Volúpia na Tabacaria é desde já um dos meus blogues, ou fotoblogues, ou blogues poéticos, ou vícios, favoritos. Por mérito próprio e sem favor algum. Permitido fumar, como seria de prever.
O prémio (mais um)
Agradeço ao Delito de Opinião o ter-me citado (com direito pois a uma honrosa menção) na escolha do «blogger do ano» de 2011, ganha com toda a justiça pela Ana Cristina Leonardo, da Meditação na Pastelaria (e mais acidentalmente do Vias de Facto). Destes prémios, dependentes apenas do interesse e da opinião completamente subjetiva de rostos identificados, e isentos de chapeladas, eu gosto. Dos outros não. Mesmo quando os «ganho».
Democracia e trivialização da maçonaria
Muito antes da atual polémica pública se instalar, ocorreu-me uma ou outra vez escrever sobre a maçonaria, os seus caminhos, atalhos, desvarios e remanescentes sinais da antiga e agora decaída grandeza. Ao longo dos anos 80 e 90, algum trabalho académico levou-me a encontros laterais mas regulares com a sua história muitas vezes heróica, algumas outras menos edificante, sempre rica em peripécias, escrita no curso dos últimos três séculos. Talvez por isso pudesse ter qualquer coisa de razoável a dizer sobre o assunto. Pareceu-me, no entanto, que muito do que poderia escrever iria acertar em pessoas concretas, algumas conhecidas e aos meus olhos inteiramente respeitáveis, que pertenciam honesta e convictamente à instituição maçónica. Além disso, vivia-se uma época na qual, para além dos cidadãos diretamente envolvidos, apenas os entusiastas das práticas esotéricas se interessavam pelo tema. Entendi por isso, pesando o interesse do caso, que a polémica na qual me iria meter não valeria o esforço. E dessa forma fui adiando o que tinha para dizer sobre esse mundo particular que passou agora, pelos piores motivos, para os grandes títulos da imprensa e dos telejornais. Mas não será ainda desta vez que o farei com detalhe, limitando-me a um curto apontamento.
Nostalgia e utopia
A Priberam acaba de divulgar os dados anuais de acesso ao seu dicionário de português online. A palavra mais procurada em 2011 foi «nostalgia», seguida por «amor», que tinha conseguido o primeiro lugar em 2010, mas cujas buscas foram diminuindo ao longo do último ano. Existe uma leitura simples, linear, desta tendência, que remete sem grandes hesitações para um interesse pelo passado observado, no atual contexto de recuo dos direitos sociais e das expetativas individuais, como uma «idade do ouro» tão quimérica quanto desejável. Mas podemos ir mais longe na observação do conceito. Recordei então um artigo escrito em 2007 e que tem um pouco a ver com isto tudo. Sendo um texto mais académico, encontra-se num registo diverso daquele adotado neste blogue. Transcrevo, por isso, apenas o primeiro parágrafo, remetendo depois para um link externo que leva ao artigo completo. Dada a altura em que foi concluído, não segue as normas do último acordo ortográfico.
A experiência contemporânea encerra uma sobrecarga da memória e um interesse pelo passado que adoptam a nostalgia como ferramenta da utopia. Percorremos os jornais e as colecções multimédia que oferecem, observamos a publicidade que apela a reminiscências identitárias, constatamos a atenção da crítica e a crescente popularidade dos filmes, romances, documentários e concursos que se cruzam com o fio da história. Reconhecemos também o revivalismo e as dinâmicas de celebração que integram a política cultural dos governos e das autarquias, ou se revelam em iniciativas públicas de diversas instituições. Ao mesmo tempo que o ensino da história recua nos currículos escolares e se reduz a banalidades, um interesse crescente pelo passado e pela sua carga simbólica emerge e expande-se aos nossos olhos, como via escolhida para a imaginação de uma vida-outra. [O artigo completo em formato pdf está aqui.]
Upgrade da imaginação

De acordo com The Iron Whim: A Fragmented History of Typewriting, do canadiano Darren Wershler-Henry, Mark Twain e Friedrich Nietzsche serviram-se com alguma desenvoltura de máquinas de escrever. Daquelas primitivas, ruidosas, difíceis de manipular e cheirando a lubrificante. A verdade é que sempre imaginei qualquer deles a escrever servindo-se com afinco de delicadas penas de pato, o primeiro numa varanda ensolarada à beira do Mississipi, o alemão de Röcken sentado num calmo, soturno e silencioso gabinete, algures entre Sils Maria e Rapallo. Preciso por isso de recorrer a um upgrade parcial da imaginação.
Islão e direitos humanos
Não conheço, a não ser por alusões laterais e três ou quatro leituras-relâmpago, o trabalho de Tariq Ramadan, o cidadão suíço, muçulmano praticante e professor de Estudos Islâmicos Contemporâneos em Oxford, que é também visitante em instituições académicas do Qatar, de Marrocos e do Japão. Por isso, falar aqui sobre o seu trabalho académico parece-me imprudente e de evitar. Sei do lugar importante que desempenha no processo de compreensão de um islamismo ocidental, ou mais especificamente europeu, distinto daquele que, emergindo de forma mais direta da sua matriz histórica, é praticado, sob diferentes rostos, no Médio Oriente e em outras paragens mais a sul e a leste. Foi em parte esta atitude de autonomia cultural, associada à crítica dos regimes islâmicos ditatoriais, que fez com que, até há pouco tempo, fosse considerado heterodoxo e persona non grata em países como a Tunísia, o Egito, a Arábia Saudita, a Líbia e a Síria. Ramadan estará nesta quinta-feira, dia 5, em Lisboa, na Fundação Gulbenkian, onde ao final da tarde proferirá uma conferência pública. ler mais deste artigo
A contar até doze
Estou a ficar preocupado. Em todos os finais de ano, nas resenhas de obituários que acompanhavam os suplementos dos jornais e das revistas, encontrava sempre mortos relevantes de cujo passamento não me havia apercebido ao longo das restantes cinquenta e uma semanas. Ocupado com os ritmos ardentes, com os momentos e os pormenores, esquecera as partidas de alguns dos notáveis, ou dos notados, cuja vida pública algures havia tocado à tangente o meu modo de tomar consciência do tempo. Este ano, não, nem um só dos admiráveis recém-falecidos escapou à minha atenção. Quando começamos a olhar em excesso para as páginas das necrologias, isso quer dizer, creio, que estamos a ficar velhos ou a precisar de férias. Ou de nos sintonizarmos noutro comprimento de onda.
O regresso do mundo bipolar
Logo no prefácio deste Da China, Henry Kissinger informa que desde a viagem secreta a Pequim no ano de 1971, realizada, segundo instruções de Richard Nixon, com o objetivo de restabelecer o contacto entre os Estados Unidos e aquele país e de preparar um pacto de defesa antissoviético, esteve neste país mais de cinquenta vezes. Algumas delas na qualidade de Secretário de Estado dos presidentes Nixon e Ford, outras nas de académico e investigador de temas de política internacional e diplomacia, outras ainda a título particular. Entre estas últimas, sem dúvida – Kissinger não o refere mas a capa do livro di-lo claramente – algumas na qualidade de presidente da Kissinger Associates, Inc., uma empresa de consultadoria internacional obrigatoriamente atenta às transformações das últimas décadas e à afirmação da China num âmbito global. Em todo o caso, transversal às diversas qualidades do visitante é o conhecimento que este foi acumulando da história e da realidade chinesas. Destaca por isso, nos capítulos iniciais, a forma como ao longo do século XIX, por vontade própria ou não, as autoridades do país começaram a pôr termo ao tradicional isolamento, tecendo uma diplomacia complexa e criteriosa destinada a controlar uma abertura imperativamente gradual. Um dos caminhos mais evidentes tomados por este volume resulta pois do esforço para, sem negar as vicissitudes históricas vividas na região e as sucessivas configurações que o poder político foi tomando, nele se demonstrar a existência de uma linha de continuidade estratégica, no campo das relações com o exterior, que o autor acredita remontar ao tempo dos mongóis e da dinastia Manchu e se terá estendido de modo quase ininterrupto até à atualidade. ler mais deste artigo
Don Juan e a presidência da França
Um número recente da série da Le Point sobre os «grandes mitos» é dedicado a Don Juan. Se seguirmos a definição do Houaiss, podemos considerá-lo a representação ou a súmula do «homem extremamente sedutor, conquistador, mulherengo». Do donjuanismo diz um dicionário popular ser «mania» de quem quer para si, como num ritual de posse, «fêmea após fêmea». Outras fontes associam a figura a uma personagem semilendária que «parece ter vivido em Sevilha», servindo a fantasia da sua existência de inspiração a autores que recorreram ao tipo do «conquistador brilhante, libertino e sem escrúpulos» ao qual as mulheres são incapazes de resistir. Se bem que depois, recorrentemente, como um dever, ele «as engane, despreze e rapidamente esqueça.»
Destaco dois artigos deste número da revista. No primeiro, Michel Delon, autor de um estudo recente com um título tão estimulante como Le Principe de délicatesse. Libertinage et mélancolie au XVIIIe siècle, contrapõe Don Juan a Casanova, o aventureiro italiano ao qual é frequentes vezes equiparado. A separação deve-se principalmente, para Delon, ao facto de Casanova arrebatar, por processos de sedução algo artificiais, o amor das mulheres, enquanto Don Juan o obtém naturalmente, pela sua própria maneira de ser. Um, o italiano, jogando sempre nos limites do cinismo, o outro, o espanhol, vivendo cada dia nas margens do absurdo. Num outro artigo, o sociólogo Michel Maffesoli define a figura do conquistador sevilhano como «arquetípica» de uma certa sede de viver o presente de forma total, permanente, que é muito característica do nosso próprio tempo. Aplicado na exaltação da paixão, vivendo cada relação numa espécie de estatuto de inocência, incapaz de considerar experiências anteriores, é, sob essa perspetiva, uma figura extremamente contemporânea. ler mais deste artigo
O chalet de Judt
Quando foi publicado este pequeno livro de Tony Judt, o seu último, o destaque das notícias e da crítica centrou-se nas condições dramáticas em que foi escrito. Em 2008, três anos após a publicação do aplaudido Pós-Guerra, fora-lhe diagnosticada uma doença motora neurológica, incapacitante e irreversível, que rapidamente o iria fazer perder a mobilidade, a voz e por último a vida. Este seu derradeiro esforço reflexivo foi, por isso, produzido em condições particularmente difíceis e incomuns. No segundo capítulo, «Noite», saído originalmente em janeiro de 2010 – como a maioria dos textos que integram o volume na New York Review of Books –, fala da forma como as características da doença o foram deixando livre para contemplar, com um desconforto mínimo, o desenvolvimento catastrófico da sua própria destruição. Mas é o primeiro texto, que dará o título à obra, aquele que melhor caracteriza a sua intenção. Nele o historiador explica-nos o método de que se serviu, noite após noite de solidão e imobilidade, para, recorrendo aos mesmos artifícios mnemónicos utilizados pelos primeiros pensadores e viajantes modernos, revisitar, reorganizar e expor algumas das suas mais marcantes experiências. ler mais deste artigo
Natal tramado, porém Natal
Tenho amigos que quando se aproxima o Natal procuram agir como se ele não existisse. Retiram-lhe a maiúscula, desejam apenas «festas felizes», ou adiantam os votos de «bom ano», deixando às vezes cair um levemente irónico «cuidado com os doces!». Mas do Natal como festa procuram não falar, talvez para se distanciarem dos rituais da Igreja da qual um dia se afastaram. Ou por transportarem um sentimento de culpa pela sua condição de atávicos herdeiros da matriz judaico-cristã. Ou ainda porque a festa natalícia lhes recorda enfadonhas reuniões de família nas quais os ressentimentos do ano impunham longas horas de hipocrisia coletiva. Poderá até ter ocorrido no seu passado uma mal sucedida relação com o Pai Natal e as suas renas. Mas Natal é Natal, o dia escolhido pelos seguidores de Cristo para simbolizar uma ideia de fraternidade e de modéstia que é mais humana do que divina. No que me toca, sendo agnóstico – e até os ateus são agnósticos – continuo a comemorá-lo como um dia especial, acompanhado de peru e vinho tinto, bolo-rei e rabanadas, prendas e efeitos de luz, mas também pela esperança, como acontece desde que, na infância, fugia da mesa da consoada e ia olhar para o céu na procura ingénua de um movimento diferente dos astros. Assim continuará, aliás, a acontecer, ainda que num eventual caso de proibição governamental tenha de praticar a desobediência cívica. Manter-se-á uma altura do ano, talvez um pouco dolorosa por causa dos que faltam, no qual penso um pouco mais nos outros. Principalmente nos que passam frio e fome, ou são silenciados e perseguidos, ou vêm o seu futuro a andar para trás. Desejo um Bom Natal de 2011 a quem se dá ao trabalho de me acompanhar deste lado da jornada. Que apesar de tudo o gozem o melhor possível, pois se as coisas piorarem, como deverão piorar, assim escreveu Nicolau Santos no Expresso, «ainda vamos ter saudades dele».
O inadiável confronta o improvável
A minha formação cristã já decorreu há muito tempo. Mas não o tempo suficiente para que eu já confunda a quadra do arrependimento e da expiação do pecado pela via dolorosa da penitência, que decorre na Quaresma, com as esperanças serenas e indulgentes que o Natal supostamente transporta consigo. Todavia, como o suceder do tempo acelera cada vez mais, existem erros e dislates cometidos pela esquerda portuguesa que quanto mais tarde começarem a ser expiados – no sentido da emenda, não da fustigação dos seus executantes – tanto mais longa será a via-sacra de penitência que irão impor.
Há que designar as realidades pelos nomes, sem qualquer intenção de abater este ou aquele mas também sem fazer de conta que está tudo bem. Ou mais ou menos bem. A desgraça pública patrocinada pelo governo da direita tem, de facto, o seu reverso na responsabilidade da esquerda pela situação criada e pela ausência de uma saída. Nesta imputação de culpa existem duas asneiras com ecos brutais na nossa vida que convém dissecar na perspetiva da reparação. Primeira asneira: ter-se considerado o PS de Sócrates, ou qualquer outro, como «rigorosamente igual» ao PSD de Coelho. Está visto que não era e, como muitas pessoas que votaram à esquerda dos socialistas logo preveniram, vê-se agora como esse erro de perspetiva nos empurrou para a queda abissal no pântano do capitalismo mais primário e bestial. Segunda asneira, consequência da primeira: que a insistência na moção de censura responsável pelo derrube do governo PS tornou essa queda inevitável.
Tudo isto se relaciona com uma imposição da realidade que sei levantar muitos problemas à «esquerda da esquerda» mas que se mostra incontornável. Sem hipóteses de uma alternativa autónoma, eventualmente mais profunda e radical, nesta fase, que possa transformar-se em projeto de poder, só um grande (grande mesmo) arco de unidade pode ultrapassar a lógica exclusiva do mero protesto e lançar as dinâmicas que conduzam ao derrube da direita. E este, por muito que doa a quem tenha a memória fresca – e a mim dói, acreditem – tem de incluir os socialistas. Ou melhor, não é palavrão, o Partido Socialista. Com cedências de todas as partes, claro. Procurando uma base mínima que, nesta fase, se dedique à tarefa ultra-urgente de combater o pior inimigo: o revanchismo insano da direita e a falta de visão e de coragem para defender o país e os seus por parte de quem, circunstancialmente mas com condições para determinar décadas do nosso futuro coletivo, está agora no governo. Quando o inadiável está na preservação «da paz, do pão, saúde, habitação», de que serve e a quem serve passar o tempo a projetar panoramas improváveis com rubras bandeiras a adejar?
Sem dedos e sem anéis
O desnorte da governança do país, exclusivamente imersa nas soluções de curtíssimo prazo e no revanchismo de direita em detrimento da busca de um caminho e de uma esperança para o país e para os portugueses, está a atingir níveis que estão para lá da compreensão de todo o cidadão habituado, para o mal ou para o bem, a projetar a intervenção dos partidos de governo e dos seus líderes como subordinada a uma estratégia minimamente coerente. A proposta da emigração de professores e de outros quadros como solução para a situação crítica das finanças públicas e da economia do país, que de hipótese ou escolha individual passou a bandeira do governo CDS-PSD, é de uma irracionalidade e de uma ausência de perspetiva colossal. Esta apenas se tornou possível graças à chegada ao eixo do poder de uma geração de quadros partidários treinada no arrivismo e na gestão do imediato. Gente pequena, sem horizonte, com escassa ou nula experiência profissional e claramente pouco inteligente – o seu léxico e a sua retórica demonstram-no cabalmente aos mais atentos – que mostra uma espantosa incapacidade para definir um desígnio razoável para a coisa pública e para o infeliz país que lhe foi parar às mãos.
Podem enumerar-se algumas razões para abominar esta hipótese da sangria de quadros, em cuja formação Portugal foi investindo ao longo de quase quatro décadas, como forma de «despachar» uma parte do problema do desemprego. Elas têm sido referidas por muitos comentadores e não vale a pena repeti-las. Limito-me a constatar o absurdo que é afugentar justamente as pessoas que, enquadradas por políticas coerentes e positivas, estão em condições de recolocar Portugal no caminho do desenvolvimento humano e tecnológico como via para recuperar a economia e a qualidade de vida. Como pode conceber-se que será apenas com cidadãos próximos da idade da reforma, já sem condições para emigrarem e recomeçarem o seu trajeto, ou então com trabalhadores menos qualificados, que, mesmo na ótica do capitalismo selvagem, podemos inverter a queda em espiral na qual mergulhámos? Mas há pior: esta proposta, a materializar-se, imporá uma condenação ao exílio perpétuo de um número imenso de jovens. Sem que isso traga outro benefício para o governo que não seja retirá-los das ruas, nas quais podem engrossar o descontentamento e a contestação. É que, pessoas com essa formação, no mundo de cultura global no qual habitamos – que já não é o do emigrante de valise en carton, futuro torna-viagem, com as suas «remessas» de divisas –, transferirão os seus horizontes de vida e de trabalho para os países de acolhimento e, com toda a certeza, não mais regressarão. Esquecendo obrigatoriamente o passado, os lugares da infância, talvez a língua, enquanto se esforçam por ir construindo, a milhares de quilómetros da aldeia dos seus avós, novas «zonas de conforto». E nós por cá ficaremos sem dedos e sem anéis. Mais pobres ainda e sem meios humanos para podermos sair da pobreza.
O riso de Václav Hável
No início dos anos oitenta conheci alguns estudantes universitários de Praga integrados numa trupe de teatro em visita semioficial a Portugal. O contacto foi breve mas o suficiente para deixar uma impressão indesmentível: pelo menos na aparência todos eles eram anti-regime, «decadentes» filhos de Woodstock de cabelos desgrenhados e fanáticos do rock’n’roll, e, sem contradizerem o resto, seres humanos desdenhosamente anticapitalistas. Quer isto dizer, tão libertários e antiautoritários quanto se podia ser num país como o seu, ainda a esforçar-se por sobreviver debaixo da bota impiedosa do Pacto de Varsóvia. Mesmo que lá pelo meio viesse com toda a probabilidade algum inevitável agente da StB, a pouco amável polícia de Segurança do Estado, e aquela fosse gente «especial», como o é invariavelmente a que se movimenta nos meios das artes, a sua atitude constituía um sintoma. O contacto com aquelas pessoas revelava também, aos olhos de quem estivesse atento, aquilo que a rua checa havia mostrado já quando da Primavera de Praga e do seu violento epílogo marcado pela repressão e pela raiva impotente: que ali se tinha desenvolvido uma apreciável e dinâmica corrente social, para a qual a prepotência do Estado e a imposição do pensamento único se haviam tornado insuportáveis, produzindo uma forte e obsessiva vontade de os ver desaparecer do seu horizonte.
Essas foram as circunstâncias da afirmação como ativista e voz escutada de Václav Hável (1936-2011), o dramaturgo, poeta, ensaísta, amante de jazz, de rock e de Frank Zappa, ex-dissidente e político checo falecido na manhã deste último domingo. Conhecemos o seu percurso contado pelos amigos, anotado em referências autobiográficas e entrevistas, pelas páginas dos artigos e livros que escreveu, pelas fotografias noturnas tiradas em noites de boémia num país no qual estas eram um grave sinal de devassidão moral, de subversão e de «decadência capitalista». A participação na Carta 77, abrindo o processo de contestação do regime de partido único que haveria de culminar na «Revolução de Veludo», iria acabar por conduzi-lo a responsabilidades às quais, como repetidamente disse, jamais tivera a intenção de chegar. Estas metamorfosearam-no de «burguês reaccionário» em homme d’État, com dimensão simbólica e exigências diárias que acabaram por condicinar a sua evolução como artista. Coagindo-o até a tomadas de posição que noutras circunstâncias, provavelmente, teria assumido de outra forma. Mas esse foi o preço a pagar por quem, num dado momento, decidiu optar pelo enorme risco de passar das conjeturas filosóficas e das digressões literárias à gestão diária da política do factível. Nem todos temos a coragem, ou a vocação, de assumir tal escolha e de pagar por ela, oferecendo um pouco da nossa própria liberdade pela liberdade dos outros. Mas Václav Hável teve-a, tentando fazê-lo sem pôr em cheque o belo juízo que um dia anotara como seu: «Todo aquele que se leva demasiado a sério corre o risco de parecer ridículo; um risco que não corre quem desenvolva de forma consistente o hábito de rir de si próprio.» Os que o conheceram recordam como gostava imenso de o fazer.
Abogi, Abogi! (Adeus Querido Líder!)
A morte de Kim Jong-il está a servir ao governo norte-coreano para intensificar uma das características mais brutais do seu «socialismo dinástico»: o drama da escravidão dos corpos e das consciências imposto à generalidade dos cidadãos, sob o efeito da repressão, do treino, da propaganda, do preconceito e da ignorância de realidades alternativas. Do livro de Barbara Demick, A Longa Noite de um Povo (ed. Temas e Debates), que venceu em 2010 o Prémio Samuel Johnson e compila diversos testemunhos de cidadãos da Coreia do Norte que puderam passar a fronteira e escapar ao regime concentracionário de Pyongyang, retiro uma descrição de momentos que se seguiram, em 8 de julho de 1994, ao desaparecimento de Kim Il-sung, fundador do regime. O paralelismo com as cenas públicas de hoje é inevitável.
– Abogi, Abogi! – gemiam as velhas, empregando o título honorífico usado para uma pessoa se dirigir ao seu pai ou a Deus.
– Como pudeste deixar-nos assim de repente? – gritavam os homens por sua vez.
Os que esperavam na fila saltavam para cima e para baixo, batiam na cabeça, caíam em desfalecimentos teatrais, rasgavam as roupas e davam murros no ar, numa raiva inútil. Os homens choravam tão copiosamente como as mulheres.
A teatralidade da dor assumia um aspeto competitivo. Quem conseguia chorar mais alto? Quem estava mais perturbado? Os que prestavam o seu tributo eram incitados pelos noticiários televisivos, que transmitiam horas e horas de pessoas a prantear, homens adultos com lágrimas a correrem-lhe pelo rosto, a baterem com a cabeça nas árvores, marinheiros a baterem com a cabeça nos mastros dos navios, pilotos a chorarem na cabina de pilotagem, e assim sucessivamente. Estas cenas eram intercaladas com imagens da trovoada e dos copiosos aguaceiros. Parecia o dia do Juízo Final. ler mais deste artigo
Melhores blogues de 2011
No ano passado o programa da TVI Combate de Blogs designou-me «blogger do ano». Na altura, o facto inquietou-me um pouco, por motivos que então expliquei (poderá revê-los). Filipe Caetano, o responsável pelo programa, sugeriu entretanto que fizesse parte do painel que nomearia os candidatos deste ano aos melhores blogues de esquerda, de direita, coletivos, individuais e revelação. Sob novas condições, aceitei a proposta e colaborei então na escolha – obviamente discutível e parcial – dos que vão agora a votação. Um deles é uma vez mais A Terceira Noite, que não estava evidentemente entre aqueles que nomeei. Se quiser, pode votar aqui até ao dia 5 de janeiro.
Anjos da paz dos lares
No meio das propostas surpreendentes que todos os dias chegam à minha caixa do correio-e, uma mais recente, enviada por uma firma de detectives brasileiros, garante resolver o problema de quem se possa sentir «desconfiado que está sendo traído pelo e-mail ou bate-papos online». Nela se avisam também os potenciais clientes de que não vale a pena tentar tratar com a empresa de assuntos vulgares, de reduzida magnitude social, como fraudes financeiras ou o roubo de cartões de crédito, uma vez que só aceitam «serviços para investigação sobre adultério e infidelidade na Internet». Tratar-se-á com toda a probabilidade de um conjunto de pessoas de elevadíssimos princípios morais, profundamente zelosa da paz dos lares e da preservação compulsiva da família.
As 1001 Noites (8)
