O dress code e a política do corpo

In the sixties

Quando falo em algumas aulas das grandes alterações dos anos 60, recorro muitas vezes ao exemplo do vestuário diverso que todos usam na sala, à atitude física que mantemos dentro e fora daquele espaço, ao modo informal como falamos uns com os outros, olhando-nos nos olhos e defendendo os nossos pontos de vista sem receio de estarmos a ofender alguém, para mostrar de que maneira existiu um tempo – para a maioria dos alunos o dos seus pais, ou mesmo o dos seus avós; para muitos destes, porém, algo que jamais conheceram – no qual o mundo como eles o observam, este mundo, se formou, rompendo abertamente, assumidamente, com um tempo-outro que o precedeu e que para muitos é hoje inimaginável. No centro da mudança uma nova política do corpo, que terá sido talvez o eixo em volta do qual as transformações políticas, culturais e vivenciais que marcaram aqueles anos – e que todos herdámos, mesmo aqueles de nós que hoje as procuramos desvalorizar – se organizaram. Por vezes sob a forma de combates duros e prolongados, que requeriam coragem e tenacidade.

Nascido nos fifties, num país fechado e manietado, vivendo até aos dezassete ou dezoito anos num ambiente pequeno, isolado e bastante preconceituoso – embora nas cidades as coisas não fossem então, é preciso reconhecê-lo, substancialmente diferentes -, travei um combate complicado por coisas que hoje certamente parecem ridículas, e das quais agora até prescindo, como usar o cabelo comprido e despenteado, vestir umas calças de bombazina grená se me apetecesse vestir umas calças de bombazina grená, ou passear à noite com uma amiga sem ter de casar com ela. Coisas que nunca me impediram, que eu saiba, de tratar mais ou menos bem as pessoas com quem fui convivendo, de cuidar da higiene pessoal, e de ir cumprindo o melhor que sei e sou capaz o meu trabalho, mas que me permitiram, com toda a certeza, estar no mundo, e projectar-me nele, de uma feição mais livre, individualizada, de alguma forma cosmopolita, que os meus pais, e os pais deles, jamais sonharam viver. Foi essa área da luta pela liberdade que me fez então – pude na altura dar-me a esse luxo, admito, e o facto de ser homem ajudou um pouco – recusar uma profissão que me constrangeria a um «código de apresentação». Muitos daqueles que o não puderam fazer iriam bater-se – na escola, no trabalho, na rua, por vezes dentro das suas próprias casas – por uma liberdade que passava também pelo reconhecimento da sua forma própria, não necessariamente padronizada, de estar no mundo. Uma luta hoje silenciada, mas não silenciosa, bastando para a reconhecer um apelo à memória de quem a viveu e uma consulta da imprensa da época (incluindo nesta, um aspecto muito importante, a regional).

Estou certo de que me acompanham nesta evocação muitas pessoas que viveram ou que conheceram, ainda que apenas dos livros, experiências idênticas. As mesmas pessoas que viram com um pequeno arrepio este episódio – patético, é verdade, mas sintomático e talibanesco – em redor do dress code aplicado às funcionárias da tal Loja farense do Cidadão. Episódio que indicia um retorno a uma ordem política das aparências agressora da liberdade pessoal. Ou então um salto rumo a uma sua versão mais aperfeiçoada. Não fala de cor Zygmunt Bauman quando afirma, em Modernidade Líquida, que «a demarcação entre o corpo e o mundo exterior está entre as fronteiras contemporâneas mais vigilantemente policiadas».

P.S. – Claro que não vivemos num regime totalitário, onde estas coisas acontecem de forma sistemática e sem apelo. Vivemos sob a ditadura informal do realismo político, na qual tudo é normal e aceitável se em prol da boa gestão. Inclusive a agressão a direitos e a liberdades conquistados a pulso pelos cidadãos.

    Atualidade, Democracia, História, Memória

    Extravagância

    Mais um recorte neste domingo de Páscoa, para mim de trabalho. «Antigamente, a Igreja julgava saber o que era necessário à nossa alma, com os resultados que se conhecem. O Estado e a medicina julgam hoje saber o que é necessário ao nosso conforto e felicidade física, com resultados cada vez mais intoleráveis.» As palavras são de Vasco Pulido Valente. Em dia-sim na crónica dominical do Público.

      Apontamentos, Recortes

      A Praga de Sudek

      Sudek

      A propósito de uma exposição sobre a obra do fotógrafo checo Josef Sudek (1896-1976), aberta ao público até 17 de Maio no Círculo de Bellas Artes de Madrid, Antonio Muñoz Molina deixou no Babelia de ontem uma prosa bela e comovente, «El caminante de Praga», que – como acontecera já com a evocação de John Banville no seu livro precioso sobre a cidade das duas margens do Vltava – faz justiça ao trabalho único de um homem que viu o seu destino como artista determinado, aos vinte anos, pela amputação do braço direito. Josef, que estivera destinado a encadernador, passaria então a percorrer Praga em todas as direcções, dia após dia, muitas vezes pela noite fora, carregando pelo resto da vida, apenas com um braço, a pesada máquina Kodak de 1894 e o seu enorme tripé. Fotografando, sempre num tempo lento, praticamente imóvel, quase inabitado, os espaços e as coisas que não poderiam ser mostrados abertamente, «mas apenas dando pistas, revelando apenas o justo, para que o olhar completo pudesse permanecer na imaginação do espectador». Existe uma Praga, desolada como um eremitério, infinitamente poética, que habita apenas a fotografia do tímido e solitário Sudek.

        Cidades, Memória, Olhares

        De fato

        De fato

        Na Loja do Cidadão, proclamada «de segunda geração», inaugurada em Faro no passado dia 3 com a presença do primeiro-ministro, as funcionárias estão proibidas de usarem em serviço blusas com decote, saias curtíssimas, vestuário de ganga, perfumes com uma fragrância agressiva, roupa interior preta, saltos altos e, claro, sapatilhas. Calculo que aos funcionários sejam prescritas também algumas normas, relacionadas com o tom da gravata, a sobriedade das peúgas, o risco ao lado no penteado e o uso obrigatório de pochette. E se o não são, deveriam sê-lo. Por motivos de «postura pessoal», seguindo o raciocínio avícola de uma tal D. Maria Pulquéria. O provincianismo corresponde sempre, por definição, a uma forma excessivamente mesquinha e tristonha de estar no mundo. Piora bastante quando se encontra associado a um bocadinho pequenino e bem guardadinho de autoridadezinha.

        Adenda – Uma coisa vale a pena dizer ao ouvido de quem considere este episódio irrelevante ao ponto de não se justificar sequer que seja notícia: são gestos destes que nos lembram o que foi o «salazarismo real» e o que ele fez – e continua a fazer – às cabeças das pessoas. Muito mais grave e profundo do que os lances fugazes do caso Freeport.

        A leitura de alguns blogues que abordaram o assunto trouxe também mais duas nuances. Uma refere-se ao sexismo boçal das considerações supostamente engraçadas sobre «os direitos dos utentes». A outra é o fétiche dos parvenus a respeito daquilo que insistem em chamar de «dress code». Que nada tem a ver com normas básicas de asseio e civismo, obviamente admissíveis e até desejáveis.

        (Dizem-me que entretanto o pormenor da roupa interior preta foi desmentido. Muito bem, mas essa era a parte cómica. O resto fica tudo na mesma. Isto é, mal.)

          Apontamentos, Cidades, Olhares

          Falsos berberes

          Piratas

          Conhecia já, de leituras antigas, a relativa autonomia política, face aos regimes islâmicos, daqueles a quem a tradição histórica europeia chama desde há séculos de piratas berberes. Sensivelmente desde os finais do século XVI até por volta de 1830, a sua presença temível e destruidora fez-se sentir muito para além das costas do Norte de África, de onde partiam e onde se abrigavam. Portugal e os portugueses sentiram com regularidade os ataques e razias que sistematicamente praticavam, existindo notícias de incursões suas até na Irlanda, na Islândia e mesmo na Groenlândia. Tanto nas suas actividades marítimas quanto nas maneiras de viver quando em terra, estes piratas conservavam uma independência que se mostrou particularmente notável e duradoura na chamada república de Salé, situada já na região costeira atlântica, frente a Rabat. Em larga medida povoada por repatriados muçulmanos de Espanha, o que me surpreende é que, durante séculos, foi local eleito de refúgio para inúmeros europeus rebeldes convertidos ao Islão, os quais, de acordo com Peter Lamborn Wilson em Utopias Piratas, forneceram em larga medida o saber técnico e a iniciativa que permitiram aos «berberes» ir tão longe e com tanto êxito nas suas acções de pilhagem e devastação. A ser provada, eis uma revelação surpreendente: o tão temido «berbere» era afinal, numerosas vezes, muito mais vezes do que o suposto, um europeu converso ou em dissídio, que conhecia bem as águas que cruzava e os territórios aos quais se dirigia.

            História, Memória, Olhares

            Ó Pátria amada!

            Patriotismo

            Como resultado da uma incompreensível falta de concertação com o absolutamente vital candidato Moreira, o primeiro-ministro afirmou hoje que apoiará a recandidatura de Durão Barroso para presidente da Comissão Europeia mesmo que o Partido Socialista Europeu vença as próximas eleições. O patriotismo, declara en passant e cem citar autoria a página da Academia Militar, é isso mesmo, «o amor à pátria, reconhecer que somos mais solidários a uma parcela da humanidade, os nossos compatriotas». Este padrão de «socialismo democrático» com sete palmos de terra acima da cabeça, que se passeia, «realista» até ao tutano, pelas passadeiras lusas do poder continental, exprime a consagração desse nobre princípio.

              Atualidade, Olhares

              Um sentido para a esquerda

              Nuages

              Publicado originalmente na revista LER de Março

              Celso Cruzeiro é reconhecido principalmente pela sua actividade como advogado e por ter sido um dos rostos principais da «crise estudantil» coimbrã de 1969. Conhece-se-lhe o activismo constante em alguns dos combates da esquerda geralmente não-alinhada, bem como o interesse por uma leitura interpretativa dos episódios de militância pelos quais passou, mas era-lhe até agora ignorado o gosto persistente e actualizado por uma reflexão teórica aprofundada sobre as circunstâncias, as coisas e as causas da esquerda. Este A Nova Esquerda retoma no título a designação utilizada para definir politicamente alguns dos movimentos radicais das décadas de 1960-1970, mas nem por isso se ocupa em excesso com uma busca retrospectiva das referências que naquele tempo moldaram o percurso do autor. Ao invés, a actualização das leituras e dos debates aos quais este se reporta conferem ao livro uma dimensão exemplar, rara entre nós, de adequação do reconhecimento da mudança do mundo ao pulsar mais contemporâneo do pensamento crítico e da intervenção política.

              Esta é, no entanto, uma daquelas obras das quais é habitual dizer-se que valem pelo todo. Não é possível lê-la de forma fragmentada, pois resultaria quase indecifrável um discurso erudito que não se compraz com sublinhados ocasionais. Trata-se de facto de um texto denso, consistente, resultante de um trabalho aturado de cerca de treze anos, através do qual Celso Cruzeiro conduz o leitor por quatro inquietações com correspondência noutros tantos capítulos. A primeira delas diz respeito à busca de um sentido, no domínio da epistemologia das ciências e da reflexão filosófica, para um mundo que hoje, mais que nunca, se revela instável e desconforme os grandes sistemas explicativos da modernidade colapsados a partir do segundo pós-guerra. A segunda ensaia um trabalho de compreensão da realidade actual do capitalismo, da renovação das suas vias e métodos, das consequências da ordem injusta que materializa para a vida das pessoas comuns. A terceira inquietação prende-se com a busca de indícios que permitam entrever a construção de uma teoria revolucionária capaz de fazer frente às novas realidades, à desesperança e às carências impostas pelo actual processo de mudança histórica. E, por fim, o quarto problema conduz o autor ao vasculhar das consequências mais nefastas da presente ordem económica mundial e do aparecimento de algumas das vozes e das tendências capazes de lhe fazerem frente no terreno.

              Quando, a dado momento, recorre à voz do economista e filósofo neoliberal Friedrich von Hayek onde este declara não existir actualmente «critério algum através do qual nós possamos descobrir o que é socialmente injusto», Cruzeiro aponta justamente para o inverso: para a necessidade de perceber as causas da injustiça de modo a que se torne possível combatê-la e aniquilá-la. Uma obra marcada, por isso, mais pela esperança que pelo desencanto.

              Celso Cruzeiro (2008). A Nova Esquerda. Raízes teóricas e horizonte político. Porto: Campo das Letras – Âncora Editora. 250 págs.

                Música, Opinião

                Alegadamente à esquerda

                No telejornal da RTP, uma peça jornalística refere o papel do coronel Jaime Neves durante o biénio revolucionário pós-Abril – o ex-comando está na calha para ser «canonizado» como major-general, sendo esse o sentido da peça – como o de alguém «que se confrontou então com militares alegadamente mais à esquerda». Utilizando a expressão que habitualmente associa a presunção de inocência ao criminoso em vias de ser julgado. Mais um sinal de tontice e de ausência de perspectiva histórica do tamanho de uma viatura Chaimite. Existem livros de todos os tamanhos sobre os episódios desse «então» e alguns até são daqueles fininhos e com muitas imagens. Ninguém os avisou?

                  Apontamentos, Memória

                  Resgate e redenção

                  Israel

                  Por onde quer que distribuam a sua acção e a sua influência, é própria de todas as religiões – mesmo das seculares – a vontade de determinar um ethos, identificado com o bem comum e a moral individual, capaz de justificar a prescrição de certas atitudes e a proscrição de outras. As religiões do livro em particular, todas elas, têm séculos de experiência neste campo. E é nesta tradição que se pode encaixar a actividade da organização não-governamental israelita JONAH – Jews Offering New Alternatives to Homosexuality – que procura prevenir e actuar sobre pessoas que sintam «atracção por outras do mesmo sexo». Como sempre, a intenção declara-se benévola: aliviar o tormento de quem sofre a sua «anormalidade», bem como o dos entes queridos destas pessoas, que com elas têm de partilhar esse lado «triste» e doloroso da vida. Afinal, declara na página oficial da JONAH o rabi Shmuel Kamenetsky, «nada existe que a Torah proíba e o ser humano não seja capaz de controlar.» Mudando de hábito de acordo com o lado onde nasce o sol, esta gente vive num mundo cerrado que roda a uma velocidade lenta, mas nem por isso deixa de procurar impor onde pode um perigoso higienismo.

                    Atualidade, Democracia, Olhares, Opinião

                    Os ricos que paguem a crise

                    Capitalismo

                    O PCP pretende que a Assembleia da República produza um quadro legislativo capaz de permitir a «criminalização do enriquecimento ilícito». Já em tempos o tentou sem sucesso, mas considera agora, «tendo em conta que a evolução e a própria vida», que existem condições para que a proposta seja aprovada. Não estou em condições de comentar a substância jurídica desta iniciativa, mas de uma coisa estou certo: naquilo a que chamamos um estado de direito ninguém pode ser julgado duas vezes, e duas vezes condenado, pelo mesmo crime. Se o enriquecimento é ilícito, existiu antes dele um acto, ou existiram diversos actos, provavelmente conjugados, que determinaram essa ilicitude. Os quais deverão, sem qualquer dúvida, ser investigados, julgados e punidos de uma forma rápida, eficaz e exemplar. Am I wrong? É que de outra forma poderemos antecipar a culpa e retornar aos tempos – por certo saudosos para os presumíveis proponentes – da abjecção proudhoniana da propriedade, da punição dos kulaks pelo facto de o serem ou da criminalização discricionária dos «sinais exteriores de riqueza».

                    Adenda: No seu estilo próprio, sempre com algo de agreste que o distingue dos outros e lhe confere um sal que aprecio, Nuno Ramos de Almeida comenta este post apodando de «santa ignorância» a ausência de perspectiva que, na sua opinião, o terá determinado. Não vou contrariar o juízo, obviamente, até porque nem o Nuno sabe aquilo que eu sei nem eu domino tudo aquilo que ele conhece, mas de uma coisa pode estar certo: tenho os olhos suficientemente abertos, e experiência que baste, para distinguir a declaração de necessidade de legislação própria e ágil contra os crimes «de colarinho branco» – com a qual essencialmente concordo – da vontade indómita, presente em certos discursos, de mandar toda a gente com mais de cinco zeros no saldo bancário para as galés. É esta, pelos perigos que comporta, que me repugna. Quanto ao epíteto de «anti-comunismo» lançado sobre a intenção, talvez seja um bocadito exagerado: pelo menos tanto quanto o anátema de «anti-socialismo» lançado sobre quem apenas não aprecie José Sócrates e os seus queridos muchachos.

                      Apontamentos, Atualidade

                      Outubro revisitado

                      1917

                      Não é todos os dias que de um trabalho criterioso resulta uma noção de razoabilidade aplicada à governação de Estaline, mas é isso que acontece com este livro. Ao procurar devolver a complexidade original a um dos episódios fundadores do mundo contemporâneo que mais vezes tem sido reduzido a estereótipos, Mário Machaqueiro mostra como vale sempre a pena reapreciar, procurar os detalhes, detectar novos nexos e contradições naquilo que muitas das vezes pensamos nada mais ter para oferecer senão a repetição das evidências.

                      Durante a maior parte do século passado, tanto a historiografia oficial como a oficiosa, mesmo parte daquela que poderia e deveria assumir uma maior vigilância crítica, fez eco de traços da revolução de 1917 aceites como inquestionáveis: desde logo o carácter radicalmente fundador da tomada do poder pelos bolcheviques, mas também a sua actuação colectiva como corpo submetido a uma disciplina rígida, a inscrição da sua intervenção num fluxo histórico de sentido progressivo e universalista, a dimensão unívoca e previdente da intervenção de Lenine. Nesta obra de sociologia histórica, Machaqueiro arruína esses pressupostos, mostrando de que forma a tomada do poder pelos comunistas, desde a sua fase de preparação até aos tempos iniciais de construção e defesa da nova ordem, se definiu através de processos que nada tiveram de lineares ou de previsíveis, em regra resolvidos à vista e caso a caso, entre importantes divergências, e, no que diz respeito a Lenine, definindo um percurso até bastante sinuoso, no qual a intuição e o voluntarismo se sobrepunham muitas vezes à planificação e à gestão racional da mudança.

                      Aqui a transição iniciada em Outubro «deu-se menos sob a cobertura de um paradigma disponível do que sob a busca de um paradigma fugidio perante uma realidade crescentemente volátil», na qual a luta de facções no interior do próprio bolchevismo, projectada muito antes da morte de Lenine e persistindo alguns anos mais depois desta acontecer, se tornara uma constante. Só com Estaline tal estado de coisas terá sido dominado pela intervenção de uma vontade coesa, forte e demolidora. Boa parte do livro aplica-se aliás, contestando a teoria de Thomas Kuhn que fala de rupturas revolucionárias repentinas impostas por posições inconciliáveis, a estabelecer um reconhecimento detalhado dos complexos «processos de transição societal» que foram permitindo, a partir da revolução, desenhar os constantes avanços, recuos e mudanças de direcção, considerando que «só o estalinismo constituiu, a bem dizer, um paradigma societal na história da Rússia soviética.» Uma porção substancial do volume ocupa-se ainda com as construções e representações identitárias que permitem hoje «interpretar o devir da Revolução Soviética», as quais passaram, atendendo ao lugar ocupado pela Rússia e à profunda complexidade social que então a atravessava, pela centralidade de «identidades de fronteira» e de bloqueios que se mantiveram após 1917. Também neste campo, apenas a ordem estalinista acabará com a indefinição.

                      Mário Machaqueiro, A Revolução Soviética, Hoje. Ensaio de releitura da revolução de 1917. Afrontamento, 344 págs. Publicado originalmente na LER de Março de 2009.

                        História

                        Whadda mistaka da maka!

                        Bertorelli

                        Não deixa de ser curiosa a forma como um certo tipo de glosador da realidade circundante – da mesma espécie que correu em passo acelerado a acusar o Bourbon madrileno de sobranceria quando este sugeriu publicamente a Hugo Chávez que simplesmente deixasse os outros falarem -, ignore agora, ou refira só de raspão, a frase pronunciada por Isabel de Inglaterra quando esta se espantou, durante a régia recepção aos políticos do G20, com o tom vagamente tumultuoso, ou no mínimo alterado para o ambiente tranquilo do Palácio de Birmingham, da voz do cavaliere Berlusconi. Como este não é Chávez, agora o escândalo morreu à nascença e os exaltados de serviço deixaram as acusações no saco. O que até é injusto, dado fazer todo o sentido estranhar-se que uma figura como Isabel II ignore os traços dominantes de um dos personagens centrais de Allo, Allo!, uma das melhores séries de comédia para a televisão produzidas no interior dos seus reais domínios. Refiro-me ao sonoro Capitão Bertorelli, obviamente, que o estrepitoso Don Silvio descaradamente plagia.

                          Atualidade, Opinião

                          Poética social

                          Gente

                          Intimidade Cultural, subintitulado Poética Social no Estado-Nação, é uma colectânea de ensaios publicada entre 1986 e 1995 pelo antropólogo Michael Herzfeld, um professor da Universidade de Harvard que há cerca de trinta anos vem pesquisando e escrevendo sobre os caminhos da Grécia contemporânea. Se existe uma orientação comum aos diversos artigos compilados, ela traduz-se na tentativa de compreender a forma como aquilo a que chamamos «valores» se incorpora na experiência das relações sociais. É neste âmbito que se coloca o que Herzfeld chama aqui de «intimidade cultural», um lugar do espaço colectivo onde os valores que os indivíduos e grupos consideram como seus se cruzam e interagem com os demais. Esta intimidade cultural apoia-se, por sua vez, numa «poética social», observada como «apresentação criativa do eu individual», e que se apresenta aqui como expressão da «função poética da linguagem»: a possibilidade, inscrita na língua e na cultura de cada um, de jogar a todo o instante com os códigos que são apropriados e emitidos pelos outros. É também abordada neste livro a integração do Estado neste processo, uma vez que este é sobretudo «um conjunto de instituições e de estratégias que se apoiam nos mecanismos sociais mais quotidianos», e que, precisamente por isso, não pode ignorar as crenças e os mitos, os localismos e as segmentaridades, as identidades e os estereótipos. Uma reflexão estimulante, que nos deixa ver para além do realismo político que do mundo em volta apenas capta o óbvio e quase sempre o tristonho. [Trad. de Marcelo Félix, Edições 70, 368 págs. Originalmente na LER de Março.]

                            Atualidade, Olhares

                            As visitas

                            As visitas

                            Como era de esperar, a mudança de morada deste blogue trouxe consigo uma redução temporária (espera-se, claro) dos acessos. Neste momento, para pouco mais de um terço do que ocorria ainda há poucos dias. Parte desta redução deve-se a que muitos visitantes chegam ao blogue através de motores de busca ou de posts citados que apontam para a outra direcção. Mas existe uma porção significativa de acessos que chega através das listas oferecidas por outros blogues ou dos favoritos guardados nos browsers. Pede-se por isso aos amigos e interessados n’A Terceira Noite que não se esqueçam de actualizar essa informação. Entretanto, devido à extensão da nova barra lateral, a lista completa de blogues recomendados encontra-se agora na página Blogues.

                              Etc., Oficina

                              Cuba Sí, pero…

                              Fidel e Camilo Cienfuegos
                              Fidel e Camilo Cienfuegos

                              Alguns dos factores que no início da década de 1960 transformaram a revolução cubana e os seus rostos salientes – um Fidel persistente e carismático, o efémero mas decisivo Cienfuegos, um Che em breve tornado imortal – num factor de atracção e de romântico entusiasmo para toda uma geração de europeus ocidentais e de nascidos nas Américas que incluía intelectuais e revolucionários, mas também muitas pessoas pouco politizadas, parecerão hoje algo paradoxais. Sobretudo se observarmos aquilo em que Cuba se transformou e se identificarmos o perfil político daqueles que hoje ainda defendem sem hesitações o regime que governa o país. Essa atracção e esse entusiasmo advieram, justamente na época em que os partidos comunistas começavam a perder o pé junto de alguns dos sectores mais dinâmicos da esquerda ocidental e de uma nova geração de estudantes e de trabalhadores, do facto de os revolucionários da ilha de Martí parecerem evidenciar uma acentuada ruptura em relação à cartilha ideológica proposta a partir de Moscovo e à imagem cinzenta, gerontocrática, fornecida pelos rostos que, da tribuna do Kremlin, zelavam diariamente pela sua preservação.

                              À deriva proto-nacionalista de grande número de partidos e organizações comunistas tradicionais, ao esgotamento do padrão de sociedade que estas erguiam como paradigma, ao impacto perturbador da invasão da Hungria pelos soviéticos e das revelações de Kruchtchev no XX Congresso do PCUS, contrapunha-se a emergência de um novo e polissémico universo de expectativas que os agora renovados movimentos sociais reivindicavam, e que os barbudos cubanos, jovens, informais, arrebatados e com os olhos no futuro, com Fidel à cabeça, pareciam materializar. Não por acaso, os insubmissos cubanos, bem como os seus primeiros e incondicionais apoiantes – com Sartre, já então saído do PCF, à cabeça – foram vistos de início com muita desconfiança pelos mesmos partidos comunistas que então, é bom não esquecer, denunciaram o «aventureirismo guevarista». Hoje deparamos com a inversão destas atitudes de afeição e de desconfiança: politicamente insulada, a «revolução cubana» viria a fixar-se nos modelos de autocelebração que originalmente repudiara. Por sua vez, privados das anteriores referências fundacionais, alguns partidos comunistas passaram a erigir como modelo o regime que um dia olharam com desconfiança ou mesmo com animosidade. A História faz-se de factos, por muita reescrita que a possa envolver, mas nela a Revolução Cubana terá sempre um lugar de destaque.

                                História, Memória, Opinião

                                O outro 1º de Abril

                                Guerra Civil

                                No dia Primeiro de Abril de 1939, perfazem-se hoje setenta anos, terminou a Guerra Civil de Espanha. Singularmente violenta e persistentemente traumática, causou mais de 600.000 vítimas civis e militares caídas de ambos os lados, tendo servido de palco para um número ainda indeterminado de atrocidades. Viveu os primeiros bombardeamentos aéreos sistemáticos sobre populações civis efectuados por aviação fornecida pela Alemanha nazi e pela Itália fascista; assistiu à eliminação metódica de um grande número de militantes do POUM, a organização comunista antiestalinista, por parte de agentes da polícia política soviética lançados no terreno; e coabitou com execuções sumárias de suspeitos, em regra membros do clero ou pessoas das classes média e alta, consumadas por anarquistas e comunistas. Ao mesmo tempo, os nacionalistas faziam assentar o seu avanço militar, e o poder no terreno que a partir dele iam exercendo, sobre a chacina, o terror e depurações sistemáticas, prolongadas por muitos anos após o termo dos combates.

                                Para além da preservação da dimensão lendária desta guerra, em boa parte justificada pela forte mobilização da opinião pública ocidental que provocou e pelo empenho nas fileiras das Brigadas Internacionais de um grande número de artistas e intelectuais antifascistas, a sua memória é presentemente objecto de um combate colectivo que visa libertar do silêncio a recordação dos actos de brutalidade praticados pelos franquistas. Alterando a narrativa parcial e artificialmente benigna que estes produziram a propósito das condições em que chegaram ao poder e sobre a forma como o mantiveram. E procurando promover a reconciliação com o seu próprio passado da metade da Espanha que ao longo de décadas permaneceu calada.

                                Adenda: os Caminhos da Memória referem aqui um conjunto de seis vídeos sobre as circunstâncias e o decurso da guerra, enquanto o El País e o Público.es têm vindo a publicar excelentes artigos sobre o tema.

                                  História, Memória