Fui maoista e não me arrependo

Esta noite sonhei que voltara ao passado. Ainda melhor: sonhei que fora ao passado roubar, para poder usar nestes dias sem luz, aquilo que ele tinha de melhor. Não a juventude por alguns revista como insana, a energia sem medida, cuja evocação nunca me encheu de nostalgia porque as troquei por outras coisas e porque sei que a memória mais bela e perfeita tem sempre a forma de fábula. Pensando bem, afinal nesse passado fui tão feliz e tão infeliz quanto o sou hoje, ainda que por motivos diferentes. Fui antes buscar outra coisa, que ao contrário das fases e das dinâmicas da vida, permanece imortal porque transcende o tempo curto que nos cabe. Falo da esperança e da vontade indómita de mudar as coisas do mundo, sabendo sempre que nelas se misturam, em partes iguais, a imaginação do que há-de vir e o banho de realidade que sempre defronta o futuro.

Em La Chinoise, o filme que Godard rodou em 1967, numa parede do pequeno e bem burguês apartamento de Paris que serve de quartel-general ao bando de jovens irredutíveis, aprendizes de alquimista da Revolução que há-de vir, que protagonizam o filme, encontra-se escrito, com letras delicadamente decalcadas, «é preciso confrontar as ideias vagas com as imagens claras». Uma frase, se a memória desgastada não me engana, justamente da autoria de Mao Tsé-tung. Nela se resume o princípio que no meu sonho procurei trazer de volta para este lado do tempo. O de que não há intervenção política capaz sem que a precedam o esboço de impossíveis quimeras. Porque o excesso de realismo e a ditadura da «política do possível», imune à ideia de salto, de viragem, deu no que deu. Como o comprovam os noticiários assustadores, soturnos, deprimentes, que ainda somos capazes de ouvir.

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    A piedade dos outros

    Fotograma de ‘Alceste à bicyclette’.
    Filme de Philippe Le Guay (2012)

    «Há um cego que prefere sair à noite, entre a uma e as quatro da madrugada, com um amigo também cego. Porque está seguro de não encontrar ninguém nas ruas. Se vão de encontro a um candeeiro da iluminação pública podem rir-se à vontade. E riem. Durante o dia há a piedade dos outros que os impede de rir.» (Albert Camus, Carnets I, ed. 1962)

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      Falar com os becos

      Paul Celan com Nani e Claus Demus
      Londres,1955

      Falar com os becos sem saída
      ali defronte,
      da sua
      expatriada
      significação –:

      mastigar
      este pão, com
      dentes de escrita.

      Paul Celan – de A parte da neve
      (Trad. de João Barrento e Y. K. Centeno)

        Apontamentos, Poesia

        Deus lhe perdoe

        Viajo no tempo e tento concentrar-me na época em que deixei a Igreja católica apostólica romana. Até à altura em que as dúvidas apareceram, tinha sido um fiel convicto, praticante, tão seguro da minha crença e dos seus dogmas que cheguei uma vez a zangar-me com os meus pais por estes se afirmarem católicos e não frequentarem a Santa Missa. Aos 14, porém, comecei a sentir-me desconfortável e rapidamente encontrei duas razões para me afastar dos rituais, primeiro, e depois da fé. A primeira razão teve a ver com a recusa de uma retórica oca, repetitiva e indecifrável que nada me segredava: as prédicas aborrecidas que se limitavam a frase feitas sobre «o fim dos tempos» que eu não conseguia vislumbrar que coisa fossem, sobre uma «Salvação» que não percebia do que me iria afinal salvar e sobre o Espírito Santo, chamado de «Paráclito» sem que ninguém me explicasse que esta era a palavra grega para «consolador», enchiam-me de tédio. E, pior, nada tinham a ver com as letras das canções dos Rolling Stones, que acima de tudo adorava. ler mais deste artigo

          Apontamentos, Atualidade, Memória, Opinião

          O Nobel, a árvore e a floresta

          Na Carta a um amigo alemão, de 1944, Albert Camus falava da Europa na qual acreditava e pela qual se batia, contra aquela que a guerra se preparava então para aniquilar: «A vossa Europa está enferma. Ela nada tem para agregar ou exaltar. A nossa é uma aventura comum que prosseguiremos, apesar de vocês.» Escritas há 68 anos num momento dramático, estas palavras não perderam a validade, uma vez que a ideia de uma Europa unida, fraterna, democrática e progressiva – não tenhamos medo dos conceitos velhos mas imortais – continua a existir como utopia e, contra todos os obstáculos e cavalos de Troia, continua também a permanecer como projeto. As circunstâncias atuais correspondem, sem dúvida, a um momento de brutal retrocesso nesse caminho, e esta Europa pouco tem de são ou até de sustentável. Mas a casa permanece de pé e não é previsível nem desejável um regresso ao tempo ventoso e inseguro em que cada um geria por sua conta e risco o velho e desconjuntado castelo do seu Estado-nação. ler mais deste artigo

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            Quando a China mandar

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            Estou a ler um livro assustador, Quando a China mandar no Mundo, do jornalista e ensaísta britânico Martin Jacques, recém-editado entre nós pela Temas & Debates – Círculo de Leitores. O argumento principal de Jacques é que o domínio económico e político do planeta por parte da China é uma inevitabilidade. Mas o mais difícil de digerir não é essa ideia, à qual, aliás, muitos analistas desde há sensivelmente uma década nos têm vindo a habituar. É antes a certeza, fundada na sua experiência de reputado sinólogo, na caraterização da China, não como um Estado empenhado numa lógica de desenvolvimento de tipo capitalista, que lá por volta de 2025 terá um regime politicamente mais aberto e uma economia que superará a dos Estados Unidos da América, mas como centro de uma realidade imperial. Realidade profundamente marcada por tradições milenares únicas, de natureza centralista e autoritária, que reconfigurará ou anulará a noção, herdeira da Revolução Francesa, que deste lado do mundo, ainda que com nuances, conservamos de democracia. Num artigo saído hoje no Público, fala-se da China como um país de hoje em dia «comunista sem comunistas», mas se seguirmos a lógica deste livro percebemos que nem mesmo essa ideia um tanto arbitrária poderá explicar o regime que se prepara para dominar o mundo. Aquilo que aí vem é mais antigo, menos compreensível para a nossa lógica de base humanista, sem nada a ver com a teleologia marxista e que será inevitavelmente despótico. Vamos esperar que o autor se engane nas suas certezas, mas não será nada conveniente que esperemos sentados.

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              Os vulgares, os cromos e os espertos

              Uma matéria destacada esta semana pelo Público e pela Visão chamou a atenção para um livrinho com o expressivo título Faz o Curso na Maior. O subtítulo, programático, merece também a atenção: Estuda o Mínimo, Goza ao Máximo: Os Conselhos de um Professor Universitário. Nuno Ferreira, 32, o autor, é-o ou foi-o, ao que declara no Instituto Politécnico de Setúbal, no Instituto Politécnico Autónomo, na Universidade Lusófona e no ISCTE, e pretende, aos olhos do público leitor e potencial comprador da «obra», fazer valer o currículo de sucesso que o levou a ascender da condição de aluno calão à de docente e, hoje, à de «especialista em banca e corporate finance numa das mais importantes consultoras estratégicas do mundo». Nuno foi, como reconhece, o protótipo do aluno preguiçoso e sem vontade de estudar, que no entanto teve a presciência de saber diferenciar muito bem três tipos de estudante, escolhendo de entre eles aquele que lhe convinha personificar: o vulgar, que pouco estuda, nunca terá grandes notas e jamais irá longe; o «cromo», o «pobre marrão», que segundo ele apenas vive para o estudo; e o esperto, aquele que, tal como ele, passou os anos do curso a faltar às aulas, a passar manhãs na cama, a ficar no bar da faculdade a jogar às cartas, a beber imperiais numa cervejaria e a ir a festas atrás de festas, organizando até algumas e ainda com tempo para praticar desporto com regularidade.

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                Ensino, Olhares

                Era uma vez (na caserna)

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                Quando cumpri os três meses de recruta do serviço militar, apesar de o fazer contrariado habituei-me rapidamente a quase tudo o que tinha a ver com a disciplina e o esforço físico. No entanto, sofria bastante com as noites de caserna. Posso descrever o cenário do horror: 200 mancebos numa espécie de hangar povoado de beliches em ferro e que produzia um eco danado, 50% a ressonar, 20% a escrever cartas às namoradas e 30% a jogar ruidosamente infinitas partidas de king ou de sueca. À luz de velas, obrigatoriamente, já que depois das 22 horas a iluminação era limitada às lâmpadas de presença. Quem, como eu, não tinha sono, não tinha luz para matar o vício da leitura e era hipersensível ao cheiro a estearina queimada, passava horas seguidas de inferno na Terra. ler mais deste artigo

                  Apontamentos, Memória, Olhares

                  Solidários mas felizes

                  Fotografia de Fiona

                  Sendo um francoatirador de esquerda, nunca deixei de me preocupar com os destinos do mundo e o combate constante e solidário por uma justiça que evito adjetivar. Foi uma vocação precoce que espero manter enquanto souber fazê-lo. Por isso sempre procurei combinar o interesse pelas coisas belas e reconfortantes do mundo – uma música exaltante, um livro que nos desafia, um poema que canta, uma mulher bonita, um rio selvagem, uma nuvem carregada que anuncia o outono – com uma noção de compromisso que, com Camus, associo sempre às escolhas que todos os dias nos vemos condenados a fazer. Nesta medida, sempre afastei, por vezes até com alguma repulsa, a proximidade dos que apenas olham uma flor, ou só se vêm ao espelho, enquanto desviam o olhar e o corpo do sofrimento dos outros, do ódio e da opressão que fazem parte da vida, tentando simular que eles não existem. Aborrece-me muito, por vezes de morte, quem fala apenas de política, mas incomoda-me quem se recusa a olhá-la. Uma e outra posição marcadas, no fundo, por uma falta de humanidade que elide a complexidade das coisas e das pessoas, reduzindo-a, obsessivamente, apenas a um dos seus lados. ler mais deste artigo

                    Atualidade, Democracia, Olhares, Opinião

                    Os imigrantes

                    Nestes dias de trevas que atravessamos a custo, o instinto de defesa reduz inevitavelmente a nossa humanidade. Primo Levi descreveu o modo como, ao terceiro dia de presença em Auschwitz, a generalidade dos prisioneiros esquecera já a dignidade pessoal, o orgulho, os hábitos de higiene e os deveres mais elementares de solidariedade para com os semelhantes, concentrando-se apenas na brutalidade permanente da luta pela sobrevivência. Sem vivermos nesse estádio-limite, o recuo dos mecanismos de assistência pública e a instalação de um ambiente de feroz competição por um pequeno mas raro lugar ao sol, têm-nos aproximado perigosamente desse caminho. Ele é, aliás, visível até por um efeito de omissão: por estes dias, a luta pelo trabalho, a resistência à perda de direitos, a procura de vias de escape por parte da maioria da população, têm transformado centenas de milhar de imigrantes em seres invisíveis e mudos. E no entanto, ainda que mais desprotegidos, ainda que com menos vias de escape, esquecidos por quase todos, eles continuam entre nós, fazendo os trabalhos mais penosos, sendo explorados, humilhados e ofendidos como ninguém mais o é. Mas sem partidos, sindicatos, ativistas, manifestações, jornais ou televisões que lhes valham. Vivendo na sombra, em bairros periféricos, tantas vezes em casebres ou desvãos, no limite extremo do abandono e do medo.

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                      O Congresso e o pesadelo

                      Dos trabalhos do Congresso Democrático das Alternativas e dos termos da declaração nele aprovada (a divulgar em breve) não resultou a proposta de uma nova plataforma partidária e muito menos a apresentação de um programa de governo. O equívoco dos seus detratores no campo da esquerda – invariavelmente associados aos tempos e aos modos de sectarismo político que ele procurou contrariar – está em olharem os resultados do Congresso nessa perspetiva. Pelo contrário, estes devem ser vistos principalmente como fatores de abertura e elementos de debate para a edificação urgente mas gradual de um novo cenário democrático. Este cenário envolverá a afirmação pública de três princípios fundamentais: em primeiro lugar, aquele que define a inadiável necessidade de se produzir uma alternativa à política austeritária, antissocial e antipatriótica que governa Portugal; em segundo, aquele que considera dever esta alternativa passar pela construção de um governo de unidade à esquerda, assente em princípios que possam ser partilhados pela maioria dos cidadãos; e em terceiro lugar, aquele que aponta para tal solução resultar, de um modo plural, da conjugação de esforços dos partidos, dos movimentos mais ou menos informais e de cidadãos empenhados mas sem partido. Ninguém espera que este caminho se mostre claro do dia para a noite e que seja fácil de pisar. Aquilo que não se vislumbra é outra solução realista que não repita velhas receitas. ler mais deste artigo

                        Atualidade, Opinião

                        Pólvora seca

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                        Afinal para que serviu o PCP e o BE combinarem a divulgação simultânea (ressalvando aquele pequeno delay da responsabilidade do fuso açoreano) da apresentação de duas moções de censura ao governo depois de ter corrido, ao som de bandolins, bombos e castanholas tocados por tantas pessoas à procura de uma esperança, um certo júbilo por uma eventual «unidade da esquerda»? E para que serviu acompanhar as mesmas, neste momento, de ataques violentos e cerrados a um PS por tal via supostamente «encostado às cordas»? Neste cenário, a abstenção deste partido, agora proposta pelo seu irresoluto secretário-geral, seria e será inevitável. Mas como poderia deixar de o ser? No entanto, o inevitável não seria evitável com a apresentação de uma moção única que servisse mais para unir a oposição ao governo do que para demarcar fronteiras? E se a sua divulgação pública tivesse avançado num gesto de firmeza e de unidade, mas também de abertura e de humildade democrática? Vivemos um tempo muito mau, muito mau mesmo, para desperdiçar pólvora com tiros nos próprios pés.

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                          A montanha que virá

                          Vitória da Frente Popular em França
                          (1936)

                          Tal como comentou Mark Twain em 1897 no New York Journal, referindo-se às informações que então circularam sobre a sua própria morte, após ouvirmos as declarações de Jerónimo de Sousa e de Francisco Louçã neste início de tarde percebemos que as notícias desta manhã a propósito do nascimento de uma espécie prematura de coligação PCP-BE foram manifestamente exageradas. Como diria o Dr. Freitas, o meu velho professor de latim, evocando com exagerado ênfase, as mãos erguidas ao céu, a Sátira Décima de Juvenal, «Parturiunt montes, nascetur ridiculus mus». Vocês sabem: aquela frase recorrente sobre a montanha e o rato. Quanto à unidade na ação, ela é uma possibilidade e uma necessidade, sem dúvida, mas num quadro detalhado de objetivos e através de uma bem mais vasta conjugação de vontades à esquerda. Nunca decidida apenas na sombra das sedes. Para lá caminhamos, espera-se, velozmente mas sem saltar etapas. Quanto a entendimentos pontuais mais rápidos, venham eles.

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                            Luta política e teatro da rua

                            Uma nota sobre a manifestação de ontem, convocada pela CGTP três dias antes do movimento nacional «Que se Lixe a Troika! Queremos as Nossas Vidas de Volta!», de 15 de setembro, e à qual aderiram entretanto outras organizações e movimentos. Não pude de todo estar presente em Lisboa, mas apoiei a convocatória, ajudei a divulgá-la e tive muita pena de não ter podido fazer parte da multidão que encheu o Terreiro do Paço. Ainda assim, segui-a diretamente ou em diferido através das televisões, dos jornais online, dos blogues, do Facebook e do Twitter, tendo depois conversado com pessoas que estiveram presentes. Por isso, a minha leitura não deriva apenas de «ouvir falar». Se bem que, nos tempos que correm, o que se ouve e o que se à distância possa ser, muitas vezes, mais completo do que aquilo que podemos observar na escala direta e calorosa da presença física. ler mais deste artigo

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                              As nossas brigadistas

                              A primeira parte deste Mulheres de Armas foi escrita por Isabel do Carmo, ex-dirigente das Brigadas Revolucionárias, a organização fundada em 1970 por militantes saídos do PCP e outros antifascistas com o objetivo de sabotar o aparelho militar ao serviço da Guerra Colonial e, a partir de 1973 em conjugação com o Partido Revolucionário do Proletariado, de impor pela via das armas uma revolução socialista. A antiga militante revolucionária evoca nestas páginas os momentos fundamentais da história das Brigadas no que respeita à participação ativa de mulheres no seu lançamento e nas ações de combate que a organização protagonizou, como assaltos a bancos para recolha de fundos, sabotagens de instalações militares ou iniciativas de propaganda que incluíram o rebentamento de petardos. Ressalvando pormenores de natureza autobiográfica, alguns deles pitorescos, nesta longa introdução aquilo que sobressai não é a exposição de informação totalmente desconhecida, mas a manifestação do papel destacado de muitas mulheres, único então nas fileiras da Oposição, em iniciativas de primeira linha no campo da ação armada. ler mais deste artigo

                                História, Memória