Islão e direitos humanos

Tariq RamadanNão conheço, a não ser por alusões laterais e três ou quatro leituras-relâmpago, o trabalho de Tariq Ramadan, o cidadão suíço, muçulmano praticante e professor de Estudos Islâmicos Contemporâneos em Oxford, que é também visitante em instituições académicas do Qatar, de Marrocos e do Japão. Por isso, falar aqui sobre o seu trabalho académico parece-me imprudente e de evitar. Sei do lugar importante que desempenha no processo de compreensão de um islamismo ocidental, ou mais especificamente europeu, distinto daquele que, emergindo de forma mais direta da sua matriz histórica, é praticado, sob diferentes rostos, no Médio Oriente e em outras paragens mais a sul e a leste. Foi em parte esta atitude de autonomia cultural, associada à crítica dos regimes islâmicos ditatoriais, que fez com que, até há pouco tempo, fosse considerado heterodoxo e persona non grata em países como a Tunísia, o Egito, a Arábia Saudita, a Líbia e a Síria. Ramadan estará nesta quinta-feira, dia 5, em Lisboa, na Fundação Gulbenkian, onde ao final da tarde proferirá uma conferência pública.

O caráter respeitável do seu trabalho, e a atitude corajosa que lhe está inevitavelmente ligada, não significam porém que a sua obra não esteja isenta de polémica e as suas ideias, principalmente quando enformadas pela intervenção política pública, libertas de toda a mácula, como pode ver-se mesmo recorrendo a uma fonte vulgar. Podemos também deparar com sinais desta dimensão bastante discutível na entrevista que acaba de conceder ao semanário Expresso. O que importa aqui não é contestar o trabalho teórico do entrevistado – o que, pelo que ficou dito, não posso nem sei fazer – mas pôr em causa uma resposta concreta que, a meu ver, faz ecoar uma atitude, efetivamente antidemocrática, de aceitação, em nome da diferença cultural, de propostas que questionam direitos humanos fundamentais e tendencialmente universais. Eis o fragmento que pretendo destacar (embora quase toda a entrevista mereça um olhar crítico):

P: Escreveu que o Conselho Transitório líbio anunciou que estabeleceria a sharia e aceitaria a poligamia para dizer ao país que ficou livre da influência ocidental. Esta é a mensagem mais importante para o povo líbio?
R: Sim, acho que é uma declaração importante. Quando se diz que se estabelece a sharia e se aceita a poligamia diz-se aos muçulmanos que estão livres e diz-se ao Ocidente «não estamos sob o vosso domínio». Esta era a mensagem que o Ocidente queria: primeiro liberta-se o povo do ditador e depois deixa-se o povo decidir. Mas não me admiraria que uma declaração destas não tivesse sido só decidida por Tripoli, mas também combinada entre Washington e Paris.

Defende-se pois, como marca de liberdade, a transformação, em parte influenciada por um certo populismo, da sharia em lei comum de um Estado. Que estaria assim a libertar-se de uma tirania para ser gerido por um código de inspiração profundamente religiosa, com fortes conotações de natureza moral e, como se sabe, uma lógica intensamente punitiva da diferença e da identidade individual. Já a defesa da poligamia – sempre discutível, mas ainda assim aceitável se integrasse a da poliandria – constitui no mundo atual, e em particular entre em sociedades e entre comunidades islâmicas, um processo prático de subalternização e de opressão social, política e económica das mulheres, que configura um modelo social absolutamente contrário àquele pelo qual os setores mais progressivos, emancipatórios e igualitários do nosso tempo hoje em dia se batem. Tratam-se de palavras que devem ser rebatidas sob uma perspetiva democrática. Reforçando a necessidade de alguma vigilância sobre o caráter ambíguo de um certo lado do Islão, formalmente «livre» – sobretudo no contexto da presente vaga de mudança – mas estruturalmente incapaz, no fundo, de cortar com aspetos obsoletos e especialmente opressivos da tradição. Além de que ser-se anti-Washington e anti-Paris não configura necessariamente, como se sabe, um atestado de fiabilidade democrática.

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