A fera amansada

Slavoj Žižek em entrevista à Babelia deste sábado.

P. ¿De verdad no quiere tomar nada? Jela Krecic, periodista treintañera, y tercera esposa de Zizek, se asoma un instante por el salón del apartamento, amplio y agradable, pero sin lujos especiales. Desde el patio ajardinado llega el canto de los mirlos. Este es el santuario de Zizek.
R. Aquí me gusta pasar el tiempo, trabajando en el ordenador, viendo películas [en un enorme televisor con pantalla de plasma], preparando nuevos proyectos. Con Sophie Fiennes voy a hacer la tercera guía pervertida, esta vez sobre el amor. Algo muy tradicional. El amor es percibido como patológico si es muy intenso. Hoy lo normal es ser promiscuo. Hasta tal punto estamos obsesionados con la idea moderna de hacer cosas, de ser dinámicos. Pero yo soy un romántico.
P. ¿No le pesa a veces cargar con su personaje de filósofo adorado por las masas?
R. No, porque soy un solitario. La gente cree que me gusta estar en público, pero mi momento más feliz es cuando acaba la conferencia. Aquí estoy en conflicto con todo el mundo, lo que me gusta es estar en casa, con mi mujer, dos o tres amigos. ¿Conoce usted Islandia? ¡Oh! Es el país donde querría vivir. No parece de este mundo, no hay árboles, ni hierba siquiera, es como otro planeta, como si Dios no hubiera terminado allí la creación.

    Apontamentos, Biografias, Heterodoxias

    Coimbra Z

    Fotografia de Mymosa
    Fotografia de Mymosa

    A vozearia bradada que só arrefece pela manhã, o volume dos decibéis a romper os tímpanos. E as bebedeiras procuradas no limite do coma. E as vagas de lixo e de garrafas quebradas, as poças fétidas de vómito e urina. E as pessoas que se empurram. E os palavrões martelados, as alarvidades arcaicas sobre as mulheres sozinhas. E a indiferença exposta como um troféu. E o desdém por outras vidas, por outros modos de celebração e festa. E Barreiros como se fosse Beck, como se fosse Brel. E tudo tão velho como se fosse novo. E o futuro que se esquiva. Recuámos cem anos, talvez mais, e há quem o celebre.

      Apontamentos, Atualidade, Coimbra, Olhares

      Os despojos da inocência

      Fotografia de Kaia
      Fotografia de Kaia

      A crise global tem suscitado na Europa não apenas o questionamento dos modelos de sociedade construídos sobre as liberdades políticas e o pluralismo ideológico, mas igualmente o do próprio valor da democracia como fonte da legitimidade da governação. Fora do espaço protegido, fechado sobre si próprio, dos aparelhos partidários que têm rodado na gestão dos diversos poderes, começa a ser praticamente consensual que o modelo da democracia representativa, tal como este tem vindo a funcionar, se mostra insuficiente para administrar com eficácia a coisa pública e para conservar a confiança dos cidadãos. Ao mesmo tempo, revela-se cada vez mais incapaz de mobilizá-los para as tarefas de regeneração das sociedades nas quais a perda de direitos e a instalação do pessimismo dominam pesadamente a paisagem social. ler mais deste artigo

        Atualidade, Democracia, Olhares, Opinião

        Quarenta anos depois de Abril

        Acrílico sobre tela de Jorge Cardoso
        Acrílico sobre tela de Jorge Cardoso

        À medida que o ano de 1974 foi ficando para trás, a evocação do 25 de Abril foi perdendo a tonalidade vibrante que manteve nos primeiros tempos. A estabilização do regime democrático, com as suas qualidades e imperfeições, tal como a instalação progressiva de uma sociedade menos desigual, foram induzindo distanciamento. Em cada aniversário, ressurgia sobretudo a memória afetiva de quem vivera a Revolução, ou de quem a preparara nos subterrâneos do exílio ou da clandestinidade, bem como uma compreensível nostalgia por uma fase do percurso pessoal e coletivo partilhada por quem desejava o retorno das utopias perdidas. Esperando por «outro 25 de Abril», como muitos diziam com convicção mas reduzida esperança. ler mais deste artigo

          Atualidade, Democracia, História, Opinião

          O meu 25 com quarenta

          Será provavelmente a primeira vez que o faço de uma forma pública e com algum detalhe, mas já que se cumprem hoje quarenta anos sobre aquele 25 que mudou as nossas vidas, vou contar como vivi o meu. Eu era então militar. Em finais de 1972 fora detido pela polícia no decurso de uma manifestação estudantil contra a Guerra Colonial, que acabara com o apedrejamento de um banco considerado cúmplice da política do governo. Depois de interrogado pela PSP – e algum tempo após pela PIDE-DGS – vi o meu nome inscrito numa lista de cidadãos pouco ou nada passivos a integrar compulsivamente no Exército. ler mais deste artigo

            Apontamentos, Democracia, História, Memória

            Quaresma light

            Fotograma de A Vida de Brian
            Fotograma de A Vida de Brian

            Talvez seja um sinal dos tempos, daqueles que o Criador estabeleceu para nos lembrar que tudo passa e um dia seremos – nós, as nossas referências, os nossos gostos – apenas pó. Mas a verdade é que, quando numa Sexta-Feira Santa faço uma pesquisa no Google Images, as primeiras quinhentas fotografias que surgem no ecrã são as daquele jogador de futebol de origem cigana, ou então do seu tio, que um dia também equipou de azul mas com a cruz de Cristo ao peito. No entanto, há ainda não muitas décadas, Quaresma era em primeiro lugar o período de quarentena que antecedia a ressurreição de Cristo e se caracterizava pela evocação pesarosa da Sua Paixão. Os cristãos mais rigoristas sabiam que nesse período – uma espécie de Ramadão light – deveriam evitar ingerir carne, comida que em muitos lugares é sinalizadora do excesso de riqueza e do incomedimento. Na minha infância, ainda os Monty Python não tinham filmado A Vida de Brian, a restrição mais habitual cingia-se à Sexta e ao Sábado da Paixão. Mas aquilo que realmente pesava, e tornava aquele tempo particularmente penitencial, era o impedimento, nos programas da rádio e da televisão, de passar outra coisa que não fossem quartetos de câmara, canto gregoriano ou orações, sem uma sinfonia heróica que fosse, ou sequer um episódio da série Bonanza que se visse, para animar. Daí o prazer imenso da manhã pascal, onde quem podia se empanturrava de amêndoas e ovos de chocolate. E já podia ligar a Emissora Nacional para ouvir Nat King Cole cantarolar Quizas, quizas, quizas naquele castelhano imperfeito. Ao menos sob este aspeto, estamos melhor.

              Apontamentos, Devaneios, Olhares

              Nos cem anos da Primeira Guerra Mundial

              À medida que nos fomos aproximando do centenário da Primeira Guerra Mundial, desdobraram-se as tentativas para explicar as suas circunstâncias à luz do presente. Todas têm coincidido em aspetos que a historiografia sempre deu como certos e incontroversos. Ninguém contesta, por exemplo, que ela começou quando poucos esperavam que pudesse ocorrer, que ganhou um extensão temporal e geográfica distante das expectativas de um confronto que se presumira curto e regional, e, acima de tudo, que introduziu um novo equilíbrio nas relações entre os Estados, perturbador da ordem internacional vigente e criador das condições para a eclosão, duas décadas depois, de um confronto ainda mais brutal. Existem, todavia, características que foi a última década de desenvolvimento do conhecimento histórico a reconhecer e destacar. Três delas justificam uma atenção especial: a guerra não opôs no terreno, pelo menos no seu início, modelos de Estado e de sociedade diametralmente opostos; desenvolveu-se num ambiente marcado por uma violência indiscriminada e sem precedentes; e emergiu no contexto de um conflito latente, aparentemente invisível, cuja gravidade não terá sido devidamente avaliada por aqueles que estavam no centro da decisão política. ler mais deste artigo

                História, Leituras, Memória

                O DN e Angola

                A informação é demasiada e um homem não pode saber tudo. Por isso, somente pelas crónicas de Ferreira Fernandes no Diário de Notícias tomei conhecimento do facto de capitais angolanos irem tornar-se maioritários na gestão do jornal. Entretanto, o que se passa ou não com o DN diz-me um pouco respeito, por razões sentimentais e não só. O meu avô paterno e o meu pai foram agentes do jornal durante décadas e foi nele que aprendi a ler: aos 5 anos punham-me, como a um macaquinho hábil, a soletrar em público os títulos, para gáudio dos amigos do meu avô e como experiência um tanto radical para mim. Depois, foi no DN que formei uma boa parte da consciência do mundo, tendo ainda sido seu colaborador ocasional. Por isso, e porque temos cada vez mais falta de boa imprensa, aquilo que acontece ao Diário me diz também respeito. É esta a razão pela qual não exibo o otimismo crítico e excessivamente simpático de Ferreira Fernandes. Pelo que me é dado pensar quando leio a expressão «capitais angolanos», fico-me antes pelo pessimismo expectante e assumidamente desconfiado. A ver vamos.

                  Apontamentos, Democracia, Opinião

                  Mudam-se os tempos

                  1972. O senhor do meio é Martin McGuinness, antigo líder militar do IRA e hoje vice-primeiro-ministro norte-irlandês. Nesta terça-feira vai jantar em Londres com a rainha Isabel II mas tudo irá correr bem. Muito bem mesmo. O mundo dá muita volta e os pontos cardeais já não são o que eram.

                    Apontamentos, Biografias, Olhares

                    A leitura e o futuro

                    Imagem de Andrew Hefter
                    Imagem de Andrew Hefter

                    «Enquanto houver livros para ler sei que não terei um momento aborrecido na vida. Só isto basta para lhes dever muito.» Com esta frase, com a qual rematou uma crónica recente sobre livros e livrarias, José Pacheco Pereira lembrou uma atitude que, apesar de viver uma fase de recuo, continua a marcar profundamente a experiência coletiva e a de muitos de nós. Refiro-me à prática da leitura como momento de enriquecimento pessoal, enquanto fator de conhecimento e de prazer, mas também ao seu uso como instrumento de liberdade, devido à capacidade que oferece para treinar a imaginação, abrir possibilidades e ajudar a construir uma consciência crítica do mundo. ler mais deste artigo

                      Apontamentos, Leituras, Olhares, Opinião

                      O bom traidor

                      Adolfo Suárez

                      Após dez anos de dolorosa doença, acaba de morrer Adolfo Suárez (1932-2014), o homem que, na qualidade presidente do governo de Espanha, entre 1976 e 1981 apoiou o razoavelmente pacífico processo de transição política que conduziu o Estado espanhol do franquismo até a democracia. Foi justamente quando em 23 de Fevereiro de 1981 se encontrava numa sessão das Cortes na qual Leopoldo Calvo Sotelo iria tomar posse como seu sucessor que teve lugar uma tentativa de golpe de Estado, destinada a recolocar a direita franquista no poder e materializada então na violenta ocupação do parlamento por uma companhia da Guarda Civil chefiada pelo tenente-coronel Tejero Molina. Anatomia de um instante, do escritor Javier Cercas, é uma excelente reconstituição histórica deste episódio, invocando os acontecimentos desse dia e dessa noite para enfatizar, com flashes retrospetivos, o papel daqueles que considera terem sido os protagonistas da resistência à iniciativa golpista: Suárez, o general Gutiérrez Mellado, Santiago Carrillo, então o secretário-geral do PCE, e, do lado de fora do parlamento, o rei Juan Carlos. ler mais deste artigo

                        Apontamentos, Atualidade, Biografias, História

                        Colaboração ou resistência?

                        Fotografia de Hugo Correia

                        1. Transcrevo uma parte substancial da crónica que José Vítor Malheiros assina hoje no Público:

                        «Os grandes consensos políticos são indispensáveis em graves momentos de crise. Em muitos dos países ocupados pelos nazis na Segunda Guerra Mundial, a resistência incluía pessoas que cobriam um espetro político que ia dos cristãos conservadores e monárquicos aos comunistas e anarquistas e a razão, a necessidade e a justiça da sua aliança era uma evidência para todos. Estes grandes consensos podem ser vitais em momentos de emergência, para ultrapassar um obstáculo preciso, ainda que não constituam uma fórmula de governação política nem apaguem as diferenças e os conflitos entre os seus constituintes – diferenças vitais, também elas, para permitir o exercício da livre escolha democrática pelos cidadãos, que deve ser instituída ou restabelecida tão depressa quanto possível. ler mais deste artigo

                          Atualidade, Democracia, Opinião

                          Hipóteses de futuro

                          Numa perturbante sequência do filme Sátántangó (O Tango de Satanás), do húngaro Béla Tarr, dois homens caminham, longamente e a custo, de costas voltadas para a câmara, por uma comprida estrada de asfalto molhada pela chuva, enquanto toneladas de detritos são empurrados por um vento fortíssimo na mesma direção, envolvendo-os numa paisagem suja e destroçada, e conferindo à sua marcha um sentido de resistência em ambiente hostil. Não é difícil estabelecer uma analogia entre esta cena filmada em travelling e o presente que nos cabe.

                          Os sinais estão aí. Vemo-los sem olhar, esmagados pelas contas e pelos prazos: comer para viver, pagar a prestação da casa, comprar os comprimidos. Sobreviver com cada vez menos, com o essencial, na fronteira mais recuada da dignidade. Por vezes, já abaixo dela, embora procuremos convencer-nos de que assim não é. Concentramo-nos no essencial enquanto nos dizem que quase tudo é supérfluo, e tentamos não ver o cenário que se abre à nossa frente. Mas é com este cenário, novo para a larga maioria dos que têm hoje menos de quarenta anos, que nos dizem irmos conviver até um dia que ninguém sabe marcar no calendário. Num horizonte de pobreza e decadência que anuncia um país em ruínas. Não as ruínas atraentes e evocativas, na fronteira do épico e do sublime, que tanto empolgavam os românticos, nem aquelas destinadas nos delírios hitlerianos a vincar a sorte dos países conquistados, mas os restos enfadonhos, sórdidos, que vêm com o desgaste e a ausência de esperança. Que não suscitam olhares benignos ou vislumbres de futuro. ler mais deste artigo

                            Atualidade, Cidades, Democracia, Opinião

                            Os «Homens dos Monumentos»

                            Monuments Men – Caçadores de Tesouros, realizado e interpretado por George Clooney, não é um grande filme. O ritmo é algo trôpego, a caracterização dos personagens quase sempre insípida – salva-se Cate Blanchett como Claire Simone, na verdade Rose Valland, a «Capitaine Beaux-Arts» – e nota-se uma hesitação excessiva entre a comédia que o não é e o drama que o não chega a ser. Melhora bastante na última meia hora, mas como filme convida um tanto ao bocejo de quem tenha dormido mal. Existe, porém, algo que o torna importante e o fará permanecer na memória de quem o viu. ler mais deste artigo

                              Artes, Cinema, História, Memória

                              O ideal kibbutzin

                              Pode parecer hoje incompreensível, ou no mínimo um pouco desajustado, que alguém de esquerda reconheça sem qualquer remorso que teve um dia como modelo de uma vida com sentido, feita de entrega, de internacionalismo e de solidariedade, a partida para Israel com a finalidade de partilhar uma experiência de trabalho comunitário num kibbutz. Mas foi isso que aconteceu com muitos militantes convictos da esquerda europeia durante as décadas de 1960-1970. Deverá recordar-se, em defesa desta memória recôndita, o facto dessas pequenas colónias integrarem então espaços de trabalho e de vida partilhados, formalmente igualitários, muitos deles de orientação laica e progressista, que apesar de nessa fase já conterem algumas funções de ocupação do território haviam sido em boa parte iniciativa de organizações associadas a um sionismo judaico com caraterísticas particulares, menos defensivo e mais aberto aos outros. Muito diferente do primitivo e daquele que agora conhecemos, mais assumidamente nacionalistas, religiosos, messiânicos e extremistas. ler mais deste artigo

                                Atualidade, História, Memória, Olhares

                                Pina político

                                No prefácio a Por Outras Palavras, a segunda das três antologias que foram reunindo muitas das crónicas escritas por Manuel António Pina (MAP) para jornais e revistas, Sousa Dias lembra dois fatores decisivos, apesar de contraditórios na aparência, para obter uma leitura justa daqueles textos. O primeiro considera o caráter sempre efémero de toda a prosa do género – «o cronista é filho de Cronos, o tempo que passa», lembrava o próprio Pina – e remete a sua completa decifração para as circunstâncias nas quais foi produzida. O segundo fator, aplicado mais explicitamente ao registo de MAP, remete para uma identidade conceptual advinda do facto dos seus textos cronísticos serem, cada um deles e o seu conjunto, trabalho de um grande escritor, o que lhes prolonga o prazo de validade. Partem do episódico, do instante, para chegarem àquilo que permanece e o transcende. Há naquelas peças quase diárias, bem acima do que pode ter sido incidental, «um sopro literário, por vezes mesmo poético», que é «imediatamente sensível» e lhes amplia a projeção. Esta é, aliás, uma característica partilhada pela multíplice obra escrita de Pina (na poesia, no teatro, na literatura infanto-juvenil, na reportagem), mas também no seu modo de viver a vida (nisso insistem os amigos, os colegas, os entrevistadores, os leitores que lhe cruzaram os passos). Em ambas, obra e vida, uma constante marca de poeticidade. ler mais deste artigo

                                  Biografias, Leituras, Olhares

                                  As invasões boas

                                  Militares russos na Crimeia
                                  Militares russos na Crimeia

                                  O pior que pode fazer-se no exame de uma situação complexa é reduzi-la ao aparentemente simples. É como limitar uma árvore à fixidez do tronco, ignorando a instabilidade da folhagem e a projeção da sua sombra. No entanto, na interpretação dos conflitos internacionais, esta é uma prática muito comum, em regra determinada – longe da aparente simplicidade dos conflitos da Guerra Fria – pela ignorância da sua crescente complexidade. Ou então, pior, por condicionamentos políticos que determinam um traço de giz separando de uma maneira demasiado esquemática o bom, o aceitável, o justo, daquilo que se considera mau, inaceitável ou iníquo. Quando afinal tudo se mistura em formas intrincadas, impossíveis de integrar numa interpretação linear que possa ser imposta por decreto ou pela força bruta das armas. ler mais deste artigo

                                    Atualidade, Democracia, Opinião