Arquivo de Categorias: Atualidade

Temos um grande problema

A generalidade dos comentadores de política internacional concorda em que o último discurso de Putin representa um evidente sinal do desespero de quem se viu com todas as suas previsões belicistas trocadas e se confronta agora com o espectro de uma derrota militar na Ucrânia. Depois da sua intervenção, a situação piorou ainda, com alguns sinais bem visíveis, como a fuga de pessoas da Rússia perante a ameaça de uma mobilização forçada para a guerra, o regresso das manifestações de rua, logo reprimidas pela polícia, o imediato reforço da ajuda militar ocidental a Kiev e as posições da China e da Índia, agora nitidamente desconfortáveis com o belicismo desvairado, na forma de fuga para a frente, do seu aliado e, mais recentemente, untuoso cortejador. 

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    Acontecimentos, Atualidade, Democracia, Etc., Opinião

    Sete «novidades» que chegam do Kremlin

    Na sua cegueira, amigos e cúmplices de Vladimir Putin terão exultado com a sua última declaração. Principalmente por sete motivos, perante os quais é fácil contra-argumentar, mas que estes setores jamais questionam, ficcionando a sua própria visão da situação. Em primeiro lugar, porque assumiu formalmente que a Rússia está em guerra, deixando claro que antes andou a enganar os seus próprios concidadãos. Em segundo, porque decidiu o lançamento da mobilização de 300.000 reservistas, o que apenas confirma as notícias sobre o desastre militar que tem sido a sua iniciativa na Ucrânia. Em terceiro, porque acusa o ocidente de «chantagem nuclear», embora todos os jornais mostrem há meses as sucessivas ameaças feitas neste preciso sentido por ele e por Lavrov. 

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      Atualidade, Democracia, Olhares, Opinião

      O Mar Negro, lá longe e aqui ao lado

      Por causa de um longo artigo a publicar em breve, passei perto de três semanas a ler e a escrever sobre a história do Mar Negro. Esse «lago asiático» – como se lhe referia em 1765 a Enciclopédia de Diderot e D’Alembert – que, devido à presente guerra de invasão da Ucrânia pela Rússia, subitamente passou de lugar distante, quase ignorado ou mesmo recôndito para a larga maioria dos europeus, a espaço que nos habituámos a reconhecer como próximo e em condições de afetar o nosso modo de vida. Todavia, por muitos séculos este papel foi inexistente, ocupadas que estavam as suas margens apenas por pequenos poderes e por comunidades isoladas e autossuficientes. 

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        Atualidade, História, Olhares

        Conformismo, proselitismo e inconformismo

        A pessoa conformista aceita sem reagir situações que lhe são impostas e intimamente deveria rejeitar ou contrariar. A disposição que melhor a define é a passividade, temendo sempre que qualquer gesto ou palavra que possa afirmar lhe perturbe o modo de vida. Alinha as suas perceções, crenças e condutas pelas dos outros: encomenda a mesma bebida, adota os mesmos códigos de vestuário ou adere cegamente às escolhas que dominam o grupo a que pertence. O psicólogo social Solomon Asch mostrou que pessoas com este comportamento preferem até dar cobardemente respostas erradas, ou contrariar a sua consciência – como acontece com o triste personagem interpretado por Jean-Louis Trintignant no filme Il Conformista, de Bernardo Bertolucci –, a arriscar a reprovação social, que entendem como via para uma fatal exclusão. 

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          Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, Etc., Olhares

          Na morte de Mikhail Gorbachev

          Apesar de estar completamente afastado do poder há cerca de 31 anos, quando por discordar de um modo frontal da dissolução da União Soviética – bem ao contrário do que por aí se escreve e diz – se demitiu bruscamente da presidência, a morte, ontem ocorrida, de Mikhail Gorbatchev (1931-2022), também Prémio Nobel da Paz de 1990, não deixa de representar a de alguém com um papel decisivo no complexo curso do mundo contemporâneo. Apesar de já existirem muitas e detalhadas obras, tanto no campo da biografia como no do ensaio, publicadas a propósito da sua vida e do seu trajeto político e influência, a sua personalidade e a sua intervenção permanecem de uma interpretação bastante complexa, que talvez só venha a poder ser melhor clarificada no seu próprio país no dia em que este puder despertar do pesadelo putiniano e conhecer melhor tudo o que ali aconteceu nos últimos cinquenta anos.

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            Atualidade, Biografias, Democracia, História, Opinião

            Um livro tão útil quanto perturbante

            Editado originalmente em 2016 e traduzido agora pela Zigurate, Quanto menos soubermos, melhor dormimos, do jornalista e historiador David Satter, possui um subtítulo bastante esclarecedor: «Do terror à ditadura na Rússia sob Ieltsin e Putin». Escrito por um destacado analista da realidade russa desde o período soviético, que viveu décadas em Moscovo até ser expulso em 2013, é livro de leitura compulsiva que de modo algum deixa indiferente quem o leia. Serve também de importante auxiliar para quem pretenda compreender o tipo de gente criminosa que governa a hoje terceira potência militar do planeta – depois dos EUA e da China – e a partir dela procura lançar um novo projeto imperial, ficando também a conhecer os seus métodos, simultaneamente tenebrosos e impensáveis num Estado de direito.

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              Atualidade, Democracia, História, Olhares

              Guerra de mundos: democracia versus autoritarismo

              Ao contrário do que se ouve e lê com bastante frequência, os conceitos de esquerda e direita, nascidos, como é sabido, do conflito de fações que teve lugar durante a Revolução Francesa, e depois determinados pela evolução simultânea do capitalismo, do nacionalismo e dos projetos republicano e socialista, não se encontram «mortos» ou «ultrapassados». Ainda que instáveis, complexos e pautados por contradições, ambos continuam a expor a eterna luta entre, de um lado, um ideal de justiça, igualdade e felicidade coletiva fundado no progresso e nos direitos sociais, e, do outro, uma perspetiva do mundo alicerçada no individualismo, no fétiche do lucro, no conservadorismo e numa ordem social baseada sobretudo em deveres. Anunciar o seu fim faz parte, aliás, do arsenal argumentativo da direita.

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                Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, Opinião

                O eurocentrismo e a doença da eurofobia

                As Cartas Persas, escritas entre 1711 e 1720 e publicadas anonimamente no ano seguinte pelo barão de Montesquieu, são essenciais para compreender a primeira grande mutação no modo dos europeus olharem os que o não são. Nelas, dois fictícios amigos persas escrevem para o país de origem com impressões de uma viagem na França de Luís XIV onde questionam os seus costumes e leis. Para o leitor de hoje a sua crítica encontra-se muito desatualizada, mas o mais importante da obra é a forma como os valores de uma civilização são ali relativizados, mas não rejeitados, por comparação com os de outra. Este método abre caminho para uma das caraterísticas essenciais e mais avançadas do pensamento iluminista: produzir uma visão do mundo que, apesar de agora se reconhecer como eurocêntrica, se esforçava então por compreender as formas de pensar, agir e acreditar de outros povos. Uma perspetiva cosmopolita, até então desconhecida na história e na geografia da humanidade, europeia ou não, que emergiu como instrumento de valorização da diversidade do humano.

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                  Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, Opinião

                  Guerra, identidade e aversão ao outro

                  Sendo uma verdade que a história jamais se repete, pode ter alguma utilidade, na tentativa de compreender momentos complexos da vida dos povos e das nações, ensaiar comparações entre situações históricas situadas em diferentes tempos e lugares. Ao procurar refutar o filósofo Hegel por este ter afirmado que todos os factos e personagens de importância na história mundial ocorriam duas vezes, Marx escreveu no 18 de Brumário de Luís Bonaparte, terminado em 1852, que «ele esqueceu-se de acrescentar: a primeira como tragédia, a segunda como farsa». Vejamos se isto pode ser aplicado a um arriscado exercício de comparação entre o Portugal do século XVII e a atual Ucrânia.

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                    Atualidade, História, Memória, Olhares, Opinião

                    Os acossados

                    Sempre vi como um tanto despropositado o título O Acossado atribuído em Portugal a À Bout de Souffle, a primeira longa-metragem de Jean-Luc Godard, com Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg, estreada em 1960 e um dos filmes basilares da Nouvelle Vague. Porque o personagem principal, Michel Poiccard, apesar de perseguido permanentemente pela polícia, é um homem livre, sobretudo à procura de uma vida em lugar distante onde tudo para ele possa recomeçar. Já o adjetivo «acossado» refere-se de forma muito objetiva a alguém perseguido ou atacado, que vive atormentado por essa condição e reage a ela envolvendo-se ainda mais no quadro de vida que lhe é constantemente imposto.

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                      Apontamentos, Atualidade, Cinema, Opinião

                      Três lições e três alertas

                      Escrevo ainda sobre a guerra na Ucrânia, tema que tenho reiteradamente abordado nas últimas semanas. Não se trata de um epílogo, pois num futuro mais ou menos próximo muito haverá ainda a observar sobre as razões, as formas e as consequências deste episódio que marcará o nosso tempo, mas de uma sinopse onde se destacam algumas linhas de análise.

                      Parece impossível, mas a invasão, que segundo a cândida previsão de um general comentador televisivo iria ir durar «três dias, cinco no máximo», completou três meses no passado dia 24. Na verdade, começara oito anos antes, em fevereiro de 2014, quando forças locais pró-russas, apoiadas por armamento e militares vindos de Moscovo, tomaram a península da Crimeia e parte do território do Donbass, internacionalmente reconhecidos como território ucraniano. Todavia, foi apenas nestes meses que o conflito se expandiu além daquelas regiões, com consequências que acompanham o cenário de destruição de um país e de intimidação de um povo, alargando os seus efeitos a toda a Europa e ao resto do mundo. A situação oferece-nos três lições e três alertas. 

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                        Atualidade, Democracia, História, Opinião

                        O PSD e a faixa da direita

                        Quando falo para estudantes estrangeiros europeus do Portugal politico contemporâneo costumo dar o PSD como uma prova mais da influência perene da Revolução de Abril no nosso sistema. Ficam sempre um tanto baralhados quando lhes digo que o Partido Social-Democrata é desde a fundação em 1974 um partido de direita, habituados que estão nos seus países a associar a designação ao movimento trabalhista e à corrente marxista-democrática – chamemos-lhe assim, embora eu saiba que o termo não é muito preciso – que vem da Segunda Internacional. Aquela criada em 1889 por iniciativa, entre outros, de Friedrich Engels, para substituir a Primeira, destruída pelos conflitos intestinos entre os partidários de Marx e os de Bakunine.

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                          Anotar é viver

                          Não será forçosamente uma qualidade, mas é uma maneira de viver. Jamais me relaciono com o mundo como mero espectador ou simples mensageiro. Muito ou pouco, de forma mais completa ou ligeira, com detalhes ou superficialmente, de forma emotiva ou mais racional, tenho sempre, muitas das vezes apenas para mim próprio, algo a dizer ou a acrescentar. A tudo: uma conversa, uma notícia, um discurso, um artigo de jornal, um livro, uma peça de teatro, um filme, uma peça musical ou um jogo de futebol. Seja sob a forma de comentário, de dúvida ou de simples anotação. 

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                            Duas vantagens e uma cautela

                            O impacto da guerra de invasão imposta à Ucrânia, a que o governo de Putin tem associado ameaças veladas ou manifestas a diversos Estados do leste europeu e da região do Báltico, também contém algumas vantagens. Duas destas relacionam-se com a construção da resposta europeia à agressão russa e com algumas fraturas expostas ocorridas no campo plural da esquerda, ambas motivadoras de clarificações que podem ter alguma utilidade. Todavia, elas apenas serão efetivamente proveitosas se resistirem a unanimismos, de uma origem principalmente emotiva, que sugerem harmonia de interesses onde, na verdade, subsistem contradições e conflitos.

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                              Publicidade agressiva

                              Entre os anos 60 e 80 a publicidade portuguesa, pelo menos aquela que aparecia na televisão, na rádio e nos jornais e revistas de maior circulação, possuía em regra elevada qualidade, tanto no domínio do texto, sempre imaginativo e literariamente cuidado, quanto no plano gráfico e no da realização. Recebia regularmente prémios internacionais e era até, em boa parte, um espaço usado para passar mensagens subliminares contra a paisagem de «vil tristeza» cultural ou no campo dos hábitos que era imposta pelo regime. Alexandre O’Neill e Ary dos Santos, como antes deles Fernando Pessoa, por exemplo, trabalharam na área, transformando o seu esforço nesse domínio em pequenas peças literárias. Assis Pacheco também criou alguns slogãs. Muitas pessoas com memória da época recordam como a publicidade se misturava com o quotidiano, surgindo até, algumas vezes, como momento poético ou inspiração para paródias.

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                                Uma realidade sombria e ameaçadora

                                Lembrou a comissária Ursula von der Leyen que a Europa se está a deparar com sombras de um passado que muitos julgavam extinto. Retirando os conflitos mais localizados que nos anos noventa, após o desmoronamento dos Estados do «socialismo real», tiveram lugar nos territórios da antiga Jugoslávia e do Cáucaso, há já perto de oitenta anos que o continente não assistia a uma guerra com a extensão e as consequências da que tem lugar na Ucrânia. Cidades inteiras destruídas, morticínios de civis, um povo inteiro em fuga e despojado de condições elementares de vida, ataques de artilharia pesada sem sentido aparente, impostos por uma estratégia de conquista e chantagem que utiliza uma política de terra queimada.

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                                  A Finlândia acaba de formalizar o pedido de integração na NATO. Seguir-se-á rapidamente a Suécia e, mais adiante, como não pode deixar de ser, a Ucrânia. O reforço de uma aliança militar – e uma que, no seu historial, tem iniciativas desastrosas, em larga medida determinada pelas escolhas dos Estados Unidos – jamais é boa notícia, salvo, percebe-se agora ser este o caso, se ela puder funcionar como instrumento dissuasor do imperialismo e da mancha de ditaduras que se perfilam encostados à Europa do pluralismo. Como se viu rapidamente, esta guerra foi um erro de cálculo de Putin, que esperava uns EUA sem interesse em meter-se noutra aventura e uma Europa de novo pusilânime. Saiu-lhe o tiro pela culatra e acabou por contribuir para unir e reforçar o inimigo que visava enfraquecer. Para todos nós, o pior é que não se trata de um jogo de vídeo e a emergência de uma segunda Guerra Fria, porventura menos fria que a primeira, não é mera hipótese.

                                  [Originalmente no Facebook]

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