O «pessoal do óleo»

A meu ver, não é especialmente grave que uma pessoa chamada Cristina Espírito Santo, ao que consta filha de um administrador do BES, desconhecida fora do seu círculo familiar e dos restritos ambientes mostrados pelas revistas de sociedade, tenha dito ao Expresso que passar umas férias um bocadinho mais simples na herdade da Comporta «é como brincar aos pobrezinhos». Pronunciar-se uma frase como esta, em público ou mesmo em privado, só atesta estupidez, insensibilidade e, já agora, mau-gosto também. E disso encontramos nós todos os dias quando folheamos os rostos ultrabronzeados, os blazers com monograma e as bolsas Michael Kors que ilustram os magazines ocupados com o nosso suposto jet-set. O grave, grave mesmo, é intuir-se daqui que alguém, algum dia, na sua infância brincou mesmo «aos pobrezinhos». É uma frase como essa sinalizar uma atitude, construída desde pequenino, de menosprezo real por aqueles que não fazem parte do círculo de privilegiados dentro do qual vive. E dos quais geralmente depende, aliás, o próprio conforto.

Quando era criança frequentei um círculo dessa natureza. Ia muitas vezes a um dos locais de Portugal onde, na época, mais se faziam sentir os antagonismos de classe: a Covilhã do tempo em que o lugar determinado pelos que tinham e os que não tinham, na então já velha mas ainda lucrativa indústria de lanifícios, sinalizava até os espaços da cidade, rigorosamente separados, como no apartheid, que eram frequentados pelos ricos e pelos pobres. Tendo passado algum tempo entre os primeiros, por razões circunstanciais que não vêem agora ao caso, quando cruzávamos de carro os grupos de operários que em sentido contrário saíam do seu turno nas fábricas, sujas e com organização de casernas, onde trabalhavam quase sem direitos, ouvi muitas vezes chamá-los de «pessoal do óleo». Crianças privilegiadas e mimadas dentro do carro com motorista a dizerem, porque assim determinava o seu lugar socialmente protegido, a sua má educação, «lá vem o pessoal do óleo!». A prova provada de que a consciência de classe existe e não foi mera invenção de Marx ou de Weber. Cristina Espírito Santo atesta-o também. No que me diz respeito, já agora, terá sido essa má experiência a determinar, mesmo sem nada ter lido dos escritores sociais, de que lado quis ficar.

Adenda – Face ao pedido de desculpa apresentado entretanto por Cristina Espírito Santo, não tenho uma vírgula a retirar ou a juntar ao que escrevi. Porque, tal como se perceberá deste texto, o que não se pode aceitar não é a frase em si: é a posição de classe que a condicionou.

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