, mas julgo ter sido aquela a primeira vez que percebi, de uma forma silenciosa mas inesquecivelmente intensa, que a presença de alguém nem sempre se dissolve com a sua morte.
Apesar de conservar um rastro visível e constante na vida pública nacional das últimas quatro décadas, parte significativa do processo de descolonização de Angola tem permanecido em boa medida calada. As causas deste silenciamento são diversas. Há desde logo a influência da narrativa oficial, produzida pelas autoridades portuguesas em circunstâncias históricas complexas e dramáticas logo nos anos de 1974-1975, a qual foi ocasionalmente contrariada mas jamais revista. Outra causa tem a ver com o uso recorrente de relatos – geralmente impostos por setores politicamente conservadores ou emocionalmente envolvidos nos acontecimentos – mais pontuados pela nostalgia, pelo rancor ou pela incompreensão que por uma tentativa de perceber realmente aquilo que aconteceu. Além disso, o que se passou em Angola naquele período foi de certa forma empurrado para segundo plano pelos terríveis caminhos da violência ali percorridos após a independência do país. (mais…)
No dia em que se completam 45 anos sobre o fim abrupto da Primavera de Praga, retomo, com ligeiros retoques, um texto publicado em 2008 no blogue Caminhos da Memória.
Allegro vivace. Conta Mark Kurlansky que em Julho e Agosto de 1968 muitos jovens europeus, tanto do leste como do ocidente, e alguns americanos também, fizeram as malas para irem até Praga ver em que consistia esse novo tipo de liberdade que os checos associavam a um «socialismo de rosto humano». As muralhas enegrecidas da velha cidade cobriam-se então de graffiti em diversas línguas. Os exíguos sete mil quartos de hotel disponíveis estavam permanentemente ocupados. Era difícil encontrar uma mesa livre nos restaurantes e quase impossível vislumbrar um táxi que não estivesse ocupado. O New York Times escrevia no princípio de Agosto: «Para aqueles que têm menos de trinta anos, Praga parece ser o sítio onde vale a pena estar neste verão». Na rua, um ambiente inusitado de permanente ruído, alegria, companheirismo e descoberta. Nos jornais, na rádio, nas praças, nos cafés e nas sedes do próprio Partido Comunista, os debates pareciam infindáveis. Vaclav Havel contará mais tarde que o actor Jan Triska, seu amigo, avisava então, no meio do entusiasmo geral, que aquele era um verão «lindo demais para acabar bem». (mais…)
Republico este post no dia em que, se por cá estivesse a aturar a corja e a dar-nos força para a pôr a andar, José Afonso perfaria 84.
Não, não vou invocar uma relação de proximidade com José Afonso. Falei com ele uma única vez, por curtos instantes, e ouvi-o cantar uma dúzia, se tanto, sempre com a cábula por perto. Ouvi-o desafinar. Vi-o até tocar violão, coisa que, como lembra Rui Pato e posso confirmar, fazia pessimamente. Mas mais nada. Por isso não o chamo de Zeca, tratamento carinhoso e plebeu que sempre olhei como um exclusivo dos seus íntimos. Gostei medianamente de alguma da sua música (das primeiras baladas, de forte carga simbólica mas ainda demasiado próximas, para o meu esquisito gosto, do fado de Coimbra), muito de outra (com aquelas linhas poéticas inesquecíveis), muitíssimo de dois ou três discos, tão bons, tão bons, nos textos e nas composições. Vejo Cantigas do Maio, arranjado por José Mário Branco, como um dos três maiores álbuns de sempre da música popular portuguesa (a par do Com que Voz, da Amália, e do Mudam-se os Tempos…, do mesmo José Mário). Mas aquilo que sempre olhei como um seu lado singular, estimável e verdadeiramente exemplar foi o bravo quixotismo, a perene inquietude, o pendor para a anarquia, a atitude crítica, o modo poético de falar, de pensar, até de parecer, a capacidade para fazer amigos (lembram aqueles que o foram), a coragem que o fez circular pela vida sempre sobre parapeitos, o antidogmatismo pelo qual foi criticado por parte dos que agora, numa vaga de unanimismo acrítico, o incensam como um dos seus (nem sempre foi, sabiam?). Será esse lado independente e solidário, simples e desassossegado, convicto mas aberto à fantasia, que, tanto quanto a sua música, dele podemos recolher ainda como exemplo. Faz-nos falta. Faz, faz, porque isto agora, José…
A meu ver, não é especialmente grave que uma pessoa chamada Cristina Espírito Santo, ao que consta filha de um administrador do BES, desconhecida fora do seu círculo familiar e dos restritos ambientes mostrados pelas revistas de sociedade, tenha dito ao Expresso que passar umas férias um bocadinho mais simples na herdade da Comporta «é como brincar aos pobrezinhos». Pronunciar-se uma frase como esta, em público ou mesmo em privado, só atesta estupidez, insensibilidade e, já agora, mau-gosto também. E disso encontramos nós todos os dias quando folheamos os rostos ultrabronzeados, os blazers com monograma e as bolsas Michael Kors que ilustram os magazines ocupados com o nosso suposto jet-set. O grave, grave mesmo, é intuir-se daqui que alguém, algum dia, na sua infância brincou mesmo «aos pobrezinhos». É uma frase como essa sinalizar uma atitude, construída desde pequenino, de menosprezo real por aqueles que não fazem parte do círculo de privilegiados dentro do qual vive. E dos quais geralmente depende, aliás, o próprio conforto. (mais…)
Corria o ano de 1969 quando em Coimbra, em plena «primavera marcelista», subiu de tom a contestação da política educativa, dos limites impostos ao associativismo estudantil e principalmente do regime. Foi um «ano de brasa», ainda hoje lembrado por tantos dos que o viveram ou dele colheram o eco, cujo desfecho, ao contrário do que por vezes se diz e escreve, não ocorreu logo no final do ano letivo. Pelo contrário, após um breve recuo dos estudantes, os conflitos radicalizaram-se e ganharam novos cenários, não deixando de ter lugar até ao 25 de Abril. A «crise de 69» acabou, pois, em 74. Mas aquele ano foi um ano decisivo. Para acompanhar a luta estudantil, a par das reuniões de caráter mais objetivamente político, tiveram então lugar iniciativas várias, de caráter lúdico e cultural, destinadas a lançar e a projetar «estados de alma» capazes de reforçar a combatividade. (mais…)
Após décadas de silenciamento ou desinteresse, os últimos anos têm conhecido o gradual desvendamento da história das relações do Estado português com a política de antissemitismo militante da Alemanha nazi e a perceção, finda a guerra, do reconhecimento público dos processos de barbárie do Holocausto. Neste livro, Irene Flunser Pimentel e Cláudia Ninhos, duas historiadoras de gerações diferentes, oferecem um contributo valioso para superar essa falha, fazendo-o através de um trabalho que integra o reconhecimento do pouco e disperso que sobre o assunto foi publicado associado a um enorme manancial de informação nova e relevante, impondo-o como de leitura obrigatória para quem estude ou pretenda conhecer melhor a evolução da política externa e da sociedade portuguesa durante a Segunda Grande Guerra. Divide-se em duas partes separadas pelos assuntos abordados e pela cronologia: uma sobre o «problema judeu» em Portugal e na Alemanha nas vésperas do conflito; a outra ocupando-se da forma como este foi vivido na Europa e em particular no nosso país, enfatizando o papel do Holocausto e os processos que aqui levaram ao seu reconhecimento público. (mais…)
No princípio o 10 de Junho metia-me medo. A partir dos treze ou catorze passei a odiá-lo. Apesar da atitude ter mudado, o motivo era o mesmo: a experiência traumática de ver na televisão de canal único, a preto e branco, a cerimónia integral com a «veneranda figura do Chefe de Estado», de alva farda marítima, ou com os ministros do governo, invariavelmente de escuro cinza, a aporem medalhas de bronze – as de ouro e prata estavam reservadas para os mais dignos – em homens e mulheres trajados de negro, recém-chegados nos seus fatos domingueiros de aldeias recônditas ou de bairros degradados. Lá estavam eles nervosos e chorosos no Terreiro do Paço, com «as tropas dispostas em parada», a receber, ano após ano, em complemento de um cumprimento rápido e ritual, o pequeno símbolo metálico com o qual a Pátria, supostamente reconhecida, premiava os seus filhos mortos, os seus maridos desaparecidos, os seus irmãos que haviam perdido a razão, a alma ou os tímpanos numa guerra sem saída. Mesmo após a instauração da democracia, aqueles que haviam crescido a observar esse rito anual jamais esqueceram as manhãs de verão durante as quais, a cada ano, se transformava aquele feriado num funeral da pátria. (mais…)
A partir de hoje passo a reproduzir aqui alguns dos artigos de opinião publicados regularmente no Diário As Beiras, de Coimbra. Por vezes com pequenas revisões. Num caso ou noutro – como acontece com este texto – os temas abordados poderão ter maior relevância para os leitores (ou para os passageiros) da cidade.
A primeira memória que tenho de Coimbra liga-se a uma frase enigmática do meu pai. Um dia, ao passarmos na Portagem, junto ao antigo Café Montanha, apontou para um grupo de rapazes e de raparigas de roupa negra, muito justa, e avisou-me: «Olha, aqueles ali são os existencialistas». Deve ter acontecido por volta de 1960 e muitos anos depois, ao folhear uma coleção do jornal Via Latina, percebi que nessa época estava de facto em curso na academia coimbrã um combate de ideias entre estudantes católicos mais ou menos conservadores e um grupo de defensores do «existencialismo francês», reconhecendo estes sermos nós os primeiros responsáveis pelo destino que escolhemos. O episódio ficou registado e creio ter sido ele a fazer com que passasse a ver a cidade, apesar da sua estreita dimensão – então menos de metade dos habitantes de hoje –, como um território aberto à novidade do mundo e aos seus dilemas. (mais…)
Não sei datar com precisão a fotografia que ilustra este velho postal de Coimbra. Será, muito provavelmente, dos finais do século XIX ou logo do início do seguinte. Presumo que alguns a observem com um misto de nostalgia e de subordinação à visão de uma cidade profundamente estratificada mas que sem qualquer vigilância crítica tendem a embelezar e a associar a uma certa ideia de tradição. Eu vejo-a como uma imagem quase pornográfica. Como estereótipo, mas também como vestígio de um tempo, ultrapassado embora não apagado, no qual as lavadeiras do Mondego, as «lindas tricanas» das quais ainda tratam certas versalhadas ou legendas de souvenirs locais – eu ainda conheci algumas das derradeiras, já velhas, gastas, pobres e abandonadas –, desempenhavam o papel social que ela tão bem e tão tristemente documenta.
A partir deste sábado Lisboa passa a contar, junto da Quinta das Conchas, ao Lumiar, com uma Avenida Álvaro Cunhal. Têm-se multiplicado as palavras de aprovação ou de impugnação perante esta iniciativa, numa lógica de frágil debate e de forçada comparação que perde o sentido se observarmos a grande variedade das referências toponímicas a cidadãos que foram políticos e estiveram associados a diferentes convicções, o que é próprio de um país com história e que vive em democracia. Não atribuindo demasiada importância a este tipo de querela sobre o passado comum, concordo em absoluto com esta escolha aprovada formalmente pela Câmara lisboeta. A meu ver, ela justificaria até uma artéria ou uma praça mais central, na qual a designação e a memória do evocado se pudessem tornar mais visíveis e marcantes. Uma rua ou uma praça que percorressem regularmente muitos milhares de lisboetas e forasteiros, por onde pudesse passar a Volta a Portugal em Bicicleta, onde fosse possível marcar encontros amorosos e expressar em alta voz a vontade ou o protesto coletivo dos cidadãos. (mais…)
Memória, ensaio e elegia, eis um livro escrito como história afetiva da cidade que o autor crê habitada «de ruínas e de melancolia». Escolheu observá-la a partir dos sinais de um passado que é o da sua infância e primeira juventude, fazendo-o acompanhar de recordações familiares, fotografias a preto e branco, livros e jornais envelhecidos. Por todo o lado o hüzün, uma variedade de melancolia, de tristeza, aplicada aos istambuleses que padecem de um sentimento de perda por viverem num lugar cujos dias de glória acabaram. Não se trata, porém, de um exercício meramente nostálgico, pois Istambul não foi apenas o território físico de Pamuk: foi também a casa-mãe da sua imaginação, um espaço com o qual manteve sempre uma identificação poética, o observatório privilegiado para a sua percepção das mudanças do mundo. (mais…)
Do fundo do baú deste blogue, irei recuperar alguns dos posts da série-catálogo «Vidas Exemplares». Estamos todos a precisar de modelos.
Pelos finais do século XIX, Alexandre Marius Jacob (1879-1954), o autoproclamado «ilegalista pacifista», resolveu dedicar-se a tirar «aos que não produzem nada mas têm tudo» para dar «aos que produzem tudo e não possuem nada». A sua vida de assaltante, iniciada em 1894 com a formação do bando «Os Trabalhadores da Noite», destinado a espoliar os «parasitas sociais», jamais foi a do simples criminoso, pois sempre anunciou que as suas acções se voltavam contra a classe dominante e contra «o mais iníquo de todos os roubos», a propriedade individual. Uma percentagem do dinheiro roubado era destinada à causa anarquista e aos camaradas em dificuldades. «O roubo é a restituição», escreveu uma vez no jornal libertário Germinal, parodiando a conhecida frase de Proudhon que equipara a propriedade ao roubo. Com grande sentido de humor e eterno porte de cavalheiro, virá a tornar-se em 1907, para Maurice Leblanc, no modelo ficcional de Arséne Lupin, o gentleman-cambrioleur que fazia questão de troçar da polícia e dos poderosos. (mais…)