Paul Nizan: apagado e reencontrado

Desde o ano da sua morte em 1940, ocorrida em combate durante a terrível batalha de Dunquerque, quando o exército aliado, composto essencialmente por franceses e ingleses, sucumbiu completamente perante o avanço alemão, até à reeedição em 1960 do romance Aden Arabie, ainda a sua obra mais conhecida, Paul Nizan (1905-1940) permaneceu para uma parte da esquerda como mais um renegado. O pecado de Nizan foi – como aconteceu com outros intelectuais comunistas, que no pacto de não-agressão germano-soviético de 1939 viram, com razão, uma inaceitável cedência ao nazismo – ter-se oposto à vontade de Estaline, o que junto dos partidos comunistas era então inaceitável. Como resultado, após ter sido durante largos anos um escritor lido e prestigiado, viu, por iniciativa do PCF e de muitos dos seus simpatizantes, o seu nome desaparecer totalmente dos jornais e mesmo das livrarias.

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    Jacobitas, jacobeus e malditos jacobinos

    Um breve apontamento de domingo. As palavras que constam do título possuem a mesma raíz: Jacob, o nome do terceiro patriarca da Bíblia, filho de Isaac e neto de Abraão, cujo percurso terreno é contado no livro do Génesis. Todavia, a relação destas três palavras com esse nome materializou-se em circunstâncias históricas bem diversas.

    Os jacobitas eram os adeptos de um movimento político que visava a restauração monárquica da dinastia Stuart nos reinos de Inglaterra e Escócia. A nomenclatura é uma derivação de «Iocubus, versão latina do nome do rei James II, deposto em 1688 pela Revolução Gloriosa que concedeu o trono a Guilherme II de Orange. Por sua vez, os jacobeus foram, entre os finais do século XVII e a primeira metade do seguinte, os membros de uma seita, organizada entre católicos religiosos e leigos, que pretendia regenerar, através de exemplos de intensa espiritualidade, a vida religiosa e moral do país. A expressão aludia à «escada de Jacob» mencionada no Génesis, dado os seus primeiros cultores costumarem reunir-se na escadaria do mosteiro de Varatojo.

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      História, Memória, Olhares

      Política à esquerda e proximidades

      Apesar de ter sido curta a militância a que posso chamar partidária – só entre os finais de 1970 e meados de 1977 – creio que me interesso militantemente por política desde os 13 anos, quando, talvez sem compreender muito bem o enredo em que me estava a meter, consegui convencer os colegas de turma do antigo 3º ano do liceu a não irem aplaudir um ministro de Salazar de visita à escola. Daí até hoje já passaram mais de cinquenta anos, e nem por um só momento – antes, durante e depois do 25 de Abril – deixei de «militar» na área da esquerda, a favor de causas que me têm parecido justas, urgentes ou eticamente necessárias. Todavia, essa militância teve sempre, nas suas diferentes fases, um traço comum: ser um espaço de aproximação aos outros, fossem estes aqueles que eram os companheiros e as companheiras do combate do momento, ou os que se inscreviam no dever de solidariedade para com os cidadãos aos quais este dizia respeito. Jamais um lugar para odiar quem, estando no essencial do mesmo lado da barricada, de mim discordasse.

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        O que aí vem (no lado mais à esquerda)

        Foi o cientista político Georges Lavau quem, em 1968, utilizou pela primeira vez a categoria de «função tribunícia» num estudo que escreveu sobre a atividade do Partido Comunista Francês naquela época, quando ensaiou uma solução governativa com o PS. Tomou-o aí como uma espécie de porta-voz das aspirações de grupos sociais situados à margem das dinâmicas do poder, contribuindo com essa proximidade para os retirar desse isolamento, integrando-os no sistema. Lavau considerou ainda que esse papel, ao colocar a relação do PCF com o poder de Estado como de uma natureza ao mesmo tempo representativa e integradora, o impedia de propor uma efetiva alternativa de governo, desviando-o também das virtualidades revolucionárias, assumidamente antissistema, que no passado detivera.

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          O futuro próximo e o PS

          Na sanha maniqueia que tragicamente é tradição de parte da esquerda – mantenho o antigo projeto de escrever um ensaio sobre a origem e o lastro histórico dessa escolha – o facto de me ter insurgido contra a opção dos partidos parlamentares à esquerda do PS na rejeição do Orçamento fez com que logo surgissem comentários referindo que tinha apelado ao voto no PS ou até à sua maioria absoluta nas próximas eleições legislativas. Só posso dizer, a quem provar que escrevi ou disse tal coisa, que oferecerei uma semana de férias nas ilhas Fiji com direito a acompanhante. O que fiz, isso sim, foi manifestar uma desapontada mágoa – partilhada por tantas pessoas de esquerda que tenho lido ou contactado –, afirmar que a decisão pode levar o PS a essa maioria, e apelar, face ao sucedido, a que se olhe agora em frente. Em primeiríssimo lugar, no sentido de manter a direita fora do poder, e depois no de construir uma governação pós-eleitoral democrática, justa e o mais progressista possível.

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            A conversa e o monólogo

            Como escrevi ontem e agora reafirmo, não irei argumentar mais – com outras pessoas ou mesmo sozinho – a propósito do tremendo e grave erro político do Bloco e do PCP. A partir de certa altura, já estamos a falar em círculo, ou como surdos, o que a nada mais leva que não seja a levantar demasiado a voz e a um desgaste. Acrescento apenas, em forma de síntese, que as legítimas reivindicações adiantadas por ambos os partidos – não vamos agora debater se, no conjunto, seriam exequíveis sem se cortar em outras rubricas do orçamento – jamais justificariam juntarem-se à direita e à extrema-direita para fazerem cair o atual governo. Tiveram sempre a possibilidade, que a maioria dos seus eleitores por certo aceitaria (fui um deles), de se absterem na votação, continuando a negociar. É esse o ponto. Aliás, o argumento de que se fez o que se fez porque o PS pretendia eleições e a maioria absoluta é, no contexto, inteiramente absurdo, pois será justamente isso a que ambos abriram a porta.

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              O Bloco e uma dor partilhada

              Ao contrário do habitual, esta crónica inclui uma forte componente pessoal, partindo da posição adotada pelo Bloco de Esquerda ao rejeitar o Orçamento de Estado. Sei que o essencial do que vou referir, em especial a identificação de um sentimento de perda e de uma desilusão, está a ser partilhado por um bom número de homens e de mulheres que mantiveram as mesmas expectativas, agora perdidas ou em vias de o serem. 

              Nunca fui militante do Bloco. Em 1999, o ano da fundação, era apenas mais um daqueles milhares de cidadãos, politicamente empenhados desde os anos da ditadura e da revolução, então conhecidos como «independentes de esquerda». Foi nessa qualidade que participei em reuniões ligadas ao processo de formação do partido. Não me tornei militante porque de há muito compreendera não ter temperamento para a disciplina partidária, que tantas vezes impõe o silêncio da dúvida e da crítica, mas passei desde aí a colaborar com o novo partido, participando como «companheiro de jornada» em muitas das suas iniciativas.

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                Equivocados

                Deparo nas redes sociais com posts de amigos do Bloco e do PCP, para quem a fé move montanhas, que entre artifícios de demagogia e malabarismo se esforçam por mostrar que os problemas criados com a votação do Orçamento ao lado da direita e da extrema-direita são praticamente inexistentes. Quanto muito, serão um mal que vem por bem. Para eles, o que aconteceu a 27 de outubro foi pois da exclusiva responsabilidade do PS, esse partido «de direita» que «só pretendia eleições antecipadas» (sic). Além disso, os inúmeros apoiantes e votantes seus que se estão a mostrar incrédulos, indignados e desiludidos – bem mais do Bloco que do PCP, por razões sociológicas e políticas conhecidas – não estarão é a entender patavina da estratégia aplicada. Nas palavras desses amigos, o crescimento eleitoral será mais que seguro e tudo se irá resolver lá para janeiro, pelo que a história os absolverá. Quem não perceba isto só pode ser gente de má-fé, pouco inteligente ou crédula. Tudo isto é triste e tudo isto existe, embora não seja fado.

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                  O desastre anunciado

                  Podemos estar a viver um desastre anunciado, relacionado com uma forma redutora de fazer política. Na sua aceção mais básica, esta é, desde a antiga Grécia, a arte de participar na governação da comunidade. Visa o todo, não a parte, e o que em democracia separa os partidos com vocação de governo daqueles que se décadas a fio se limitam a uma atitude protestativa ou de representação de setores minoritários, é justamente a capacidade que têm para considerar uma ampla diversidade de interesses na definição das suas estratégias e das suas campanhas. 

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                    Mitografias, certezas e insónias

                    Seja ele o passado, o presente ou um idealizado futuro, não podemos viver sem ficções do real que recorrem a mitos. A definição de mito – os relatos fantásticos que deram significado à vida quotidiana da Grécia antiga serão sempre o seu modelo primordial – é complexa e cheia de sentidos; todavia, para o que aqui importa, destaco dois que constam do Dicionário Houaiss: «a construção mental de algo idealizado» e, a ela ligado, «um valor social ou moral (…) decisivo para o comportamento dos grupos humanos em determinada época». O mito é, pois, indispensável para o funcionamento das sociedades humanas, ao participar como peça nuclear na construção da sua coerência e dos diferentes sentidos de pertença de quem as habita. As mitografias, por sua vez, juntam constelações de mitos, com eles compondo modos sistemáticos de representar o mundo.

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                      Exercícios de estilo

                      Tenho dito e escrito isto em diversos lugares e diferentes momentos: aquilo de que mais gosto quando leio um texto de não-ficção (alguns de ficção também) é de pensamento complexo expresso de forma clara e razoavelmente transparente. É claro que quando falo de pensamento complexo não me refiro a juízos crípticos, mas a raciocínios que não são meramente lineares, de mera causa-efeito. E que quando falo de formulações claras, não estou a falar de discursos simplórios, expectáveis e cravados de clichés.

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                        Menos que uma canção de embalar

                        Qualquer força política, para não ser um irrelevante conjunto de homens e de mulheres agrupados à volta de uma sigla, de uma bandeira e de um programa mínimo, para ser mais que um mero instrumento na partilha dos poderes, e sobretudo para ter alguma utilidade na organização do quotidiano das sociedades democráticas, precisa conciliar e aplicar dois fatores tão críticos quanto decisivos. O primeiro prende-se diretamente com os interesses materiais dos indivíduos e dos grupos, o que significa atender aos vários processos reivindicativos e fazer-se porta-voz destes, seja qual for a dimensão em que se coloquem: regalias, condições, direitos, garantias, expetativas e afins. O segundo fator prende-se com a gestão das sociedades a médio prazo ou a perspetiva proposta para o seu desenvolvimento, bem como com os caminhos para a produção de um futuro coletivo e para o desenho que este possa tomar. Ambos os fatores são imprescindíveis, mas apenas pesam e têm consequências se forem combinados. 

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                          Gil, Caetano e a Internet

                          Em 1996, Gilberto Gil cantava entusiasta «Eu quero entrar na rede / Pra manter o debate / Juntar via Internet / Um grupo de tietes de Connecticut». E mais adiante: «Quero entrar na rede pra contactar / Os lares do Nepal, os bares do Gabão». Há vinte e cinco anos eram muitos, entre os otimistas e atentos à mudança, aqueles que partilhavam uma relação confiante com a Internet como ferramenta de conhecimento e informação, mas também como veículo de democracia e da luta social. Já em «Anjos Tronchos», tema agora lançado, Caetano Veloso proclama sombrio: «Agora a minha história é um denso algoritmo / Que vende venda a vendedores reais / Neurônios meus ganharam novo outro ritmo /E mais, e mais, e mais, e mais, e mais», lembrando que, «vindo desses que vivem no escuro em plena luz (…) um post vil poderá matar».

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                            Apontamentos, Cibercultura, Democracia, Etc., Olhares, Opinião

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                            Tenho desde há anos, como colaborador do Plano Nacional de Leitura, agora destinado a leitores de todas as idades, avaliado parte considerável dos livros publicados em Portugal no campo da história, ou que com esta confluem. Este trabalho tem-me dado uma boa panorâmica da edição neste domínio, seja de autores nacionais ou em tradução. Todavia, o aspeto positivo que representa a elevada quantidade dos títulos é contrariado pela baixa qualidade de uma parte significativa deles, principalmente da responsabilidade de portugueses. Esta é particularmente manifesta entre os que não são academicamente validados ou escritos por historiadores profissionais – o que também não é sempre atestado de qualidade –, dependendo apenas de um acordo entre autor e editor. Vejo três grandes problemas.

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                              Gramática das gerações

                              Todos temos a noção da existência de declives, ou mesmo de despenhadeiros, entre o que vulgarmente chamamos gerações. Os historiadores sabem-no ainda melhor, dado que, para além da perceção empírica comum a toda a gente, desenvolvem todos os dias um trabalho de compreensão mais alargado, comparativo e situado numa escala longa do tempo. Conhecem bem, a par sobretudo dos sociólogos e dos antropólogos, o modo como esta transformação sofre hoje uma espécie de expansão geométrica, conduzindo esta a que o que se designa «salto geracional» seja cada vez mais curto. O que outrora demorava milénios a mudar, passou a levar séculos, depois décadas, mais recentemente apenas alguns anos, cada vez menos.

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                                A nobre arte da política

                                Ontem à noite, enquanto via na HBO mais um episódio da série de televisão, já com alguns anos, sobre a vida pública e privada de John Adams (1735-1826), uma das figuras centrais da Revolução Americana e o segundo presidente dos Estados Unidos, confrontei-me com um tema recorrente nas biografias de homens e de mulheres que dedicaram o essencial da sua vida à arte – arte porque deve misturar técnica e invenção – da política. Refiro-me a considerar a forma como essa escolha, se estiver associada a um ideal e a uma perspetiva coerente do mundo e da história, em muito determinou as suas escolhas de vida, as suas relações pessoais, a sua capacidade para distinguir o importante do acessório. Sendo construída como uma missão, à qual tantas vezes se sacrificam o descanso, a tranquilidade, alguns prazeres e mesmo a própria família, enquanto os riscos e as situações mais árduas se sucedem. O longo percurso de Adams, desaparecido aos 90 anos, para a época uma eternidade, foi disso constante testemunho.

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                                  Democracia, Direitos Humanos, Opinião

                                  Vinte vezes 11 de setembro

                                  A impressão dominante que produz em muitos de nós esta passagem dos vinte anos sobre o 11 de setembro de 2001 – «esta comemoração», como de forma absurda se dizia ontem numa televisão – é a de incredulidade. Desde logo por terem passado tão rapidamente duas décadas sobre um momento que parece ter ocorrido há apenas alguns meses, mas também pelo caráter intensamente plástico do acontecimento. Cujas imagens, sobretudo aquelas que se ligam ao derrube do World Trade Center e ao intenso drama humano então ali vivido, ainda hoje contêm algo irreal, como uma ilusão cinematográfica produzida com recurso a efeitos especiais. Existe, todavia, uma outra dimensão, que remete para uma realidade agora muito presente na qual permanecemos inequivocamente mergulhados: a de um mundo inseguro, onde os equilíbrios relativamente estabilizados do tempo da Guerra Fria deram lugar a um mapa pós-apocalíptico, dentro da qual os fatores de instabilidade, de incerteza e de perigo se multiplicaram, ampliaram e todos os dias desdobram.

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                                    Todos/as temos passado e só quem tenha problemas sérios de memória ou seja mesmo completamente tonto o pode rejeitar de forma absoluta. Somos sempre, e somos bastante, também aquilo que fomos. Além disso a nostalgia – conceito sobre qual tenho trabalhado profissionalmente nos últimos tempos – não é apenas uma tristeza causada pelo distanciamento de algo que vivemos, nomeadamente na nossa juventude, nem sequer um mero estado melancólico causado pela ausência de algo que somos capazes de identificar. Na verdade, pode também ser uma forma positiva de uso do passado, servindo este uso, ou parte dele, para alimentar e dinamizar a nossa própria vida, seja ela a pessoal ou a coletiva. O conceito de «melancolia de esquerda», divulgado pelo historiador Enzo Traverso, aponta nesta última direção, sublinhando o papel politicamente positivo de determinados aspetos ou episódios vividos ou herdados.

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