Na morte de Mikhail Gorbachev

Apesar de estar completamente afastado do poder há cerca de 31 anos, quando por discordar de um modo frontal da dissolução da União Soviética – bem ao contrário do que por aí se escreve e diz – se demitiu bruscamente da presidência, a morte, ontem ocorrida, de Mikhail Gorbatchev (1931-2022), também Prémio Nobel da Paz de 1990, não deixa de representar a de alguém com um papel decisivo no complexo curso do mundo contemporâneo. Apesar de já existirem muitas e detalhadas obras, tanto no campo da biografia como no do ensaio, publicadas a propósito da sua vida e do seu trajeto político e influência, a sua personalidade e a sua intervenção permanecem de uma interpretação bastante complexa, que talvez só venha a poder ser melhor clarificada no seu próprio país no dia em que este puder despertar do pesadelo putiniano e conhecer melhor tudo o que ali aconteceu nos últimos cinquenta anos.

Gorbachev não foi, de modo algum, o «grande Satã» que apresentam os estalinistas e os saudosos da antiga URSS, que invariavelmente apenas apontam o caos político e o processo de reconstrução do capitalismo que a partir de 1985 sucedeu à «perestroika» (reestruturação) e à «glasnost» (transparência). Na realidade, a sua iniciativa terá sido mais comparável às tentativas de liberalização dentro do regime de socialismo de Estado, ou «de rosto humano», que nos anos 50 e 60 haviam ocorrido na Hungria e na Checoslováquia, ali com o apoio de numerosos comunistas, entre eles alguns portugueses, que por esse motivo viriam a romper com o PCP. De facto, a transformação da Rússia num país de capitalismo selvagem, e depois também de um autoritarismo imperial, foi obra de Boris Yeltsin e de seguida de Vladimir Putin. Esse que aquelas pessoas hoje perdoam e até desculpam.

Mas Gorbatchev também não foi aquela figura supersimpática do «carequinha» – como lhe chamava na época o refrão de uma popular canção brasileira – sempre sorridente e acompanhado da sua coquete esposa Raissa, que o ocidente acolheu de uma forma triunfal, em boa parte devido aos sinais de abertura política, à dissolução da censura, ao processo de redução das armas nucleares e sobretudo à tomada de medidas tendentes a pôr termo ao pesadelo global, de décadas e de gerações, que constituiu a Guerra Fria. Do lado norte-americano em larga medida acompanhadas, importa não esquecer, pelo presidente republicano Ronald Reagan. Aliás, a popularidade internacional do aparentemente afável 7º secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética contrastou sempre com um apoio interno relativamente diminuto, seja durante ou após o seu tempo de governo. Daqui resultando o fim da sua carreira política e transformação em conferencista nómada. Balanço definitivo e menos parcial só o trabalho da história o permitirá.

Fotografia de Boris Spremo
    Atualidade, Biografias, Democracia, História, Opinião.