Foi bom enquanto durou

Alma e Gustav Mahler

As minhas primeiras biografias eram hagiografias. Retratavam invariavelmente os biografados como santos, seres incomuns, grandiosos e perfeitos, dotados de uma vontade indómita que ninguém sabia de onde vinha. Eram quase sempre histórias de vida muito simples, condensadas para leitores principiantes e escritas de forma cândida, em boa parte influenciadas pela conceção romântica de heroísmo, que destacava os biografados como modelos de bronze diante dos quais o leitor não podia ter outra atitude que não fosse a da admiração mais incondicional. Recordo sobretudo histórias de vida de compositores, como Mozart, Beethoven, Schubert, Chopin ou Mahler, desenhadas sobre o modelo de Sísifo, o humano rebelde castigado por Zeus ao qual foi imposto o dever de cumprir até à eternidade a tarefa sempre inacabada de carregar um bloco de mármore até ao topo de uma montanha. Também eles se mostravam exímios, na vida pessoal como na sua arte, a cumprir o duro destino que no entanto, contrariamente ao que acontecera com o filho de Éolo, lhes traria a imortalidade.

Ora a influência dessas tão generosas biografias foi tal que ainda recentemente continuava, por exemplo, a acreditar sem pestanejar na história pouco realista do «grande e único amor» mantido entre Gustav e Alma Mahler. No entanto, a verdade agora reconhecida é que Gustav tiranizou Alma, impedindo-a de compor, como sabia e desejava, e exigindo dela uma atitude social de rigidez que ia contra a sua natureza. Além disso, sabe-se há muito, por estudos sobre as suas andanças menos constrangidos pelo pudor, que Alma teve uma vida amorosa bastante complexa e agitada, nada conforme as inflexíveis regras da moral burguesa da sua época. E teve-a antes, durante e após a sua relação com compositor da Canção da Terra. Além disso, sabe-se agora, por recente biografia do músico vienense, também este passou boa parte da vida a desenrolar histórias nada de acordo com o modelo do amor único, obsessivo e exclusivista. Está pois na altura de tentar vender ao alfarrabista as biografias lendárias e agridoces que ocuparam boa parte da minha adolescência. Mas foi bom, foi muito bom enquanto durou.

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