O Mar Negro, lá longe e aqui ao lado

Por causa de um longo artigo a publicar em breve, passei perto de três semanas a ler e a escrever sobre a história do Mar Negro. Esse «lago asiático» – como se lhe referia em 1765 a Enciclopédia de Diderot e D’Alembert – que, devido à presente guerra de invasão da Ucrânia pela Rússia, subitamente passou de lugar distante, quase ignorado ou mesmo recôndito para a larga maioria dos europeus, a espaço que nos habituámos a reconhecer como próximo e em condições de afetar o nosso modo de vida. Todavia, por muitos séculos este papel foi inexistente, ocupadas que estavam as suas margens apenas por pequenos poderes e por comunidades isoladas e autossuficientes. 

Ao contrário do Mediterrâneo, que parte significativa dos habitantes da Europa cedo começou a olhar como um mar que bem conhecia e que lhe pertencia – a dada altura, o Mare nostrum dos romanos –, ao longo de muitas gerações o Mar Negro foi visto como um espaço inóspito e aventuroso. Lugar sobretudo de mitos e lendas, como a das guerreiras Amazonas ou a da viagem heroica dos Argonautas, lançados em águas hostis em demanda do mágico Velo do Ouro, ao qual se aplicavam tantas e tão diferentes designações quantos os povos que o iam habitando ou reconhecendo. Ponto Euxino foi o mais utilizado durante muitos anos, enquanto a atual designação se generalizou entre os turcos a partir do século XVIII e junto dos europeus apenas no seguinte.

Apesar de confinado a uma extensão que só o Estreito do Bósforo permite abrir a outras paragens marítimas, o historiador Charles King reconhece-o capaz de, em cinco etapas, influenciar destinos bem distantes das suas margens. A primeira decorreu entre 700 a.C e o ano 500 da nossa era, tendo como determinante a chegada à região dos gregos e em seguida a dos romanos, sobretudo os segundos em condições de impor formas estáveis de poder militar e de controlo do comercio e da navegação. A segunda, sensivelmente de 501 ao ano de 1500, correspondeu na maior parte do tempo ao domínio político, e sobretudo no campo da guerra do mar, das autoridades de Bizâncio, em associação com os interesses comerciais das repúblicas de Veneza e de Génova. A terceira, entre 1500 e 1700, incorporou a expansão e a capacidade para exercer uma forte autoridade, tanto no mar quanto em terra, por parte de um forte e ameaçador Império Otomano. 

Já a quarta fase, que teve lugar entre 1700 e os meados do século XIX, correspondeu, sob os governos dos czares Pedro I, o Grande, e Catarina II, a uma primeira fase de afirmação política e territorial na região e nas águas do Báltico e do Mar Negro, por parte de uma Rússia imperial em ascensão. E a quinta etapa, que King estendeu dessa altura até à década de 1990, comportou o reconhecimento da região como espaço pautado por um equilíbrio instável de diferentes soberanias, com a intromissão na área, a partir sobretudo da Guerra da Crimeia (1853-1856), de potências europeias, e após a Revolução de 1917 com a forte presença do que será a União Soviética. 

Às cinco etapas propostas por King deve agora juntar-se uma outra. É determinada pela transformação da região numa área de conflito entre a Rússia neoimperialista de Vladimir Putin, desejosa de retomar a influência perdida nos anos que se seguiram a 1991, data de dissolução da União Soviética e de inauguração de uma fase de governação caótica, e, do outro lado, a NATO, os Estados Unidos e a União Europeia. No centro da disputa encontra-se toda uma região que, tendo o Mar Negro como centro, envolve, para além de interesses geoestratégicos antagónicos, recursos como o petróleo e o gás do Cáspio, passando o controlo das rotas dos petroleiros e dos oleodutos a ser mais decisivo que nunca, e tendo ainda associada a produção de trigo em quantidades colossais.

É neste quadro de redefinição estratégica do Mar Negro que pode entender-se o dramático papel de «bola de ténis» desempenhado pela Ucrânia e as razões que determinaram o conflito em curso. A história deste «lago asiático» que agora já o não é continua a ser escrita e os seus protagonistas continuam também a mudar, estando novas soluções para o equilíbrio do mundo a ser definidas naquelas paragens. Pelo meio, hoje como num passado mais ou menos distante, são os povos da região a servir de figurantes na instalação de formas de domínio.

Rui Bebiano

Fotografia de domínio público
Publicado no Diário As Beiras de 17/9/2022
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