
As 1001 Noites (9)

Quanto mais o tempo passa e os acontecimentos se sucedem em catadupa sem o vislumbre de uma solução, mais se confirma uma certeza: não existe, para a Europa, alternativa aos demónios do nacionalismo que não passe por um forte esforço federalista, por muito que se encontrem em aberto as modalidades que este possa tomar. Como escreveu o medievalista californiano Patrick J. Geary no excelente O Mito das Nações (editado pela Gradiva), «os europeus têm de reconhecer a diferença entre o passado e o presente se quiserem construir um futuro». Isto é, têm de saber que a preservação a todo o custo dos velhos modelos da identidade nacional os pode empurrar para o abismo. Ou então a lutarem entre si até que o mais forte seja capaz de estabelecer uma nova ordem em seu benefício. O «perigo alemão» está a tornar-se real e não será o restabelecimento das fronteiras vigiadas ou uma nova guerra (fria, morna ou quente) que o impedirão de afirmar-se. Será antes, todos temos de perceber isso e mobilizar vontades para o conseguir, a construção de uma Europa federada, paritária, solidária e realmente democrática. Conseguida pelo erguer vigoroso das consciências e das vontades, no irromper, agora necessariamente concertado, de uma nova «primavera dos povos». Parece a sua consideração um vestígio dos ideais de 1848? Pois parece. E daí? O tempo é outro, existem novos e pesados condicionalismos, o passado não pode comandar o que está para vir, mas os contornos essenciais da nuvem ameaçadora – governos autocráticos, crises económicas, perda dos direitos das classes médias, desemprego crescente, leis do trabalho insidiosas, agressividade dos nacionalismos – têm um desenho muito parecido com o daqueles anos tumultuosos. E requerem medidas rápidas. Em 48 foi o próprio Alexis de Tocqueville que lançou na Câmara dos Deputados de Paris: «Nós dormimos sobre um vulcão… Os senhores não percebem que a terra treme mais uma vez?»
Essa quase sempre desgraçada fonte contemporânea do saber condensado que é a versão em português da Wikipédia, identifica Mário Dionísio (1916-1993), muito abreviadamente, como «um escritor e um pintor português do Século XX». Refere ainda em duas tristonhas linhas a sua atividade enquanto professor, crítico, polemista e tradutor. Mas sem descer a pormenores. Sem mencionar a força e a originalidade de um trajeto. E assim, por facilitismo e omissão, reduz a vida, a intervenção e a obra de um português de exceção – atento, sempre, tanto à inovação quanto à dimensão social da literatura, da arte e da política – a um apontamento baço no qual é fácil não reparar ou que num instante se esquece. Nada de mais imerecido em relação a um homem que tantos de nós, ou dos que nos antecederam, olham ou olharam como exemplo do escritor independente, do companheiro de muitas lutas ou do mestre de explicações do mundo. Pois se até o Pacheco, o insuspeito Luiz sempre adverso a louvores, escreveu em 1969 no Notícia de Luanda que «o homem, Mário Dionísio, a obra e sua repercussão (…), dão para muita conversa»!
É já neste dia 2 de Fevereiro, quinta-feira, que pelas 17H30 é inaugurada na Biblioteca Municipal de Coimbra a exposição «Mário Dionísio – Vida e Obra», organizada pela Casa da Achada/Centro Mário Dionísio e pelo Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra. Intervirão nesta sessão António Pedro Pita e Eduarda Dionísio. A exposição irá manter-se até ao dia 15 de Março. A iniciativa conta com o apoio da BMC, do CEIS20 – Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX e das Ideias Concertadas.
Da crónica de hoje, a última de Pedro Rosa Mendes para a última semana de «Este Tempo», o programa da Antena 1 que a administração da RDP entendeu fazer calar por conter vozes incómodas, deixo um fragmento que pode servir-nos para aferir do estado cataléptico em que a nossa democracia se encontra. Do qual este episódio é apenas mais um sinal. Um panorama demasiado assustador? Talvez o seja. Mas os mais velhos ensinaram-nos que não há como sustos e adversidades para aprender a crescer e a rasgar caminhos. Aqui ficam então, também para que se não diluam rapidamente no éter, as palavras de Rosa Mendes que sublinhei.
«Quatro décadas de democracia produziram, afinal, uma sociedade asfixiada por valores do silêncio, da cobardia, do bajulamento e dessa gangrena da nossa pátria que é a inveja social. Por junto, uma cultura mesquinha em que quase sempre não há ninguém que diga aquilo que todos sabem, mas que todos devem calar. Uma terra onde, finalmente, se instalou o medo e uma noção puramente alimentar da dignidade individual. Traduza-se: está caladinho, para guardares o trabalhinho.»
O episódio envolvendo o fim de «Este Tempo», o programa de opinião da Antena 1 no qual colaboravam Pedro Rosa Mendes e Raquel Freire, para além de António Granado, Gonçalo Cadilhe e Rita Matos, devido a uma crónica na qual o jornalista e escritor falava, moderadamente aliás, da comunicação acrítica que pactua com o servilismo do governo português diante do angolano, coloca-nos diante de quatro realidades preocupantes. A primeira, mais óbvia, diz respeito à intromissão do poder político na esfera da liberdade de opinião. Não sendo nova em democracia, está agora a atingir um nível insólito de intensidade e de atrevimento, recorrendo cada vez mais à lógica dos supostos «interesses nacionais». A palavra censura emerge aqui, com todas as letras, como a adequada para descrever aquilo que está a acontecer. A segunda realidade tem a ver com a mistura, materializada desde logo na atuação do governo, entre os direitos políticos, que dizem respeito à esfera do coletivo e podem aparentemente ser condicionados, e os interesses económicos que têm a ver com a atividade privada de alguns e, nesta lógica, devem supostamente estar libertos de incómodos. A terceira refere-se ao nível de compactuação dos responsáveis eleitos e de algumas correntes políticas de um pais democrático com o governo corrupto, nepotista, despótico, e para mais não-eleito, de Angola. A quarta realidade integra enfim a ostentação, e a proteção, desse padrão de jornalismo sabujo, bajulador e intoxicante, pago além disso com dinheiros públicos, diretamente visado pela crónica de Rosa Mendes na referência que fez ao programa de Fátima Campos Ferreira emitido em direto de Luanda com a participação do omnipresente ministro Relvas. Sobre tudo isto a pesada sombra da ausência de vergonha e da ostentação do intolerável. [a notícia] [em cartaz]
A frase «dos fracos não reza a História» assinala a infâmia daqueles que não enfrentam as dificuldades ou se vergam diante do mais forte. Sublinha a vileza sem remissão de toda a cobardia. Estigmatiza sem piedade a sua lembrança. O seu uso supõe no entanto uma condição: a de que se observe o tempo como tribunal e como teatro diante do qual cada um é julgado pela forma como representou o seu papel. Com a crescente depreciação da História enquanto espaço para um julgamento equitativo da experiência, com a sobrevalorização do imediato e do valor de mercadoria, a expressão parece hoje deixar de fazer sentido. A valorização da cobardia e da apatia diante da força não é nova, mas estava antes confinada aos oportunistas, aos agiotas, aos tiranos e aos tolos. Agora parece por vezes transformar-se em bússola do bom cidadão, exilando-se quem pensa no longo prazo, ou defende a necessidade da resistência diante da injustiça, para o campo minado da irrelevância ou mesmo do crime. No entanto tudo isto obedece a ciclos, a etapas em rápida corrente e contracorrente, e inevitavelmente será a própria História a tratar do assunto pela medida seletiva de sempre. Em nome da coragem e do futuro, é sempre bom sabê-lo. Ou pelo menos acreditar nessa possibilidade.
Foi fácil encontrar a melhor maneira de abrir este parágrafo. Começa assim: Eu gosto muito de Guimarães, já quase lá vivi, e as memórias que guardei são em geral boas ou muito boas. Também por lá passei fome quando andei clandestino, mas isso foi há tanto tempo que agora parece lenda ou episódio de romance. Gosto de alguns dos seus naturais e de os ouvir abrir as vogais, acho bonita uma boa parte da cidade e em Janeiro costuma fazer por ali um friozinho matinal que gela os pés e desperta a alma. Não partilho, não só por isso mas também por isso, da maledicência congénita de quem da empresa da Capital Europeia da Cultura apenas declara ou espera o pior. Como não aceito o bairrismo incontinente de quem descobre agora uma energia esquecida de propósito para poder ser revelada. Qualquer um sabe que a grande parte daquilo que está feito ou do que vai acontecer não saiu de um tesouro esquecido nas fundações de um velho edifício. É esforço comum, aberto quando ainda todos ingenuamente nos julgávamos escandinavos. O que não representará um mal, antes pelo contrário, se, no fim de tudo, quando os holofotes se apagarem, quando as ruas forem limpas e as secretárias esvaziadas, sobrar obra feita e pessoas e coletivos e a cidade e o seu termo ficarem a mexer. O que significará a ler, escrever, pintar, dançar, tocar. A expor, fazer teatro, ver cinema, debater este mundo e criar o outro. A fazer o sete, ou trinta por uma linha, sem precisar de um valente empurrão. Mas por enquanto ainda estamos de esperanças. Oxalá então tudo corra pelo melhor. Cá estaremos para aplaudir ou pedir contas.
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Sobre uma fotografia de sentido expressivo petrificante, tirada ontem durante a cerimónia oficial de abertura do Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura, e uma troca de comentários no Facebook a respeito da mesma (e apenas dela, não do evento), recupero uma canção de José Mário Branco com cerca de quarenta anos composta sobre um soneto de Alexandre O’Neill com mais de cinquenta.
Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.
Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.
Perfilados de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.
Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido…
É já nesta terça-feira, dia 24 de janeiro, que numa organização do NHUMEP (Núcleo de Humanidades, Migrações e Estudos para a Paz) do CES – Centro de Estudos Sociais tem lugar em Coimbra o início do 2º ciclo «Vidas e Vozes – Diálogos Contemporâneos». Com este ciclo pretende-se projetar e debater de forma panorâmica, simultaneamente analítica, polémica e didática, e junto de um público o mais alargado possível, as vidas, as obras e as escolhas de autores/as – pensadores, cientistas, políticos, teólogos, escritores, artistas – com uma intervenção relevante para os processos de compreensão, de representação e de revisão crítica do mundo contemporâneo.
Nesta sessão, José Manuel Pureza falará sobre o sociólogo Johan Galtung e João Rodrigues abordará o economista Karl Polanyi. A moderação será de Júlia Garraio. Começará pelas 21H15 e decorrerá na Galeria Santa Clara. Pormenores sobre a sessão podem ser conhecidos aqui. E o programa completo pode ser visto aqui.
Para Orwell, «não existe sentimento de simpatia e antipatia tão essencial quanto um sentimento físico». Superamos mais facilmente as divergências de opinião, os confrontos de ordem moral, a distinção da língua ou da pele, a diferença de estatuto – até mesmo, para muitos, os vínculos mais fundamentais da fé – do que aquela distância, invisível mas rígida, incerta mas intransponível, que é imposta pela repulsa física. O olhar que se desvia repentinamente, o odor estranho que logo afasta, o toque ou a voz que apenas incomodam, provocam a exclusão imediata e quase sempre definitiva. A química do ódio – como a do erotismo ou a do amor, também elas súbitas – jamais será explicada pelos tratados de ciência certa ou pelo a-bê-cê da luta de classes. Nunca será considerada nos manuais de civilidade ou nas páginas do código penal. Mas persiste para nos separar sem remissão.
Na esquerda política, historicamente erguida a partir da contestação da ordem tirânica e injusta do capitalismo, tem-se mantido uma posição dominante de impaciência ou de desprezo perante a inclusão efetiva da diferença. Em Portugal, é verdade que todos os seus partidos e movimentos declaram justamente o contrário, mostrando sempre vontade de se abrirem à integração de pontos de vista e de cidadãos reputados como «independentes». Todavia, estas têm como característica indispensável, para cumprirem o papel que lhes está destinado, o fazerem com que as suas provas de independência jamais contrariem a «linha justa» traçada pelas direções. Nestas condições, deixam de ser as pessoas e as suas ideias a ser integradas, sendo antes o seu corpo e a sua voz que são requisitados em nome da estratégia ou da campanha do momento. Pode então ter-se toda a razão, mas se essa reserva é ultrapassada e se diverge explicitamente dos procuradores da linha que decide, se se defendem em público posições que a contestam, é-se silenciado ou, no limite, combatido. Diga-se aquilo que daí para a frente se disser, ou tomem-se as posições que se tomarem, a marca infamante fica gravada como uma tatuagem. E muitas vezes deixa de haver lugar para essas pessoas nas fileiras. Conheço ou conheci algumas. ler mais deste artigo
Ontem, no Parlamento Europeu, Daniel Cohn-Bendit, ele mesmo. Face a face com Viktor Orbán, o primeiro-ministro da Hungria, durante o debate sobre a grave situação política naquele país. Um discurso de combate e de denúncia da nova ameaça totalitária. Um discurso que a nossa informação, bastante mais interessada na humilhante derrota de José Mourinho em Madrid e nas intervenções desarrazoadas do ministro da Economia, se encarregou de tornar irrelevante.
É provável que muitos portugueses, mais preocupados com a aparente traição de Irina Shayk ao namorado Cristiano ou com as desculpas esfarrapadas do capitão do navio italiano que se deixou naufragar, não tenham ainda tomado consciência das alterações consumadas hoje nas leis do trabalho. E que demorem até a compreender verdadeiramente a situação agora criada. Mas estas mudanças configuram a primeira alteração radical da orientação seguida desde os anos de 1974-1975 e modificam de maneira profunda as relações entre patrão e empregado com as quais nos habituámos a conviver ao longo de tantos anos. Junte-se a isto, como lembra José C. Nogueira a título de exemplo do que vai acontecer, que mesmo a pequena parte que conheceu as relações pré-Revolução nunca viu uma indemnização por despedimento tão baixa como a que entra agora em vigor para os novos contratos de trabalho. Este é, sem dúvida, o momento decisivo da Contra-Revolução, aquele pelo qual, desde há perto de quarenta anos, gerações de empresários de vistas curtas e de políticos de uma direita débil, cobarde e envergonhada tanto esperaram, conseguindo agora o que sempre quiseram, e de mão-beijada, por intervenção da crise financeira, dos mandatários do capitalismo internacional e, que fique para a História, da iniciativa da atual geração de dirigentes do PSD (já que o CDS segue a bordo por circunstâncias particulares e apenas ajuda à festa). ler mais deste artigo
Uma das virtudes de ser politicamente independente, embora comprometido com a vida na cidade, está em podermos muitas vezes servir-nos de impressões, de imprecisões, de incómodos, ao lado do que conhecemos através da experiência e da reflexão, para definir e projetar os nossos juízos. Sem preocupações de maior com aquilo que pode pensar o vulgar cidadão eleitor, com a aferição das ideias que expomos pela medida de um programa escrito, com o consenso obrigatório e razoável que os nossos argumentos construam, ou, em última análise, com a conformidade que separa rigorosamente, a partir de um risco no chão, o bem do mal e o que pode ser dito daquilo que deve calar-se. Nestas condições, a nossa própria noção de liberdade, associada à autonomia do pensamento, da palavra e da ação, representa o único limite. Mesmo quando lhe associamos, como já os filósofos da existência ancorados na rive gauche do Sena recordavam, uma medida de responsabilidade social que compatibiliza as nossas escolhas com os imperativos que vamos partilhando. Ou quando temos a consciência, à medida de Guy Debord, de que as escolhas, todas as escolhas, são desde o princípio determinadas pelos outros. Mas até nestas condições serão sempre nossos, essencialmente nossos, a última palavra e o gesto definitivo. Dizer ou calar, fazer ou não fazer.
Sei que o drama vivido pelos naufragados não aconselha a brincadeira e que a minha formação básica de livre-pensador (não confundir com a do pedreiro-livre), de racionalista crítico e de pragmático materialista me impede de aceitar influências chegadas do domínio do sobrenatural, mas é preciso reconhecer a devida importância ao facto de na cerimónia de batismo do Costa Concordia a garrafa de champanhe não se ter quebrado. Quando assim acontece, diz a crença que o navio não terá grande sorte. Ao mesmo tempo, em Film Socialisme, de Jean-Luc Godard, numa grande parte rodado a bordo do Costa, falava-se metaforicamente do fim do capitalismo e desta Europa política que se afunda agora perante os nossos indefesos olhos. Uma óbvia premonição. O desastre marítimo ao largo do arquipélago Toscano representa assim um golpe duplo nas certezas de quem não acredita em bruxas.
Se existe atitude pela qual tenho um afeto particular, é ela a capacidade de regeneração que certas pessoas conseguem aplicar ao seu aparente destino, assumindo mudanças de atitude, de crença e de sensibilidade que contrariam as imposições do meio, a tradição familiar, os códigos impostos no ambiente de trabalho, o quadro político que um dia adotaram, os padrões que julgaram inquestionáveis. Talvez mesmo o código genético que sentem na boca mas que se esforçam por contrariar. Esta é no entanto uma escolha difícil e geralmente mal entendida, apesar do aforismo segundo o qual «só os burros não mudam». A maioria das pessoas, é esta a verdade, arruma o seu mundo em gavetas e prateleiras, cola etiquetas identificadoras nos outros e em si própria, e reage mal a uma mudança profunda, que vê sempre como gesto de oportunismo, falha de personalidade ou sinal de uma patologia esquiva. Está comprovado que existem traços de sensibilidade e de feitio, princípios de ética, gestos de etiqueta, modalidades de gosto ou de desgosto, que geralmente se conservam inalteráveis, mesmo quando quem os detém muda de cara ou de quadrante. A frase, tantas vezes dita, «isso é mesmo dele», ou «é mesmo teu», traduz esse elo de continuidade que, como a pele e as sobrancelhas, transportamos ao longo da vida. Mas, para além desta permanência, existe sempre um mundo de possibilidades capaz de levar um homem ou uma mulher a mudar o seu destino. ler mais deste artigo
Logo pela manhã, um post da Helena Araújo relembrou-me um pormenor, associado à história dos símbolos, que tem tanto a ver com episódios passados da nossa vida coletiva como com situações agora mesmo diante dos nossos olhos. A imagem ou a silhueta da pomba tem servido em tempos e lugares diversos como sinal da paz, do amor, da maternidade, da gentileza ou da figura do mensageiro. De acordo com a tradição bíblica, após o Dilúvio, teria sido uma pomba enviada em demanda de terra firme que, ao regressar à Arca com um ramo de oliveira no bico, sinalizou a Noé o recuo das águas e a possibilidade de retomar a vida sedentária. Para uma boa parte dos cristãos, é também o sinal visível do Espírito Santo, essa parte imaterial da Santíssima Trindade que se não vê, que não se toca, mas que se sente, anunciando na Sua omnipotência e na Sua bondade, a fundação e a intervenção da Igreja. No século XX, todavia, a dimensão simbólica do pequeno ser alado passou a estar associada mais sistematicamente à ideia de paz ou à defesa militante do pacifismo, sendo recuperada, pelo menos desde a Primeira Guerra Mundial, em publicações, emblemas e estandartes, por numerosas campanhas antiguerra ou de propaganda da não-violência. ler mais deste artigo
Tudo aconteceu no século passado, mas mora ainda na memória de quem viveu para contá-lo. Nós, os maoistas, éramos bem mais do que se diz, embora bem menos do que pensávamos, e tínhamos um programa: libertar o país do fascismo, derrotar o colonialismo, destruir as bases da opressão capitalista, e, no fim, começar a construir uma sociedade mais feliz e igualitária, sem malfeitores ou parasitas. O inimigo principal era pois a burguesia, o colonial-fascismo e a PIDE. A seguir, vinham os reformistas, que identificávamos, algo exageradamente, com uma mescla de social-democratas, republicanos caquéticos, pequeno-burgueses hesitantes e comunistas pró-Moscovo. Na base da escala, e para honrar a origem estalinista que partilhávamos (com o querido camarada Lavrentiy Beria nos corações), estavam os trotskistas. A sua presença era no entanto reduzida a estereótipos sobre os exageros das preocupações teóricas e a mania congénita do fraccionismo, como aquele que dizia que onde existiam dois trotskistas o debate conduzia inevitavelmente ao surgimento de três tendências. Pura ilusão a nossa, que não olhávamos – por motivos de natureza conspirativa, obviamente – para os nossos próprios pés sectários. A um antigo camarada que há dias se referia com admiração ao mapa do maoismo em Portugal que o Miguel Cardina publicou no seu recente livro e o Ípsilon desta semana integra, com pequenos erros, apenas na edição para tablets (ver aqui), só me ocorreu dizer: «É de fazer corar de vergonha qualquer trotskista!»