Outubro revisitado

1917

Não é todos os dias que de um trabalho criterioso resulta uma noção de razoabilidade aplicada à governação de Estaline, mas é isso que acontece com este livro. Ao procurar devolver a complexidade original a um dos episódios fundadores do mundo contemporâneo que mais vezes tem sido reduzido a estereótipos, Mário Machaqueiro mostra como vale sempre a pena reapreciar, procurar os detalhes, detectar novos nexos e contradições naquilo que muitas das vezes pensamos nada mais ter para oferecer senão a repetição das evidências.

Durante a maior parte do século passado, tanto a historiografia oficial como a oficiosa, mesmo parte daquela que poderia e deveria assumir uma maior vigilância crítica, fez eco de traços da revolução de 1917 aceites como inquestionáveis: desde logo o carácter radicalmente fundador da tomada do poder pelos bolcheviques, mas também a sua actuação colectiva como corpo submetido a uma disciplina rígida, a inscrição da sua intervenção num fluxo histórico de sentido progressivo e universalista, a dimensão unívoca e previdente da intervenção de Lenine. Nesta obra de sociologia histórica, Machaqueiro arruína esses pressupostos, mostrando de que forma a tomada do poder pelos comunistas, desde a sua fase de preparação até aos tempos iniciais de construção e defesa da nova ordem, se definiu através de processos que nada tiveram de lineares ou de previsíveis, em regra resolvidos à vista e caso a caso, entre importantes divergências, e, no que diz respeito a Lenine, definindo um percurso até bastante sinuoso, no qual a intuição e o voluntarismo se sobrepunham muitas vezes à planificação e à gestão racional da mudança.

Aqui a transição iniciada em Outubro «deu-se menos sob a cobertura de um paradigma disponível do que sob a busca de um paradigma fugidio perante uma realidade crescentemente volátil», na qual a luta de facções no interior do próprio bolchevismo, projectada muito antes da morte de Lenine e persistindo alguns anos mais depois desta acontecer, se tornara uma constante. Só com Estaline tal estado de coisas terá sido dominado pela intervenção de uma vontade coesa, forte e demolidora. Boa parte do livro aplica-se aliás, contestando a teoria de Thomas Kuhn que fala de rupturas revolucionárias repentinas impostas por posições inconciliáveis, a estabelecer um reconhecimento detalhado dos complexos «processos de transição societal» que foram permitindo, a partir da revolução, desenhar os constantes avanços, recuos e mudanças de direcção, considerando que «só o estalinismo constituiu, a bem dizer, um paradigma societal na história da Rússia soviética.» Uma porção substancial do volume ocupa-se ainda com as construções e representações identitárias que permitem hoje «interpretar o devir da Revolução Soviética», as quais passaram, atendendo ao lugar ocupado pela Rússia e à profunda complexidade social que então a atravessava, pela centralidade de «identidades de fronteira» e de bloqueios que se mantiveram após 1917. Também neste campo, apenas a ordem estalinista acabará com a indefinição.

Mário Machaqueiro, A Revolução Soviética, Hoje. Ensaio de releitura da revolução de 1917. Afrontamento, 344 págs. Publicado originalmente na LER de Março de 2009.

    História.