Os acossados

Sempre vi como um tanto despropositado o título O Acossado atribuído em Portugal a À Bout de Souffle, a primeira longa-metragem de Jean-Luc Godard, com Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg, estreada em 1960 e um dos filmes basilares da Nouvelle Vague. Porque o personagem principal, Michel Poiccard, apesar de perseguido permanentemente pela polícia, é um homem livre, sobretudo à procura de uma vida em lugar distante onde tudo para ele possa recomeçar. Já o adjetivo «acossado» refere-se de forma muito objetiva a alguém perseguido ou atacado, que vive atormentado por essa condição e reage a ela envolvendo-se ainda mais no quadro de vida que lhe é constantemente imposto.

Entendo como «acossadas» aquelas pessoas que, dispondo de algum poder de palavra, mas sabendo que pertencem a uma ínfima minoria, estão a reagir, no presente contexto da guerra de invasão imposta à Ucrânia, de uma forma intempestiva ou mesmo violenta. Fazendo-o contra quem, na diversidade de interpretações que sobre o tema têm natural e necessariamente lugar, partilham – de um modo até politicamente bastante transversal – uma posição que é, no fundamental, de rejeição da agressão russa e de solidariedade com o martirizado povo ucraniano, não procurando, para justificar ou explicar essa agressão, transformar causas longínquas em motivações imediatas.

Desenvolvem então, a partir das pequenas tribunas de que dispõem, ataques ad hominem a quem não pensa como eles: insultam, deturpam, desfiguram, mentem, retiram frases de contexto, fazem juízos de intenção, sem qualquer espécie de pudor ou consideração pela diferença de opinião. Isto acontece por um motivo: alucinados pela ficção em que vivem, ou pela teoria autossustentada que construíram e da qual não conseguem sair, falam apenas para dentro do pequeno grupo, politicamente bastante situado, dirigindo-se às pessoas que o compõem e que desejam, para seu uso, ouvir justamente aquela leitura. O sentido de justiça e de respeito pelo sofrimento dos outros, ou de preocupação efetiva pela tempestade global criada pela guerra em questão, não é visível, pois concentram-se sobretudo na agressão às pessoas das quais discordam.

Sei que tenho sido uma das pessoas publicamente visadas neste processo, mas com uma componente adicional: estes acossados sabem que falo dentro do campo ideológico onde habitam e no qual se esforçam por estabelecer a sua influência, e por isso, como um ‘sniper’ que conhece o terreno onde atua, os posso atingir, por vezes, com alguma precisão e efeito. Como vivo neste papel da atirador desde que me estreei com textos de opinião em 1969, quando, em ditadura, fazê-lo tinha custos que como tantos outros paguei, agora em liberdade isto pouco tem de grave e já só me entristece. Na medida em que por vezes envolve pessoas por quem, mesmo na divergência pontual, tinha consideração. Em diversos casos estou a perdê-la e preferia que isto não acontecesse.

Rui Bebiano

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