Do lado negro da História

No dia da canonização de Nuno Álvares Pereira, recupero um post publicado há dois meses atrás. Independentemente do carácter polémico e discutível que possa ter a tese de António Borges Coelho nele evocada, é lamentável que a mesma tenha sido, tanto quanto pude perceber durante estas semanas, completamente ignorada nas peças jornalísticas que têm acompanhado o processo. Algumas redigidas num tom de proselitismo religioso completamente despropositado.

Quando iniciei o curso de História trazia ainda comigo a imagem de um Nun’Álvares paladino e devoto, campeão da independência em Aljubarrota, e, anos depois, converso a uma nova existência: a vida simples feita de oração e cilício do Beato Nuno de Santa Maria. Era essa a imagem, construída pelos finais do século XIX e que o Estado Novo reproduzira, que havia transformado o Conde de Ourém e Condestável de Portugal numa espécie de ícone simultâneo do brio indígena e da piedade cristã. Foi então que li um livro, onde se afirmavam algumas teses sobre o sentido da crise política de 1383-1385 hoje algo contestadas, contendo informações sobre a vida verdadeira de Nuno Álvares Pereira que não circulavam pelas vias tradicionais de acesso ao registo do nosso passado colectivo.

Fora em 1965 que o historiador António Borges Coelho publicara na Portugália esse A Revolução de 1383 que vim a conhecer na sua edição de 1977, a 3ª, consideravelmente aumentada e revista de acordo com as novas possibilidades oferecidas pela Revolução de Abril (existem ainda edições posteriores). Foi aí que vi emergir da penumbra um senhor de Cernache com um rosto menos harmonioso, como nobre feudal cioso dos seus direitos, interventor pelo fio da espada nos campos alentejanos e andaluzes, do lado de cá e de lá das marcas do reino, contra os camponeses sublevados, que não se coibiu, por vezes, de perseguir e massacrar. Porque, como contou Borges Coelho apoiado principalmente em Fernão Lopes, Nun’Álvares dizia preferir morrer combatendo «nas fraldas» do próprio rei castelhano que serem depois, ele e os seus, «apanhados de lugar em lugar como perdigotos e enforcados uns e uns pelos sobreiros». Pela acção desses miseráveis campónios que visivelmente temia e essencialmente desprezava.

Ora é esse homem, «herói» também de uma guerra suja, com acções nada abonatórias no registo individual, com sangue nas mãos que não apenas o do invasor castelhano – mas apontado como «exemplo para a sociedade actual» pelo frade carmelita «vice-postulador da causa da canonização» -, que a Igreja católica, apostólica e romana de Bento XV beatificou em 1918 e que Bento XVI vai agora transformar em santo. Tendo como fundamento mais imediato, dizem, a cura milagrosa num olho de uma sexagenária que deixara de ver por ter sido atingida «com salpicos de óleo a ferver enquanto cozinhava». Cavaco já se congratulou publicamente com o evento e pode ler-se em alguns blogues de direita que esta é uma das melhores notícias para Portugal que temos recebido nas últimas décadas. Para as pessoas comuns o facto não aquecerá nem arrefecerá as suas existências, mas será sempre de proveito e exemplo conhecer também o lado negro da História. E saber de onde chegam os esquecimentos.

    Atualidade, História

    Sobre o silêncio dos mortos

    O genocídio arménio

    Um século depois dos acontecimentos de 1915, o governo conservador de Erdoğan toma, no mínimo como equivalentes, a morte de soldados turcos em combate e as actividades sistemáticas de genocídio que Istambul então levou a cabo, provocando o extermínio sistemático de um milhão e meio de arménios e iniciando uma política de supremacia racial na região que ainda continua a fazer vítimas. Mas ficou agora particularmente incomodado com as palavras de Barak Obama ao reconhecer publicamente os actos de barbárie então levados a cabo e que se encontram amplamente documentados. Construir a paz na região procurando, ao mesmo tempo, rescrever a História por cima do silêncio dos mortos, não será por certo um bom princípio para quem deseja tornar-se um bom «europeu» e obter a confiança de um lado do mundo que viveu longos séculos no temor das intenções otomanas.

      Atualidade, História

      Memória supérflua

      Canada Dry

      A memória supérflua do meu pré-Abril está cheia de sabores, odores, sonidos. O gosto do refrigerante Canada Dry, consumido como sucedâneo da acossada Coca-Cola. O dos chocolates Candy-Bar com recheio, nos quais fui viciado. O do melão verde escuro vendido porta-a-porta. O cheiro a tinta do Século Ilustrado que saía aos sábados. E o do creme Benamor usado pelas senhoras. O da cola Peligon. O da graxa para sapatos nas manhãs de domingo. O compasso dos tangos e pasodobles no Programa da Manhã da Emissora Nacional. Os Shadows a tocarem Apache. O Nat King Cole. A Filarmónica transpirando Verdi atrás do turíbulo de Agosto. O fado no rádio de pilhas. O toque de caixa no 10 de Junho. Como tudo passava devagar e na aparência nada sucedia, havia tempo para registar os detalhes. Ainda à sombra do retrato do velho.

        Devaneios, Etc., Memória

        Palavras públicas (sobre o Twitter)

        Notificador

        Ando há dias a congeminar este post. A medir o que nele poderia dizer sem passar por inimigo das redes sociais na Internet, ou fazer figura de antipático aos olhos de pessoas que irão pensar que me estou a referir a elas. Acabei por ser impelido a escrevê-lo por um pequeno apontamento, para a qual me chamaram a atenção, e no qual se equipara ao Twitter uma geringonça, instalada no ano de 1935 em ruas, lojas, estações de comboio e outros locais públicos da cidade de Londres. O Notificador – assim se chamava o aparelhómetro – permitia que o utilizador deixasse pequenas mensagens, escritas em papelinhos, as quais funcionavam como recados destinados a determinadas pessoas. A ideia, aparentemente simples, parecia boa e útil, sendo estranho que não tivesse pegado.

        Ela dependia, porém, de uma certa capacidade de permanência dos referidos papelinhos, pois estes deveriam manter-se visíveis durante pelo menos 2 horas. Ora é justamente aqui que falha a comparação com o Twitter. O defeito poderá ser meu, mas desde que por ali comecei a ter bastantes friends que escrevem 100, 150, 200 mensagens diárias, a interactividade tornou-se quase impossível, uma vez que essa cortina de recados impede uma leitura adequada – por vezes, ao fim de 5 ou 6 minutos as nossas mensagens foram já afogadas por largas dezenas de outras – e quase inviabiliza uma verdadeira conversa. A não ser que as pessoas envolvidas estejam durante horas com boa parte da sua atenção virada para esta actividade.

        Vejo o Twitter como uma coisa divertida e certas vezes bastante útil, mas que se pode tornar maçadora para quem está absorvido noutras tarefas e, logo que se liga, vê a mesma pessoa, a mesma cara, a surgir no ecrã em cascata. Durante tanto tempo diário que, certas vezes, nos questionamos sobre a forma como essas pessoas encontrarão lugar para lerem os artigos e os livros que recomendam, para verem os filmes e programas de televisão que sugerem, para viverem a vida «lá fora» da qual falam. Julgo, sinceramente, que deveria existir uma espécie de twittiquette. Uma boa regra, provavelmente a única, consistiria então em que ninguém pudesse enviar mais do que 10 mensagens por hora. Mesmo assim os viciados ainda poderiam enviar mais de 200 por dia, mas dariam tempo aos outros para respirarem e deixarem os seus próprios recados, informações ou fugazes tonterias. Admito, no entanto, que não tenha percebido muito bem a lógica da coisa e possa andar a marinar num erro qualquer.

          Apontamentos, Cibercultura, Memória, Olhares, Opinião

          O Largo

          Forgive| Never

          Neste 25 de Abril, a Câmara de Santa Comba Dão irá inaugurar um Largo António Oliveira Salazar «requalificado» em conjunto com «o seu espaço envolvente». Festa rija, aguarda-se, pois a cerimónia contará com «a actuação da Tuna de Santo Estêvão» e «haverá porco no espeto» à discrição para fidalgos e vilões. O vice-presidente do município afirmou, entretanto, que a escolha da data para a inauguração não tem qualquer significado político: «não há nenhum significado especial nisso». E o próprio presidente declarou, num rasgo de lucidez, que o espaço «já tem esse nome desde antes do 25 de Abril». Afinal o Dia da Liberdade também não possui, como sabemos, um significado de maior. Comemora-se uma revolução que por acaso determinou a segunda morte do ditador do Vimieiro e entre outras coisas permitiu, ao que parece, a valorização do próprio poder autárquico, mas nada disso parece relevante face à magnitude do vulto assombroso do sempiterno senhor doutor. Valorizando o papel depurador do esquecimento na construção de uma memória mais justa, Marc Augé frisou que é preciso esquecer para lembrar, mas aqui inverte-se processo: trata-se de evocar o passado, de celebrá-lo, para fazer de conta que apenas ocorreu um ténue virar de página. Imposto, talvez, por uma arreliante brisa.

            Atualidade, História, Memória, Opinião

            Bandeira pirata

            The Pirate Bay

            Em entrevista publicada no último número da Technikart, o sueco Gottfried Warg, considerado «o cérebro» da organização The Pirate Bay, declara: «Faço isto em nome da liberdade e um pouco para chatear o mundo». «Isto» não é senão manter em actividade, em conjunto com os amigos Peter Kolmisoppi e Hans Fredrik Neij, um site de partilha de ficheiros electrónicos que conta já com mais de 25 milhões de utilizadores. Os três responsáveis pela Pirate Bay foram agora condenados a um ano de prisão e ao pagamento de indemnizações no valor de 2,7 milhões de euros, mas não é por isso que pretendem abandonar o ramo e o site mantém-se em plena actividade. Por trás deles, uma multidão de pessoas, em regra jovens e com pouco dinheiro, que querem continuar a aceder à música, aos filmes e aos programas que desta maneira lhes entram com toda a facilidade em casa. O mais interessante é que a sua acção está a lançar um movimento mundial de solidariedade e de contestação declarada dos direitos de autor e dos privilégios das grandes distribuidoras, constrangedores do acesso a um património que poderia ser público. A utopia comunista parece pois estar a chegar aos bits. Diz um apoiante convicto da justeza da causa: «Aquilo de que gosto mesmo nos tipos da Pirate Bay? Da sua radicalidade.» Não é difícil simpatizar com eles.

              Atualidade, Cibercultura

              O senhor da previdência

              Eric Hobsbawm

              Quase a perfazer 92 anos, Eric Hobsbawm mantem-se mais desperto e capaz de pensar de forma crítica e controversa do que muita gente avisada e previsível que circula por aí cheia de vigor e em condições de percorrer três quilómetros matinais em passo de corrida. Só agora li «Socialism has failed. Now capitalism is bankrupt. So what comes next?», o seu artigo publicado há alguns dias no Guardian. Não oferece uma resposta para a pergunta que coloca? Pois não oferece, não senhor. Só que o primeiro passo para escolher um percurso a seguir consiste sempre, antes ainda de se meterem as solas à estrada, em perceber que ela pode existir. E em procurar o seu norte magnético. Chama-se a isso previdência.

                Atualidade, Olhares, Opinião

                Toda a revolução

                Revolution

                Outubro é uma edição da Angelus Novus que resulta de uma série de posts – publicados originalmente neste blogue, mas entretanto revistos – sobre o impacto mundial da Revolução de 1917 e do seu mito. O livro estará à venda muito em breve. Adianta-se aqui, em pré-publicação, uma parte substancial do último capítulo.

                A revolução, toda a revolução, é enunciada como ruptura mas propõe um regresso. A mudança que encena aponta desde a fundação para um restabelecimento, para um retorno, a uma ordem essencialmente antiga, primordial e benigna, que se crê ter sido corrompida algures e em algum momento. Mudar, mudar profundamente, mas para reverter. A «revolução» humana que permitiria aceder à cidade ideal, tal como a concebeu Platão, requeria um esforço de recuperação de uma ordenação primordial perdida: era uma métabolê, uma alteração radical, mas também um ponto de viragem que antecedia uma regressão. Nesta direcção, François Châtelet entende que «por paradoxal que pareça a afirmação, Santo Agostinho, Bossuet, Rousseau ou Engels são platónicos», uma vez que neles a superação radical da ordem do mundo visa sempre – entre a descoberta da Cidade de Deus e o triunfo final do comunismo – a recuperação de um passado perdido, a restituição de uma ordem utópica e edénica aniquilada por um declínio que remonta a tempos ancestrais, pontuadas ambas pela intervenção do pecado, pela ruptura do estado de natureza ou pela divisão social do trabalho.

                Mas a «verdadeira revolução», aquela que sobrevive ao efémero, ao fluir simples dos acontecimentos, não envolve apenas a destruição de uma ordem política injusta e caduca. Ela implica também a desconstrução da organização social imperante e dos princípios que a governaram. Mesmo quando existe uma agenda política que admite medidas graduais, esta toma sempre por horizonte a mudança decisiva, não aparecendo como um desvio, uma cedência diante dos princípios, mas antes como um diferimento, um instante de preparação para a batalha definitiva apontada ao que importa, que é a demolição definitiva da ordem pré-revolucionária.

                Marx e Lenine anunciaram a necessidade objectiva desta operação de devastação do real ao excluírem a capacidade regeneradora de qualquer «revolução parcial»: era necessário tudo mudar, inclusive de etapa histórica, ainda que em alguns dos momentos do aguardado «assalto aos céus» pudesse lançar-se o ataque apenas sobre um dos flancos do inimigo. Toda a atitude reformista se tornava inútil e abominável, salvo quando servisse como instrumento da mudança integral. Daí o desdém de Lenine pelo gradualismo reformador do marxista veterano Karl Kautsky ou do menchevique Julius Martov. Porém, aquilo que acontecerá após o instante crucial da viragem revolucionária, permanece sempre como algo de impreciso: por mais inevitável que se revele, toda a revolução é pobre, lacunar, uma vez que funciona mais como instrumento de demolição, operando sobre a realidade objectiva, do que como via para um horizonte tangível a alcançar. De Platão a Mao, passando por Rousseau, Robespierre, Marx ou Trotsky, a teoria da revolução aponta para um futuro mais afortunado e harmónico, mas jamais lhe define os contornos. Apenas declara que este chegará algum dia, como resultado de um processo que deposita nas mãos dos seus executantes as decisões sobre o caminho a percorrer. Num tempo longínquo e incorpóreo, apenas uma ideia de felicidade por cumprir.

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                  Atualidade, História, Olhares

                  Veias abertas

                  Eduardo Galeano

                  Quem possa ter interesse em conhecer a argumentação que Hugo Chávez acaba de oferecer a Barack Obama sob a forma de livro, pode encontrar aqui, em formato pdf, uma versão em português de As Veias Abertas da América Latina, do jornalista e escritor Eduardo Galeano. Originalmente publicado em 1971 e nesta versão com um posfácio de 1978. Naturalmente, a escrita de denúncia sob a forma de ensaio histórico pode sempre ser manipulada por cérebros messiânicos que nela buscam a sua própria legitimidade.

                    Atualidade, Democracia, História

                    Corín e o amor

                    Corin Tellado

                    Vale a pena confirmar no El País de hoje aquilo que já se sabia: a Dona Maria del Socorro Tellado (1926-2009), poeta de tantas mulheres solitárias e de uns quantos homens não menos abandonados, mulher «muy lanzada, que montaba en bicicleta cuando estaba mal visto y que fumaba cigarrillos a escondidas», era uma grande fingidora.

                    Me emocionan las cosas reales, las que palpo, las que tienen vida. No me seducen las puestas de sol, ni las estrellas, ni la luna llena. Yo nunca he dicho ‘te amo’, ‘te quiero’, ‘vida mía’. Sólo lo sugiero en las novelas para que se emocionen otros. A mí me conmueven los animales, los prados, las personas, la roca viva, los acantilados.

                      Memória, Recortes

                      Querem matar Monsieur Hulot

                      Mon Oncle

                      O cachimbo sinalizou repetidamente a imagem projectada por políticos (Estaline, Roosevelt, H. Wilson), escritores (Baudelaire, Joyce, Chandler), actores (B. Crosby, S. Tracy, J. Lemon), filósofos (B. Russell, Sartre), pintores (Van Gogh, Manet), músicos (Coltrane, Mingus), cientistas (Einstein, Oppenheimer) ou personagens de banda desenhada (Haddock, Mortimer). Sem o acessório tabaqueiro, nenhum deles teria sido quem os seus contemporâneos pensaram que foi. Jamais teriam sido quem a história nos conta que foram. Ninguém explorou porém as capacidades da pequena peça fumegante como o actor e realizador Jacques Tati. Em O Meu Tio, As Férias do Sr. Hulot e Há Festa na Aldeia, mais brevemente em Playtime, o cachimbo transformou-se num interlocutor capaz de alvejar o objecto, a situação, o personagem, que de seguida a câmara persegue sem piedade. A sua função não é sorver nicotina, mas antes interrogar, desaprovar, sublinhar. Serve sempre de ponteiro, de microfone, de auxiliar da invectiva, omnipresente e insubstituível no universo tatiano. Mas esse lugar incontornável não bastou para impedir que no poster que divulga em Paris uma retrospectiva da obra de Tati se tenha feito desaparecer do olhar dos cidadãos o «vicioso» cachimbo. Insatisfeitos com a instalação perversa da sua tirania sobre os espaços públicos, os maníacos higienistas querem também apoderar-se do nosso passado.

                        Cinema, Democracia, Memória

                        Made in Denmark

                        Sesta

                        O governo da Dinamarca prepara-se para transformar a sesta num direito dos trabalhadores das áreas da Saúde e da Assistência Social. Este será mesmo remunerado, embora não possa ultrapassar os vinte minutos diários. A medida foi já adoptada, a título experimental, em 1800 empresas privadas de outros sectores. O direito a um dia de baixa por morte de animais domésticos ficará também consagrado na lei geral do trabalho. Tanto por fazer e nós aqui a perder tempo com o não-sei-quantos rangel e o professor assertoado.

                        Mais ou menos 24 horas depois – Recebo um mail da Joana Lopes, que, neste momento no Camboja, se choca com estas preocupações quase banais. Transcrevo uma frase sem lhe pedir autorização: «Será possivel, viável, um mundo em que se possa dormir a sesta sem que outros (aqui) trabalhem 364 dias por ano, nem se sabe quantas horas por dia? E em que os primeiros ainda se queixam se as empresas são deslocalizadas para dar de comer aos segundos?»

                          Devaneios, Etc.

                          Coimbra’69

                          Coimbra'69

                          17 de Abril. A maioria dos cidadãos que conservam reminiscências da Coimbra dos idos de sessenta – do meio pequeno, professoral, santacombadense, mas também universal, quimérico e inquieto – conhece aquilo que a data significa. As prestimosas autoridades locais, essas dormem na ignorância de uma parte da memória viva da cidade que vão gerindo. Por vezes na cumplicidade ao retardador com o lado mau do filme. Dia da audácia de uns quantos, das oportunidades conquistadas, do mito que enuncia parte da verdade e inventa e reinventa a outra. Primeiro dia do resto da vida da cidade salazarenta que um dia há-de morrer.

                          Seguir o testemunho ocular do Marcelo Correia Ribeiro, a visão de retrovisor do Miguel Cardina e o olhar de viés do Luís Januário.

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                            A haka dos impostos

                            Haka

                            A decisão da Direcção-Geral dos Impostos no sentido de chamar o actual treinador da selecção nacional de râguebi, Tomaz Morais, para numa intervenção sobre liderança motivar os seus funcionários, é uma mina para qualquer blogger com falta de assunto. E funciona para o cidadão contribuinte como um preocupante gesto de intimidação. Vou já regularizar os meus impostos antes que me apareça pela frente um funcionário hipermotivado, com espírito de liderança e espadaúdo.

                              Devaneios, Etc.

                              Contem-nos coisas de Cuba

                              Cuba Libre

                              É bem triste «La Revolución» não aguentar palavras que apenas irradiam uma perspectiva do mundo diferente da arremessada pelos artigos hiper-saudosistas, caluniosos ou ameaçadores do Granma e do Juventud Rebelde. O cerco americano a Cuba, que Obama começa agora gradualmente a levantar, sempre me pareceu uma medida injusta e desnecessária, resultado de uma política externa míope e influenciada pelos «gusanos» um tanto ressabiados de Miami, mas o cerco interno, praticado na ilha, à liberdade de opinião de quem é visivelmente desalinhado do discurso oficial, não é menos injusto e injustificado. Para além de um tanto paranóico. Que a havanesa Yoani Sánchez tenha de publicar o seu primeiro livro de crónicas em Itália é um sinal desse desajustamento.

                              Es abril y no hay mucho que hacer, solo mirar desde el balcón y confirmar que todo sigue como en marzo o en febrero. La Plaza de la Revolución -un pirulí truncado que asustaría a cualquier niño- domina los bloques de concreto de mi barrio. Frente a mí, dieciocho pisos de hormigón llevan el cartel de Ministerio de la Agricultura. Su tamaño es inversamente proporcional a la productividad de la tierra, así que me dedico a mirar con mi catalejo las oficinas vacías y sus ventanas rotas. Vivir en esta zona “ministerial” me permite interrogar los altos edificios desde los que salen las directivas y resoluciones para todo el país. Manías de orientar el lente y pensar “ellos me observan, pues yo también los observo a ellos”. De esas inspecciones con mi telescopio azul he sacado bien poco, la verdad, pero una impresión de inercia traspasa el cristal y se cuela a través del hormigón de mi edificio modelo yugoslavo.

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                                Spartakus em Berlim

                                spartakus

                                Publicado no Manuel de Leitura de Tambores na Noite, de Bertolt Brecht. Encenação de Nuno Carinhas. No Teatro Nacional São João do Porto até 26 de Abril.

                                Brecht escreveu Tambores na Noite muito cedo. Em 1919, B.B. acabava de dobrar os vinte anos e não passava ainda de um rapaz bávaro com uma actividade não muito bem definida. Interessava-se pelas artes de palco, isso era certo, e havia já começado a redigir Baal – peça com uma forte componente autobiográfica sobre o velho tema do artista enquanto marginal, em boa parte inspirada pela frequência regular das aulas de Arthur Kutscher -, mas a guerra tinha-o apanhado sem projectos imediatos e no Outono do ano anterior fora mesmo incorporado no exército. A experiência militar seria breve – por ser estudante de medicina trabalhou algumas semanas como enfermeiro num hospital militar de Augsburgo, sendo desmobilizado com o fim do conflito – mas nem por isso deixou ela de perturbar o retorno à condição civil e a maneira de Brecht observar o mundo à volta. Em Munique, onde vivia, como em Berlim e nas outras grandes cidades alemãs, para a maioria das pessoas o ambiente era agora pesado, muito marcado pela realidade da derrota, pelo regresso em massa dos soldados, por conflitos sociais cada vez mais acentuados e também por uma activa luta pelo poder. «Os tempos que correm são inseguros. (…) a desmobilização está a fazer jorrar desordem, cobiça e desumanização animalesca para dentro dos oásis dos que trabalham em paz», proclama Frau Balicke logo no primeiro acto.

                                Tambores na Noite, obra de juventude ainda sem as marcas do teatro épico que o autor desenvolverá na maturidade, foi primitivamente redigida nesse período de adaptação a uma paz podre, aparecendo muito marcada pela sublevação espartaquista ao dramatizar o ambiente que conduzira à revolta, as suas diversas ocorrências, a repressão e depois o refluxo do movimento. A personagem de Friedrich Murk, o anti-herói que não combatera, fizera fortuna com os lucros de guerra e ainda por cima se preparava para roubar a noiva do proletário que fora mobilizado, expõe de certa maneira o sentimento de traição e de frustração que os trabalhadores fardados, constrangidos durante anos a combaterem, sentiam naquele tempo de regresso a casa na condição de vencidos. A peça anuncia também a definição vitoriosa de uma nova ordem contra-revolucionária, manifesta quando Andreas Kragler, o soldado que fora dado como morto e tornara à pátria para a ver acabrunhada, e a casa para ver quase destruído o seu futuro, decide no final optar pelo confortável refúgio da vida privada.

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                                  Artes, História, Olhares

                                  Aracnologia

                                  Aracnologia

                                  Tenho andado a divertir-me um pouco com as possibilidades técnicas que a autonomização do servidor de A Terceira Noite trouxe consigo. Algumas delas são visíveis ao leitor habitual do blogue, outras porém servem apenas a quem o gere.

                                  Uma das informações curiosas, agora tornada possível, refere-se aos spiders que aqui entram. Para quem não esteja familiarizado com o termo, os spiders são uma espécie de robôs que se movem na web. Eles procuram os links que detectam no código-fonte e é depois a partir destes que entram no site para vasculharem o seu conteúdo. Saltam então de link em link, relacionando a informação da página de acordo com o algoritmo a que obedecem, enviando a informação ao seu senhor, que lá bem longe a pode utilizar das mais variadas maneiras. Pois bem, os spiders mais activos por aqui são os do todo-poderoso Google e os do novíssimo Cuil, respectivamente com 56,6% e 8% dos acessos. Mas encontram-se muito bem colocados, num honorável 3º lugar, os do chinês Baidu, com cerca de 7% e quase 500 espreitadelas em menos de uma semana.

                                  Levado cá por umas suspeitas – e intrigado principalmente pelo facto de A Terceira Noite não ser escrita em mandarim –, resolvi cruzar este tipo de informação com um outro: aquele que permite saber quais são as palavras mais pesquisadas dentro do próprio blogue. Aquelas que o leitor digita na caixinha que encontra no topo da barra da direita antes de carregar no botão procurar. Pois sabem os leitores qual a palavra mais pesquisada neste momento? Nada mais nada menos que Tibete (ou Tibet). Julgo não ser preciso mais nada para ter todo o direito a poder ficar com algumas suspeitas. Mesmo sem ser propriamente um entusiasta das teorias da conspiração ou ter a mania das grandezas.

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