O pecado de Jonet

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A polémica em redor das lamentáveis declarações de Isabel Jonet sobre a naturalidade da fome e da pobreza está a ir pelo lado errado. Não me parece que a pessoa em causa seja a pura incarnação da maldade e do filisteísmo, como alguns sugerem, ou que a dádiva pela dádiva seja um mal em si, pois sou dos que entendem, creio que avisadamente, que mais vale comer um pão oferecido do que morrer à fome. O que julgo dever ser criticado foi a defesa política que fez, na linha de um certo catolicismo conservador e de direita, de um regresso à condição de pobreza. Como se esta fosse uma inevitabilidade sem outra causa que não a ordem natural das coisas. Nesta leitura, sim, revi com um calafrio as «senhoras» da minha infância, que nas iniciativas das Conferências de São Vicente de Paulo pregavam a tal caridadezinha sem beliscarem a ordem social injusta que determinava a sua necessidade. O pecado de Isabel Jonet foi sair do seu trabalho – e até sou dos que costumam ajudar o Banco Alimentar Contra a Fome, a que preside – e pôr-se a pregar em defesa de uma certa ideia de sociedade. Está no direito de o fazer, mas deve arcar com as consequências da sua escolha. Arrastando consigo o infelizmente necessário BACF.

    Apontamentos, Atualidade, Democracia, Opinião

    A noite berlinense

    Sob a pressão dos muitos milhares de manifestantes da antiga RDA que exigiam nas ruas e praças do país democracia, liberdade e pares de jeans, o Muro de Berlim caiu na noite de 9 de novembro de 1989. O episódio representa, a par das passadas de Neil Armstrong na Lua e do derrube das Torres Gémeas, um dos três acontecimentos a que assisti e de que tenho memória nos quais tive a imediata perceção de viver em direto um «momento histórico». A Queda do Muro teve aliás um impacto brutal em quem, por essa época, tinha passado alguns anos no clima pantanoso e sombrio da Guerra Fria. No que me diz respeito, a intervenção da propaganda – associada a um visionamento talvez demasiado precoce de Cortina Rasgada, de Alfred Hitchcok – levara-me em criança a imaginar que a Cortina de Ferro era mesmo uma pesada rede metálica, eletrificada, impenetrável e letal, separando para sempre o Bem do Mal em dois mundos antagónicos. E ainda em 1975, no contacto breve mantido por motivos fortuitos com dois cidadãos soviéticos, tive a estranha sensação de lidar na Quinta Dimensão com uma parelha de perigosos alienígenas. Mais do que uma alteração do equilíbrio do mundo, da qual continuamos a sofrer as fortes e imprevisíveis ondas de choque, foi pois uma mudança radical na perceção que então era possível ter desse mundo que a Queda do Muro começou por impor. E é principalmente a memória desse espanto de ver a vida toda a mudar em poucas horas que permanece em quem passou, incrédulo e sem conseguir dormir, essa intensa noite berlinense pregado ao televisor. Foi há 23 anos.

      Acontecimentos, Democracia, História, Memória

      O regresso da caridade

      A caridade é, para os católicos, uma das sete «virtudes teologais», estando associada ao amor pelo próximo e sendo encarada como marca da presença e da intervenção do Espírito Santo. Outras leituras dos Evangelhos dão-lhe um sentido um pouco diferente, relacionado uma vez mais com uma determinação divina condicionada pela fé, mas cujo cumprimento confere a quem a pratica uma espécie de segurança e de salvaguarda para a obtenção de um lugar eterno no definitivo «reino dos justos». Durante muito tempo, a sua prática foi, em sociedades fundadas na desigualdade dos direitos e em hierarquias bastante rígidas, transformada numa forma de pacificação social, dando a alguns dos mais pobres a possibilidade de obterem temporariamente o pão e o teto que lhes permitisse sobreviverem, e aos mais ricos a certeza de que, por essa forma, permaneceria contida a vontade deles se insurgirem contra a ordem que determinava a sua condição. No século XVII, Descartes viu-o bem quando declarou que essa suposta virtude «cobre com um véu os defeitos dos homens», e menos de cem anos depois Marivaux reforçou a ideia, sublinhando que ela «não tem pudor face a um miserável», uma vez que, «antes de o ajudar, começa por lhe espezinhar o amor-próprio» ao reconhecer como natural, como inevitável, a sua miséria. ler mais deste artigo

        Atualidade, Olhares, Opinião

        Contra a indiferença

        Uma razoavelmente conhecida mas sempre jovem e presente frase de Antonio Gramsci, deixada num artigo redigido em Fevereiro de 1917 e publicada na compilação La nostra città futura. Scritti torinesi: «Odio gli indifferenti. Credo che vivere voglia dire essere partigiani. Chi vive veramente non può non essere cittadino e partigiano. L’indifferenza è abulia, è parassitismo, è vigliaccheria, non è vita. Perciò odio gli indifferenti.» A tradução do italiano é fácil; bem mais custosa será a apreensão da ideia por parte de quem veja o tempo passar apenas na escala do interesse privado, da vida enclausurada no fundo mais fundo do seu pequeno mundo.

          Democracia, Opinião

          EUA: o que está em jogo

          American Dream. Imagem de MJ Magic

          É verdade que pouco ou nada podemos fazer, uma vez que não votamos nas presidenciais norte-americanas nem temos a possibilidade de influenciar os eleitores. Mas se nos deixarmos submergir nos nossos graves e constantes problemas, tornando-nos indiferentes às eleições que terão lugar neste 6 de Novembro, ou, pior, aceitando a ideia absurda e insana segundo a qual democratas e republicanos, Obama e Romney, são dois lados idênticos de uma mesma moeda, ficaremos incapacitados para compreender aquilo que aí pode vir. Para quem ainda tenha dúvidas, transcrevo um passo de uma crónica de Miguel Sousa Tavares publicada no Expresso de 8 de Setembro passado. ler mais deste artigo

            Democracia, Olhares, Opinião, Recortes

            Gae, Gae Aulenti

            Se eu disser Gae Aulenti, provavelmente o nome não dirá muito a um grande número de pessoas. Mas se recordar que ela foi a arquiteta italiana capaz de transformar uma velha e sombria gare parisiense de comboios no luminoso Museu d’Orsay, já será identificada sem mais delongas. Gae, nascida em Palazzolo dello Stella, Udine, trabalhou ainda na reconstrução ou em realizações de outros importantes museus, bem como em cenários para teatro e em áreas como o design de objetos, de mobiliário e de interiores. Morreu na passada quarta-feira aos 84.

              Artes, Olhares

              A lei seca da bolacha Maria

              De acordo com um artigo saído hoje no Público, a Direção-Geral de Saúde vai recomendar às escolas que os alunos deixem de ter à vista gulodices imundas como pastéis de nata, queques, bolos de arroz, croissants ou bolachas Maria. Apesar de não saírem dos bares, elas saem dos expositores, que ficam então reservados para os alimentos ditos «mais saudáveis», como sandes com verdura, leite branco, iogurtes sem edulcorantes, água ou fruta. Segundo a mesma peça, há também alguma comida fora da categoria dos doces que passará à condição de pecaminosa, como os malvados croquetes, os perigosos pastéis de bacalhau e as peçonhentas sandes de chouriço ou mortadela. O estranho, porém, é que os alunos-junkies poderão continuar a comê-las desde que as peçam, mais ou menos à socapa, ao dealer de serviço ao bar. Ninguém informado e no seu perfeito juízo nega que existam produtos alimentares que não devam ser oferecidos em doses exageradas a crianças e jovens sem discernimento suficiente para saberem o que é bom ou mau para a sua saúde, mas também é verdade que grande parte desses hábitos é adquirida em casa e que existe um limite razoável para separar o veneno daquilo que não passa de um pequeno pecado. Tenho grandes recordações de infância que incluíam orgias de portuguesíssima bolacha Maria (com muita manteiga ou tiras de marmelada) e os fantásticos pastéis de bacalhau feitos pela minha mãe. Custa-me imaginar gerações futuras que do seu tempo de escola lembrem sobretudo bebedeiras de leite branco e bacanais de pão integral com alface.

                Apontamentos, Etc., Olhares

                Dar a cara

                Não gosto de esconder a cara ou de trocar de nome para não ser reconhecido. Quando esta atitude se torna um hábito, associo-a sempre ao medo, ou então à perfídia, a formas ínvias de pensar ou de falar sem assumir a responsabilidade do que se pensa ou se diz. Já usei um nom de guerre, conspirativo, e com ele procurava camuflar a minha identidade. Aconteceu antes da democracia, quando fiz parte de uma organização política clandestina que combatia o fascismo e o colonialismo. Servi-me depois, episodicamente, de um pseudónimo literário, com o qual publiquei alguma poesia e dois ou três contos. Fiz ainda pequenas investidas em blogues, servindo-me ali de nomes inventados, mas mais como ensaios de heteronímia que como processos para dizer escondido o que supostamente, seria incapaz de pronunciar às claras. E usei ainda um ou outro nickname na Internet, sempre associado nos registos ao apelido e ao sobrenome inscritos no Cartão de Cidadão. Repugna-me o anonimato sem um motivo sólido que o justifique, as máscaras ou os óculos que escondem a expressão, as vozes que se alteram para camuflar o seu proprietário, os anoraques que tapam o rosto, o cabelo e os olhos, dando a quem deles se serve uma sensação de impunidade. A coragem é ainda uma atitude socialmente apreciada, e isso deveriam saber os adeptos ou companheiros de viagem dos grupos que, sob um regime injusto, mas que não segue os métodos das ditaduras, apenas se manifestam na sombra, ou escrevem sem dar o nome, sem assumir as razões e as consequências das suas escolhas. Ao dar o nome e a cara, darão um rosto mais humano e um sentido ético mais acentuado à sua luta, às suas razões, e ficarão mais próximos daqueles em cujo nome tomam a palavra. Elevando a sua causa perante o cidadão comum e elevando-se a si próprios também.

                  Apontamentos, Democracia, Olhares

                  Alemanha’45. Coreografia da queda

                  O trabalho do britânico Ian Kershaw tem sido ocupado principalmente com a história alemã do Terceiro Reich e o trajeto pessoal e político de Adolf Hitler. Em Até ao Fim aborda os últimos dez meses da existência do regime nazi, aqueles que vão da tentativa de assassinato do Führer, em 20 de julho de 1944, até à rendição do regime, ocorrida em maio do ano seguinte. Fá-lo procurando obter uma resposta para uma pergunta posta logo no início do livro: o que terá feito com que a Alemanha, cuja derrota já então se mostrava inevitável, optasse por combater até ao fim? Afinal, mesmo nas guerras mais mortíferas do passado, sempre ocorrera um momento no qual os comandantes vencidos reconheciam a derrota e chegavam a um compromisso com os vencedores, na tentativa de evitar males maiores ou de salvar a própria pele. Todavia, com a Alemanha de Hitler nada disto aconteceu, tendo o território germânico de ser conquistado aldeia a aldeia, rua a rua, cidade a cidade, numa espiral de violência que fez com que na classificação macabra das baixas civis e militares da Segunda Guerra Mundial os alemães tenham ficado num macabro segundo lugar, logo após os soviéticos. A larga maioria das vítimas, incluindo cerca de metade dos soldados alemães mortos na guerra, pereceu no entanto, justamente, nesses derradeiros meses, sobretudo como consequência dos bombardeamentos maciços dos Aliados e do avassalador avanço do Exército Vermelho. ler mais deste artigo

                    História, Memória

                    O retorno e os retornados

                    La Revedere. Fotografia de Vlad Savin

                    Durante um quarto de século, o passado das centenas de milhares de portugueses chegados ao Portugal europeu com a descolonização pareceu ter sido apagado. A integração foi dramática, difícil e em larga medida incompleta, mas se o seu futuro continuou a preocupar, o que ficara para trás parecia «merecer» o completo apagamento. Foi só quando a normalização possível da situação dos «retornados» deixou de ser um problema coletivo que estes adquiriram uma nova visibilidade. Esta foi conquistada recentemente e de um modo muito lento, apenas projetada no interesse público, aliás, numa fase bem posterior à abordagem da própria Guerra Colonial, também ela silenciada e só a partir da década de 1990 em condições de começar a ser objeto de um grande número de leituras de natureza crítica, jornalística, histórica, política ou ficcional. Neste caso, afora a publicação de alguns romances (como o recente O Retorno, de Dulce Maria Cardoso) e de textos de natureza memorialística e nostálgica, poucos livros abordaram o tema do regresso de uma forma equilibrada, sem com isso querer dizer desvinculada da emoção invocada pela memória e da mágoa imposta pelo silêncio. Mas é isto que procura e consegue Voltar, da autoria da jornalista Sarah Adamopoulos. ler mais deste artigo

                      História, Memória, Olhares

                      A democracia e os seus inimigos

                      Não é novidade alguma dizer-se que estes tempos de desigualdade e crescente penúria, de ausência de perspetivas e de crise dramática do Estado social, são péssimos para a democracia. Nem é preciso ler os títulos ou ver os telejornais; basta andar de olhos abertos e de ouvidos alerta para percebermos como um número crescente de pessoas associa a crise ao desgoverno, o desgoverno à mentira e a mentira ao sistema político que tem a democracia representativa como núcleo. Neste ambiente, facilmente se propaga uma grosseira retórica antipartidos, antipolíticos e «antipolítica» que a todos mete no mesmo saco e não anuncia nada de positivo. Pior: esta é a altura para os discursos demagógicos se multiplicarem em número e em capacidade de influência, servindo-se dos sintomas mais dolorosos para enganarem os cidadãos a respeito dos motivos que os produziram e dos métodos da cura. A democracia, asseguram, é um desperdício, não dá de comer às pessoas, pelo que é necessário suspendê-la para se evitar a catástrofe. Se tal acontecer, serão cortadas as pontes com o passado recente e um autoritarismo mais ou menos iluminado, e sem fim à vista, será apresentado como única via possível para escapar ao descalabro. Tivemos em Portugal um bom exemplo deste caminho sem retorno, com a imagem negra e falsificada da história da Primeira República que o Estado Novo divulgou ao longo de décadas, insinuando a ideia de que o regresso do sistema parlamentar seria uma concessão a um caos primitivo e infernal. ler mais deste artigo

                        Atualidade, Democracia, Opinião

                        Teerão 2011

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                        Masculine World
                        Fotografia de Vahid Rahmanian

                        Em «Na Caverna de Platão», um dos mais conhecidos ensaios de Susan Sontag sobre fotografia, esta arte/técnica é descrita como «um dos principais meios de acesso à experiência, a uma ilusão de participação». Repetida como o é agora, banalizada pela inclusão de câmaras de alta definição nos pequenos telemóveis que se levam para todo o lado, a evidência das imagens, como diz ainda a ensaísta, romancista e ativista americana, propaga uma perceção «voyeurista» do mundo, «que nivela o significado de todos os acontecimentos». Uma leitura estritamente estética desta situação – se é que é possível tê-la sem um artifício de análise – permite uma certa euforia, determinada pelo excesso de representações e pela qualidade das imagens. Mas uma leitura mais conscientemente política deixa-nos consternados, uma vez que o efeito de banalização induzido pela proliferação reduz o impacto social daquilo que é representado. Penso nisto enquanto observo Masculine World, uma fotografia do iraniano Vahid Rahmanian que retrata mulheres de Teerão a viajarem numa carruagem de metro interdita a homens, e percebo como à beleza dos seus rostos, ao hipotético mistério dos corpos que se velam, se sobrepõe, ainda assim, uma noção de tristeza, de dignidade diante da indignidade e de injustiça que supera distâncias e transcende fronteiras. E admito que Sontag se tenha mostrado demasiado pessimista.

                          Artes, Fotografia, Olhares

                          23 de Outubro em Budapeste

                          Em 23 de outubro de 1956, há exatamente 56 anos, uma manifestação estudantil ferozmente reprimida pela polícia política em Budapeste tornou visível, mais de uma década antes da «Primavera de Praga», a primeira tentativa de democratizar o socialismo de Estado, associando-o a uma maior transparência política e a mais liberdades públicas no contexto do que foi então chamado «um socialismo verdadeiro». O movimento de oposição ao regime de partido único cresceu rapidamente e prosseguiu com a formação de milícias que tomaram o poder na capital e em outras cidades. O derrube da estátua colossal de Estaline teve na altura um particular simbolismo. Num ambiente efervescente, foram levadas a cabo ações de vingança sobre os agentes da ÁVH, a Polícia de Segurança do Estado, bem como sobre muitos quadros do Partido dos Trabalhadores Húngaros. O seu Comité Central ensaiou então uma abertura e Imre Nagy, um comunista reformista em tempos quadro do Comintern, foi nomeado primeiro-ministro, mas o Bureau Político mudou de ideias e acabou por apelar à intervenção militar de Moscovo. Em 4 de novembro, uma poderosa força soviética entrou em Budapeste. ler mais deste artigo

                            Democracia, História, Memória

                            MAP, herói

                            Manuel António Pina

                            Em memória do Manuel António Pina (1943-2012), o MAP, com quem falei apenas em duas ocasiões, mas que sem o saber, e com toda a certeza sem o querer, foi um dos meus heróis. Uma crónica sua.

                            Aos Nossos Heróis

                            Éramos jovens e habitávamos um lugar cercado de paredes onde os ecos do longínquo mundo chegavam esparsos e abafados. E, no entanto, o nosso coração pequeno-burguês (des gens de la moyenne como cantava Colette Magny sobre o Dia do Estudante de 1966) estava maduro, pulsante de sentimentos excessivos e de palavras por dizer. De algum modo, Maio de 68 aconteceu dentro do nos­so coração. Era aí que, também nós, nos barricávamos então con­tra a pequenez do nosso tempo e do nosso lugar. E, sim, também nós (conselhistas, anarquistas, guevaristas, trotskistas, enragés de todas as espécies), dentro do coração nos sentíamos, mansamente embora, la pègre e la chienlit. ler mais deste artigo

                              Biografias, Memória, Olhares, Recortes

                              Fui maoista e não me arrependo

                              Esta noite sonhei que voltara ao passado. Ainda melhor: sonhei que fora ao passado roubar, para poder usar nestes dias sem luz, aquilo que ele tinha de melhor. Não a juventude por alguns revista como insana, a energia sem medida, cuja evocação nunca me encheu de nostalgia porque as troquei por outras coisas e porque sei que a memória mais bela e perfeita tem sempre a forma de fábula. Pensando bem, afinal nesse passado fui tão feliz e tão infeliz quanto o sou hoje, ainda que por motivos diferentes. Fui antes buscar outra coisa, que ao contrário das fases e das dinâmicas da vida, permanece imortal porque transcende o tempo curto que nos cabe. Falo da esperança e da vontade indómita de mudar as coisas do mundo, sabendo sempre que nelas se misturam, em partes iguais, a imaginação do que há-de vir e o banho de realidade que sempre defronta o futuro.

                              Em La Chinoise, o filme que Godard rodou em 1967, numa parede do pequeno e bem burguês apartamento de Paris que serve de quartel-general ao bando de jovens irredutíveis, aprendizes de alquimista da Revolução que há-de vir, que protagonizam o filme, encontra-se escrito, com letras delicadamente decalcadas, «é preciso confrontar as ideias vagas com as imagens claras». Uma frase, se a memória desgastada não me engana, justamente da autoria de Mao Tsé-tung. Nela se resume o princípio que no meu sonho procurei trazer de volta para este lado do tempo. O de que não há intervenção política capaz sem que a precedam o esboço de impossíveis quimeras. Porque o excesso de realismo e a ditadura da «política do possível», imune à ideia de salto, de viragem, deu no que deu. Como o comprovam os noticiários assustadores, soturnos, deprimentes, que ainda somos capazes de ouvir.

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                                A piedade dos outros

                                Fotograma de ‘Alceste à bicyclette’.
                                Filme de Philippe Le Guay (2012)

                                «Há um cego que prefere sair à noite, entre a uma e as quatro da madrugada, com um amigo também cego. Porque está seguro de não encontrar ninguém nas ruas. Se vão de encontro a um candeeiro da iluminação pública podem rir-se à vontade. E riem. Durante o dia há a piedade dos outros que os impede de rir.» (Albert Camus, Carnets I, ed. 1962)

                                  Apontamentos, Olhares, Recortes

                                  Falar com os becos

                                  Paul Celan com Nani e Claus Demus
                                  Londres,1955

                                  Falar com os becos sem saída
                                  ali defronte,
                                  da sua
                                  expatriada
                                  significação –:

                                  mastigar
                                  este pão, com
                                  dentes de escrita.

                                  Paul Celan – de A parte da neve
                                  (Trad. de João Barrento e Y. K. Centeno)

                                    Apontamentos, Poesia