Viajo no tempo e tento concentrar-me na época em que deixei a Igreja católica apostólica romana. Até à altura em que as dúvidas apareceram, tinha sido um fiel convicto, praticante, tão seguro da minha crença e dos seus dogmas que cheguei uma vez a zangar-me com os meus pais por estes se afirmarem católicos e não frequentarem a Santa Missa. Aos 14, porém, comecei a sentir-me desconfortável e rapidamente encontrei duas razões para me afastar dos rituais, primeiro, e depois da fé. A primeira razão teve a ver com a recusa de uma retórica oca, repetitiva e indecifrável que nada me segredava: as prédicas aborrecidas que se limitavam a frase feitas sobre «o fim dos tempos» que eu não conseguia vislumbrar que coisa fossem, sobre uma «Salvação» que não percebia do que me iria afinal salvar e sobre o Espírito Santo, chamado de «Paráclito» sem que ninguém me explicasse que esta era a palavra grega para «consolador», enchiam-me de tédio. E, pior, nada tinham a ver com as letras das canções dos Rolling Stones, que acima de tudo adorava. ler mais deste artigo
O Nobel, a árvore e a floresta
Na Carta a um amigo alemão, de 1944, Albert Camus falava da Europa na qual acreditava e pela qual se batia, contra aquela que a guerra se preparava então para aniquilar: «A vossa Europa está enferma. Ela nada tem para agregar ou exaltar. A nossa é uma aventura comum que prosseguiremos, apesar de vocês.» Escritas há 68 anos num momento dramático, estas palavras não perderam a validade, uma vez que a ideia de uma Europa unida, fraterna, democrática e progressiva – não tenhamos medo dos conceitos velhos mas imortais – continua a existir como utopia e, contra todos os obstáculos e cavalos de Troia, continua também a permanecer como projeto. As circunstâncias atuais correspondem, sem dúvida, a um momento de brutal retrocesso nesse caminho, e esta Europa pouco tem de são ou até de sustentável. Mas a casa permanece de pé e não é previsível nem desejável um regresso ao tempo ventoso e inseguro em que cada um geria por sua conta e risco o velho e desconjuntado castelo do seu Estado-nação. ler mais deste artigo
Quando a China mandar
Estou a ler um livro assustador, Quando a China mandar no Mundo, do jornalista e ensaísta britânico Martin Jacques, recém-editado entre nós pela Temas & Debates – Círculo de Leitores. O argumento principal de Jacques é que o domínio económico e político do planeta por parte da China é uma inevitabilidade. Mas o mais difícil de digerir não é essa ideia, à qual, aliás, muitos analistas desde há sensivelmente uma década nos têm vindo a habituar. É antes a certeza, fundada na sua experiência de reputado sinólogo, na caraterização da China, não como um Estado empenhado numa lógica de desenvolvimento de tipo capitalista, que lá por volta de 2025 terá um regime politicamente mais aberto e uma economia que superará a dos Estados Unidos da América, mas como centro de uma realidade imperial. Realidade profundamente marcada por tradições milenares únicas, de natureza centralista e autoritária, que reconfigurará ou anulará a noção, herdeira da Revolução Francesa, que deste lado do mundo, ainda que com nuances, conservamos de democracia. Num artigo saído hoje no Público, fala-se da China como um país de hoje em dia «comunista sem comunistas», mas se seguirmos a lógica deste livro percebemos que nem mesmo essa ideia um tanto arbitrária poderá explicar o regime que se prepara para dominar o mundo. Aquilo que aí vem é mais antigo, menos compreensível para a nossa lógica de base humanista, sem nada a ver com a teleologia marxista e que será inevitavelmente despótico. Vamos esperar que o autor se engane nas suas certezas, mas não será nada conveniente que esperemos sentados.
Os vulgares, os cromos e os espertos
Uma matéria destacada esta semana pelo Público e pela Visão chamou a atenção para um livrinho com o expressivo título Faz o Curso na Maior. O subtítulo, programático, merece também a atenção: Estuda o Mínimo, Goza ao Máximo: Os Conselhos de um Professor Universitário. Nuno Ferreira, 32, o autor, é-o ou foi-o, ao que declara no Instituto Politécnico de Setúbal, no Instituto Politécnico Autónomo, na Universidade Lusófona e no ISCTE, e pretende, aos olhos do público leitor e potencial comprador da «obra», fazer valer o currículo de sucesso que o levou a ascender da condição de aluno calão à de docente e, hoje, à de «especialista em banca e corporate finance numa das mais importantes consultoras estratégicas do mundo». Nuno foi, como reconhece, o protótipo do aluno preguiçoso e sem vontade de estudar, que no entanto teve a presciência de saber diferenciar muito bem três tipos de estudante, escolhendo de entre eles aquele que lhe convinha personificar: o vulgar, que pouco estuda, nunca terá grandes notas e jamais irá longe; o «cromo», o «pobre marrão», que segundo ele apenas vive para o estudo; e o esperto, aquele que, tal como ele, passou os anos do curso a faltar às aulas, a passar manhãs na cama, a ficar no bar da faculdade a jogar às cartas, a beber imperiais numa cervejaria e a ir a festas atrás de festas, organizando até algumas e ainda com tempo para praticar desporto com regularidade.
Era uma vez (na caserna)
Quando cumpri os três meses de recruta do serviço militar, apesar de o fazer contrariado habituei-me rapidamente a quase tudo o que tinha a ver com a disciplina e o esforço físico. No entanto, sofria bastante com as noites de caserna. Posso descrever o cenário do horror: 200 mancebos numa espécie de hangar povoado de beliches em ferro e que produzia um eco danado, 50% a ressonar, 20% a escrever cartas às namoradas e 30% a jogar ruidosamente infinitas partidas de king ou de sueca. À luz de velas, obrigatoriamente, já que depois das 22 horas a iluminação era limitada às lâmpadas de presença. Quem, como eu, não tinha sono, não tinha luz para matar o vício da leitura e era hipersensível ao cheiro a estearina queimada, passava horas seguidas de inferno na Terra. ler mais deste artigo
Solidários mas felizes

Sendo um francoatirador de esquerda, nunca deixei de me preocupar com os destinos do mundo e o combate constante e solidário por uma justiça que evito adjetivar. Foi uma vocação precoce que espero manter enquanto souber fazê-lo. Por isso sempre procurei combinar o interesse pelas coisas belas e reconfortantes do mundo – uma música exaltante, um livro que nos desafia, um poema que canta, uma mulher bonita, um rio selvagem, uma nuvem carregada que anuncia o outono – com uma noção de compromisso que, com Camus, associo sempre às escolhas que todos os dias nos vemos condenados a fazer. Nesta medida, sempre afastei, por vezes até com alguma repulsa, a proximidade dos que apenas olham uma flor, ou só se vêm ao espelho, enquanto desviam o olhar e o corpo do sofrimento dos outros, do ódio e da opressão que fazem parte da vida, tentando simular que eles não existem. Aborrece-me muito, por vezes de morte, quem fala apenas de política, mas incomoda-me quem se recusa a olhá-la. Uma e outra posição marcadas, no fundo, por uma falta de humanidade que elide a complexidade das coisas e das pessoas, reduzindo-a, obsessivamente, apenas a um dos seus lados. ler mais deste artigo
Os imigrantes
Nestes dias de trevas que atravessamos a custo, o instinto de defesa reduz inevitavelmente a nossa humanidade. Primo Levi descreveu o modo como, ao terceiro dia de presença em Auschwitz, a generalidade dos prisioneiros esquecera já a dignidade pessoal, o orgulho, os hábitos de higiene e os deveres mais elementares de solidariedade para com os semelhantes, concentrando-se apenas na brutalidade permanente da luta pela sobrevivência. Sem vivermos nesse estádio-limite, o recuo dos mecanismos de assistência pública e a instalação de um ambiente de feroz competição por um pequeno mas raro lugar ao sol, têm-nos aproximado perigosamente desse caminho. Ele é, aliás, visível até por um efeito de omissão: por estes dias, a luta pelo trabalho, a resistência à perda de direitos, a procura de vias de escape por parte da maioria da população, têm transformado centenas de milhar de imigrantes em seres invisíveis e mudos. E no entanto, ainda que mais desprotegidos, ainda que com menos vias de escape, esquecidos por quase todos, eles continuam entre nós, fazendo os trabalhos mais penosos, sendo explorados, humilhados e ofendidos como ninguém mais o é. Mas sem partidos, sindicatos, ativistas, manifestações, jornais ou televisões que lhes valham. Vivendo na sombra, em bairros periféricos, tantas vezes em casebres ou desvãos, no limite extremo do abandono e do medo.
O Congresso e o pesadelo
Dos trabalhos do Congresso Democrático das Alternativas e dos termos da declaração nele aprovada (a divulgar em breve) não resultou a proposta de uma nova plataforma partidária e muito menos a apresentação de um programa de governo. O equívoco dos seus detratores no campo da esquerda – invariavelmente associados aos tempos e aos modos de sectarismo político que ele procurou contrariar – está em olharem os resultados do Congresso nessa perspetiva. Pelo contrário, estes devem ser vistos principalmente como fatores de abertura e elementos de debate para a edificação urgente mas gradual de um novo cenário democrático. Este cenário envolverá a afirmação pública de três princípios fundamentais: em primeiro lugar, aquele que define a inadiável necessidade de se produzir uma alternativa à política austeritária, antissocial e antipatriótica que governa Portugal; em segundo, aquele que considera dever esta alternativa passar pela construção de um governo de unidade à esquerda, assente em princípios que possam ser partilhados pela maioria dos cidadãos; e em terceiro lugar, aquele que aponta para tal solução resultar, de um modo plural, da conjugação de esforços dos partidos, dos movimentos mais ou menos informais e de cidadãos empenhados mas sem partido. Ninguém espera que este caminho se mostre claro do dia para a noite e que seja fácil de pisar. Aquilo que não se vislumbra é outra solução realista que não repita velhas receitas. ler mais deste artigo
Das alternativas
É já nesta sexta-feira, 5 de Outubro. E para continuar depois dela. Programa e outras informações aqui.
Pólvora seca
Afinal para que serviu o PCP e o BE combinarem a divulgação simultânea (ressalvando aquele pequeno delay da responsabilidade do fuso açoreano) da apresentação de duas moções de censura ao governo depois de ter corrido, ao som de bandolins, bombos e castanholas tocados por tantas pessoas à procura de uma esperança, um certo júbilo por uma eventual «unidade da esquerda»? E para que serviu acompanhar as mesmas, neste momento, de ataques violentos e cerrados a um PS por tal via supostamente «encostado às cordas»? Neste cenário, a abstenção deste partido, agora proposta pelo seu irresoluto secretário-geral, seria e será inevitável. Mas como poderia deixar de o ser? No entanto, o inevitável não seria evitável com a apresentação de uma moção única que servisse mais para unir a oposição ao governo do que para demarcar fronteiras? E se a sua divulgação pública tivesse avançado num gesto de firmeza e de unidade, mas também de abertura e de humildade democrática? Vivemos um tempo muito mau, muito mau mesmo, para desperdiçar pólvora com tiros nos próprios pés.
Lembrar Eric
O historiador Eric Hobsbawm (1917-2012) hoje no Guardian. Evocado por alguns dos seus pares. E através das próprias palavras. Pelo que me toca, um dos que me ensinou que a história, como conhecimento certo e incerto do passado em cada presente, não é assética, tem bons e maus, está cheia de recantos e jamais fica completa.
A montanha que virá

(1936)
Tal como comentou Mark Twain em 1897 no New York Journal, referindo-se às informações que então circularam sobre a sua própria morte, após ouvirmos as declarações de Jerónimo de Sousa e de Francisco Louçã neste início de tarde percebemos que as notícias desta manhã a propósito do nascimento de uma espécie prematura de coligação PCP-BE foram manifestamente exageradas. Como diria o Dr. Freitas, o meu velho professor de latim, evocando com exagerado ênfase, as mãos erguidas ao céu, a Sátira Décima de Juvenal, «Parturiunt montes, nascetur ridiculus mus». Vocês sabem: aquela frase recorrente sobre a montanha e o rato. Quanto à unidade na ação, ela é uma possibilidade e uma necessidade, sem dúvida, mas num quadro detalhado de objetivos e através de uma bem mais vasta conjugação de vontades à esquerda. Nunca decidida apenas na sombra das sedes. Para lá caminhamos, espera-se, velozmente mas sem saltar etapas. Quanto a entendimentos pontuais mais rápidos, venham eles.
Luta política e teatro da rua
Uma nota sobre a manifestação de ontem, convocada pela CGTP três dias antes do movimento nacional «Que se Lixe a Troika! Queremos as Nossas Vidas de Volta!», de 15 de setembro, e à qual aderiram entretanto outras organizações e movimentos. Não pude de todo estar presente em Lisboa, mas apoiei a convocatória, ajudei a divulgá-la e tive muita pena de não ter podido fazer parte da multidão que encheu o Terreiro do Paço. Ainda assim, segui-a diretamente ou em diferido através das televisões, dos jornais online, dos blogues, do Facebook e do Twitter, tendo depois conversado com pessoas que estiveram presentes. Por isso, a minha leitura não deriva apenas de «ouvir falar». Se bem que, nos tempos que correm, o que se ouve e o que se vê à distância possa ser, muitas vezes, mais completo do que aquilo que podemos observar na escala direta e calorosa da presença física. ler mais deste artigo
As nossas brigadistas
A primeira parte deste Mulheres de Armas foi escrita por Isabel do Carmo, ex-dirigente das Brigadas Revolucionárias, a organização fundada em 1970 por militantes saídos do PCP e outros antifascistas com o objetivo de sabotar o aparelho militar ao serviço da Guerra Colonial e, a partir de 1973 em conjugação com o Partido Revolucionário do Proletariado, de impor pela via das armas uma revolução socialista. A antiga militante revolucionária evoca nestas páginas os momentos fundamentais da história das Brigadas no que respeita à participação ativa de mulheres no seu lançamento e nas ações de combate que a organização protagonizou, como assaltos a bancos para recolha de fundos, sabotagens de instalações militares ou iniciativas de propaganda que incluíram o rebentamento de petardos. Ressalvando pormenores de natureza autobiográfica, alguns deles pitorescos, nesta longa introdução aquilo que sobressai não é a exposição de informação totalmente desconhecida, mas a manifestação do papel destacado de muitas mulheres, único então nas fileiras da Oposição, em iniciativas de primeira linha no campo da ação armada. ler mais deste artigo
Alemães, cigarros e estereótipos
Do conto «Só para fumadores», retirado da coletânea A Palavra do Mudo, publicada em 1965 pelo peruano Julio Ramón Ribeyro (Ed. Ahab), eis três parágrafos por onde perpassa um certo preconceito e um velho estereótipo, construídos a propósito da Alemanha e dos alemães, que as presentes circunstâncias partilhadas pelos europeus têm ajudado a recuperar.
Os vaivéns da vida continuaram a levar-me de país em país, mas sobretudo de marca de cigarro em marca de cigarro. Amesterdão e os Muratti com uma fina boquilha dourada; Antuérpia e os Belga de maço vermelho com um círculo amarelo; Londres, onde tentei fumar cachimbo mas depois desisti porque me pareceu demasiado complicado e porque me dei conta de que não era nem o Sherlock Holmes, nem um marinheiro, nem inglês… Finalmente Munique, onde, apesar de não ter concluído o meu doutoramento em Filologia Românica, me especializei como perito em cigarros teutónicos que, dizendo-o cruamente, me pareceram medíocres e sem estilo. Mas se menciono Munique não é pela qualidade do seu tabaco, e sim porque cometi um erro de julgamento que me deixou numa situação de carência desesperada, comparável aos piores momentos do meu ciclo parisiense. ler mais deste artigo
Hoje, 29 de Setembro
É preciso pôr de lado a indiferença. E é muito importante que a manifestação seja unitária, grande, poderosa. Mas que nela os cartazes monotonamente estandardizados e as palavras de ordem pré-estabelecidas e previsíveis não perturbem a espontaneidade e a diversidade do protesto. Foi esse o factor central, decisivo, para o êxito do inesquecível 15 de Setembro.
O fim da ilusão europeia
Enquanto lemos o ensaio Uma Grande Ilusão?, publicado pela primeira vez em 1996, baseado em palestras proferidas no Johns Hopkins Center de Bolonha e traduzido agora em Portugal, poderá surpreender-nos a capacidade de Tony Judt (1948-2010) para chegar, com vários anos de avanço, a conclusões hoje praticamente do domínio do senso comum. Naquela altura, o euroceticismo era dominado pela direita e o ideal de uma Europa política e economicamente unida ainda parecia constituir, pelo menos para a generalidade dos socialistas e dos social-democratas de esquerda, o fundamento de um futuro de prosperidade e de bem-estar social para a grande maioria dos cidadãos. Em Portugal, a proposta de uma «Europa connosco», utilizada pelo PS em 1975 para vencer as eleições para a Assembleia Constituinte, dera o mote para a projeção intramuros, por mais de vinte anos, dessa quimera de um continente unido, próspero e pacífico, no qual cada Estado deveria funcionar como peça perfeita de uma experiência eterna e de um todo harmonioso. No entanto, quando escreveu este texto, o historiador britânico desconfiava já da viabilidade desse projeto e, em consequência, do seu futuro. ler mais deste artigo
O verão invencível
«Au milieu de l’hiver, j’ai découvert en moi un invincible été.» «Em pleno inverno, descobri em mim um verão invencível.» Uma das frases sublinhadas de Albert Camus – retirada do ensaio Retour à Tipasa, composto em 1952 – que transporto sempre comigo num recanto seguro. Regresso a ela, como a um tónico, de cada vez que me vejo à beira da rendição. E tudo readquire um sentido pleno, luminoso, combatente.