A informação chega-me através de um artigo de Miguel Gaspar: o governo britânico está a estudar uma reforma do ensino básico que pretende destacar a aprendizagem das novas tecnologias, em especial a das redes sociais da Internet, em detrimento dos saberes considerados convencionais. Não tenho nada contra a divulgação alargada e sistemática destes processos – que uso diariamente, intensamente, produtivamente muitas vezes, e que recomendo –, mas tenho tudo contra a desqualificação do conhecimento estruturante em favor de uma deriva comunicacional apresentada como valendo por si mesma. O problema, julgo, advém em larga medida do facto dos centros de decisão política – leia-se: os partidos institucionais – estarem cada vez mais nas mãos de gente «especialista» em conhecimento funcional, que cresceu politicamente na gestão do imediato, e que descarta, como anticorpos, aqueles que pensam para além do momento. Daí também a desvalorização sistemática das humanidades e da reflexão crítica que estas oferecem. Temas aos quais regressar aqui com mais tempo e um outro cuidado.
O troiano chinês
Sempre tão ágil e zeloso a amordaçar a informação livre na Internet, o governo chinês cala-se perante a descoberta de uma rede de espionagem electrónica, sediada no seu território, que se tem dedicado a violar computadores de ministérios, embaixadas e associações de diversos países ocidentais e asiáticos. Não por um acaso, algumas destas associações têm tornado público o seu apoio ao respeito pelos direitos nacionais do povo tibetano, e pelo menos duas embaixadas portuguesas contam-se também entre os alvos atingidos pelos ciberpiratas chineses. O objectivo era instalar maliciosamente, em numerosos computadores, software capaz de actuar como um cavalo de Tróia, identificando referências ao Dalai Lama e encaminhando-as para servidores sediados na República Popular da China.
Preparemo-nos agora para a procissão do costume: o governo chinês irá primeiramente ficar em silêncio, depois negará qualquer intervenção no caso, e finalmente encontrará um qualquer funcionário de terceiro ou quarto escalão que possa servir de bode expiatório. Será então que os governos dos países afectados pela intrusão irão aceitar as explicações e curvar-se diante do governo imperial de Pequim. É claro que os chineses não são os únicos a fazerem isto e ainda há pouco tempo se soube que o governo alemão andou a navegar pelas mesmas águas lamacentas. E, evidentemente, há muitos anos que os americanos tomam medidas neste campo. Mas o gesto torna-se particularmente agressivo e repelente quando parte de um governo – ninguém acreditará que foi a «sociedade civil» chinesa que produziu tais hackers – que se dedica a controlar e a censurar abertamente a Internet, reprimindo com punho de aço o menor gesto de autonomia informativa dos seus cidadãos.
Flamejante
Já desisti de tentar explicar por que razão um sujeito de meia-idade como eu, com uma educação clássica, responsabilidades profissionais e um problema com o excesso de glicemia no sangue, gosta tanto da música pop descarada e adolescente dos agora já meio-avelhados Pet Shop Boys. Aqueles dois tipos de country town, nascidos na Inglaterra deprimida dos anos 50, que desde os eighties andam por aí a colar à pop as chamadas «letras inteligentes». Eu próprio não percebo a origem da atracção. Evoco só antigas viagens matinais a caminho da praia, com o Neil e o Chris a rodarem no leitor de cassetes do carro em segunda mão. E sei que um dia gostaria de viver no universo epopeico e elementar que durante todo este tempo os rapazes da loja dos bichos me têm feito imaginar.
«King of Rome» é de Yes, o álbum já de 2009:
[audio:http://aterceiranoite.org/wp-content/uploads/2009/03/08-king-of-rome.mp3] |
Lukashenko e as coelhinhas-tuga
Durante a manhã considerei a possibilidade de escrever um post sobre a reunião dos blogueiros apoiantes dos grandes comunicadores Kim Jong-Il e Lukashenko, mas logo a minha atenção se desviou para a banca dos jornais. Como previsto, já lá estava em exposição o primeiro número da Playboy portuguesa. Convencido de que estava a ser espirituoso, disse à vendedora qualquer coisa como «temos finalmente a Playboy connosco». Mas esta não mostrou ter descortinado a alusão à conhecida frase do doutor do Vimieiro e respondeu com um «pois» que me pareceu estranhamente frio. A situação pareceu piorar quando se apercebeu de que eu queria mesmo comprar a revista. E não fechámos o negócio sem que ela devolvesse o troco da nota de cinco euros como se eu fosse portador do vírus da peste bubónica.
Mas a compra valeu bem o esforço e a desonra. A revista tem qualquer coisa de sadio e lustroso, com lugar garantido em antecâmara de consultório ou no porta-luvas de um taxista. Trabalho honesto, asseado, sem nada a ver com aqueles exemplares americanos, obtidos à socapa e em segunda mão, com os quais numa certa fase do passado aprendi, como dizia o Sr. Alberto Alfaiate, um pouco das «coisas da vida». Mas estas coisas de vida são, de facto, menos peludas, avantajadas e concupiscentes que as originais, nada que perturbe as famílias. E se alguém duvida é porque não folheou as páginas da novel revista. Ainda me enchi de esperanças quando na Carta do Director li uma frase na qual este aliciava o leitor com um «vamos a isto», mas cedo me desenganei sobre a possibilidade de existirem sugestões menos próprias. Afinal, na Playboy portuguesa fala-se dos sapatos da Madonna sem qualquer assomo de fetichismo e de fotografias tiradas a cheeseburgers por David La Chapelle sem qualquer vislumbre de crítica ao higienismo galopante. Anuncia-se inocentemente que 62% dos homens mais ricos do planeta se casam com mulheres de cabelo castanho e que 4 de cada 10 preservativos vendidos são adquiridos por senhoras. A Conselheira – cujo nome por momentos me pareceu evocar umas certas fantasias – desalenta logo qualquer um ao aconselhar à leitora Paz Diego, de Málaga, para «basicamente dizer ao seu marido não levar a questão a peito, até porque o peito é seu.» E ao pedido «gostava de perceber como funciona o sexo em mundos virtuais como o Second Life», a senhora dos conselhos não respondeu nada que se percebesse. Emocionante poderia ser a entrevista ao futebolista Costinha, mas quando li a pergunta sobre se este «chegou a privar com a realeza monegasca», resolvi passar à frente. Em boa hora, admito, porque logo de seguida dei com as 18 páginas (e um desdobrável) com fotografias de Rute Penedo, uma loira com implantes apresentada como «mulher de Artes». Não pude, no entanto, ver a grande reportagem com atenção porque a senhora da mesa do lado começou a olhar para mim com uma expressão esquisita. Por isso – admito que um pouco cobardemente – guardei a leitura da reportagem com Mónica Sofia, a «estrela da capa», para uma melhor oportunidade.
Acossado pelos olhares da matrona, tive pouco tempo para folhear as páginas que faltavam e me raspar dali. Ainda li uma citação de Bertrand Russel pressagiando a extinção da raça humana no final do século passado. E outra de John Wayne onde este declarava acreditar na supremacia branca «até que os negros sejam educados para atingirem um estado de responsabilidade». Passei os olhos por uma frase de Pedro Paixão na qual o escritor declarava peremptoriamente que «o amor é um trabalho pelo qual se tem de lutar e o que já se conseguiu dissipa-se no passado». E foi nessa altura que percebi ter passado mais de uma hora a tomar estes apontamentos e que já não tinha tempo para escrever o tal post sobre a reunião dos blogueiros apoiantes dos grandes comunicadores Kim Jong-Il e Lukashenko.
Vento cigano
Nascido gadjo, sedentário e de classe média, educado num universo provinciano e preconceituoso, é natural que tenha sido mais um daqueles rapazes cuja imaginação aceitou e manteve durante bastante tempo a representação romantizada e misteriosa, profundamente idealizada e fictícia, do cigano. Só recentemente e por acaso – a partir de uma referência de Kenneth White – li The Scholar Gipsy¸ de Matthew Arnold, onde o poeta inglês oitocentista que foi também inspector das escolas evoca o estudante oxfordiano que «partiu a aprender a sabedoria dos ciganos, / errando pelo mundo com esse povo indomado», mas colhi cedo um pouco do impacto da cultura livresca europeia, de Dumas pai a (muito mais tarde) Lorca, de Pushkin (apenas em fragmentos) ao Merimée da Carmen que depois Bizet celebrou. E procurei algo mais em Os Ciganos de Portugal, o livro que Adolfo Coelho publicou em 1892, hoje ultrapassado e esquecido. E na música de Liszt ou depois na de Camarón de la Isla. Sempre, sem a percepção certa de o fazer, a resistência ao modelo cultural que estranhava a experiência nómada, a perspectiva juvenil de noites ao redor da fogueira, a imagem fugitiva, entrevista numa velha tapeçaria, da cigana que não podia senão ser «bela e formosa» na exibição das gadelhas escuras e das arrecadas em oiro. Esse núcleo romântico foi-me esvaziado num instante pela intervenção radiante do materialismo dialéctico no seu molde mais inflexível, desprezando a especificidade cigana por ela escapar ao sentido incontornável da luta de classes e não participar na consagração do Trabalho como força edificadora da História. O desinteresse por quem se não fixava, por quem sobrevivia de expedientes mercantis, rejeitava toda a ideologia e se aproximava do lumpenproletariat, tornava-se um dos rostos de uma realidade que, do outro lado do combate social, dos ciganos reprovava a insubmissão, a ausência de polidez, a higiene pouco clara, a suposta promiscuidade.
De uma e de outra destas recusas resultaram as actuais perspectivas que apontam para o cigano como desejavelmente «integrado», na verdade aculturado, ou então merecidamente segregado e punido como ser socialmente irrecuperável. Uma e outra das atitudes excluindo a abordagem de temas centrais – o papel simultaneamente fulcral e subalterno da mulher, a relação com a propriedade e a exaustão de bens perecíveis, a «estranha» liberdade pedagógica praticada com as suas crianças – que a maior parte dos ciganos nos coloca diante dos olhos e com a qual não sabemos lidar. A política segregacionista – que Vasco Pulido Valente apontou em crónica recente do Público a propósito de uma escola situada perto de Barcelos, uma entre outras, que põe os meninos ciganos, isolados dos outros, a terem aulas dentro de um contentor – não é mais do que um sinal particularmente sórdido do nosso medo em revertemos às nossas próprias origens e em reconhecermos a nostalgia dos devaneios perdidos. De voltarmos ao tempo no qual também nós fomos nómadas, ou aos sonhos de infância nos quais acreditávamos ser possível viver do vento, sem trabalhar, numa carroça pela estrada fora.
Che Guevara – um rosto sem retoques

Regresso a um texto que em 2002 publiquei na revista História a propósito de uma então recém-editada biografia do argentino. Uma das poucas disponíveis no mercado que não é apenas «pró» ou «contra».
Retomada em imagens que povoam jornais e documentários, nos muros das cidades, na decoração de espaços privados, em t-shirts e tatuagens, a expressão decidida do Che Guevara, captada há mais de trinta anos pelo fotógrafo Alberto Korda, continua a povoar a nossa imaginação. Como sinal da memória, insígnia de utopias ou insólito produto pronto-a-usar. Omissões várias e umas tantas mentiras, somadas a um certo oportunismo político e comercial – em alguns países vende-se até uma bebida gaseificada, a Revolution Soda, com o rosto do Che estampado como logótipo – têm adensado a carga simbólica que envolve um dos heróis e dos ícones do século que passou. Vale a pena desvendar o mito na sua origem.
Omid
Morreu na quarta-feira passada Omid Mir Sayafi, um blogger iraniano de 25 anos condenado a 30 meses de prisão por insultos ao ayatollah Ali Khamenei. O advogado de Omid – que pouco antes de ser detido definia o seu blogue como de natureza essencialmente cultural – disse à AFP que «ainda não existem documentos oficiais, mas os responsáveis da prisão afirmam que Mir Sayafi se terá suicidado». O governo de Teerão lançou entretanto uma campanha contra bloggers e internautas, acusados de escreverem textos hostis às autoridades e aos valores islâmicos. E os Guardas da Revolução anunciaram em comunicado uma intervenção enérgica para «desmantelar os mais diversos sites anti-religiosos, obscenos e contra-revolucionários», que publicam «artigos contra o regime islâmico», «os valores religiosos» e «histórias sexuais». Claro que os EUA são apontados como os primeiros responsáveis pela iniciativa dos internautas «degenerados», combatidos sem piedade pelos heróicos funcionários do Centro de Delitos de Internet dos Guardas da Revolução. Nem outra coisa seria de esperar.
Coimbra radical
Só Deus sabe como aprecio durante 60 minutos em cada ano a música do Conjunto Diapasão (em particular a voz de veludo martelado do vocalista Marante), como abomino música sertaneja (os empregados do Gauchão também conhecem este ódio pessoal) e como experimento sentimentos assassinos quando sou forçado a ouvir a vozearia ululante acompanhada de ferrinhos e acordeão que o Estado Novo nos doou como «folclore do bom». Mas ouvir tudo isso em sistema random, a partir de colunas potentíssimas e mais altas que o Pau Gasol instaladas no hipocentro da universidade mais antiga do país, ao mesmo tempo me esforço até ao limite por conseguir dar uma aula debaixo de tal barragem de som, é experiência que tem qualquer coisa de transcendental. Aconteceu ontem à tarde e acabei a aula a falar da grande Maria do Carmo Miranda da Cunha, mais conhecida como Carmen Miranda.
O enigma do monóculo
Lendo o fascículo de hoje de «As Grandes Operações da Guerra Colonial», saído com mais um volume da colecção Os Anos da Guerra Colonial que o Correio da Manhã está a publicar (e que pode ser adquirido sem o jornal), resolvo um enigma que me acompanha desde os anos de vida de caserna. Qualquer coisa que intrigava um grande número de militares nos anos da guerra e nos primeiros tempos da democracia e os trazia em suspenso: serviria ou não o monóculo de António de Spínola para corrigir a visão do olho direito? A solução é oferecida pelo testemunho de um ex-furriel que em 1962 transportou de Lisboa para Bissau uma pequena caixa de madeira destinada ao então Coronel de Cavalaria, diante da qual foi incapaz de resistir à tentação de espreitar aquilo que ela trazia lá dentro: uma colecção de seis reluzentes monóculos sem qualquer graduação.
Eu vejo-te
Degustar pizza em Pyongyang
«Os cozinheiros italianos foram levados para uma base militar de alta segurança onde perceberam que a missão seria ensinar três oficiais do exército a confeccionar pizzas». «O nosso povo também tem de ter acesso a esta comida conhecida internacionalmente», disse na ocasião ao jornal japonês Chonson Simbo o gerente do restaurante, citando o próprio Kim Jong-Il. Para saber mais, siga-se a notícia do Público online sobre a abertura de uma pizzaria em Pyongyang.
Entre comunismo e nacionalismo
Adaptação do original publicado na revista LER de Fevereiro
Vencedor do Prémio de História Contemporânea Victor de Sá de 2008, eis um estudo, resultante da dissertação de doutoramento do autor, que propõe uma releitura crítica da história do PCP entre o Segundo Pós-Guerra e o 25 de Abril e lança ao mesmo tempo um olhar renovado sobre o trajecto da resistência política e cultural ao Estado Novo. A tese central de Comunismo e Nacionalismo em Portugal define a temática nacionalista como uma das preocupações políticas fulcrais da direcção do PCP a partir do final da Segunda Guerra Mundial, distribuindo-se pelas quatro partes da obra. As duas primeiras seguem mais de perto os documentos políticos partidários ou aqueles que com eles confluem, ocupando-se da construção do «comunismo nacionalista» na sua relação com o processo de reorganização dos comunistas portugueses encetado em 1941, e do discurso político do PCP na sua ligação à realidade do país e às grandes linhas teóricas sobre a «questão nacional» que resultaram da experiência histórica da União Soviética e do movimento comunista internacional. As outras duas partes, com um carácter mais abertamente prospectivo, acompanham os processos de nacionalização da cultura enunciados por diversos intelectuais comunistas ou simpatizantes, e discutem as experiências de nacionalização e de reescrita da história pátria tomadas em mãos por alguns deles. Nos últimos capítulos o autor aproxima-se, de uma forma particularmente estimulante, dos instrumentos de configuração do «ideal comunista» na sua ligação com a actividade militante internacionalista de muitos intelectuais.
O valor deste livro, escrito sempre de uma forma atractiva, marcada por uma grande frescura da linguagem deslocada do previsível jargão que tem sido o principal responsável pelo divórcio entre o leitor comum e a generalidade da produção historiográfica portuguesa, não pode deixar de estar vinculado a uma peculiaridade do seu autor. José Neves é um historiador ainda jovem, consagrado a uma investigação intensa já sem incorporar na experiência pessoal as marcas de muitas de algumas das duras polémicas que envolveram as gerações anteriores – as quais naturalmente conhece, mas sem com elas conservar um vínculo de dependência inevitável em quem as acompanhou mais de perto -, o que desde logo confere ao seu trabalho um benéfico distanciamento crítico. A metodologia adoptada, jogando constantemente e sem aviso prévio na abordagem sincrónica do movimento e na leitura diacrónica dos seus episódios, define também uma marca de originalidade, destacando o carácter frequentemente lento das mudanças operadas no domínio da convicção, mas também os instantes de viragem nos quais algo de novo e de dinâmico claramente emerge.
Olhando o trajecto histórico do qual se ocupa, o historiador reconhece principalmente os momentos e as vias de «fragilização do modo proletário», pontuado por preocupações de uma natureza vincadamente internacionalista, mas também o simultâneo «revigoramento de um modo nacional», associado uma estratégia nacionalista aplicada à actividade dos comunistas e à daqueles que com as suas causas e a sua percepção do mundo foram confluindo. É pena que o próprio PCP não se esteja a servir deste livro e do trabalho do seu autor – como o deveria fazer também em relação à biografia de Álvaro Cunhal escrita por José Pacheco Pereira, bem diversa tanto na metodologia adoptada quanto nos objectivos propostos neste livro de José Neves – para reflectir interna e externamente, isto é, ao nível da formação dos militantes e na exposição pública do seu trajecto histórico e das suas propostas menos imediatistas, sobre o seu próprio destino. Talvez um dia.
José Neves, Comunismo e Nacionalismo em Portugal. Política, Cultura e História no Século XX. Tinta da China, 504 págs.
Primeiros anos
No novo volume da sua biografia de Estaline, Simon Sebag Montefiore recua no tempo para narrar a infância e a juventude do ditador desde os primeiros tempos em Gori, na Geórgia, até à intervenção destacada na tomada do poder pelos bolcheviques, percorrendo o envolvimento revolucionário que o levou a uma sucessão de prisões e de exílios, sempre razoavelmente benévolos, impostos pelo regime czarista. A abordagem proposta em O Jovem Estaline põe de parte as velhas hagiografias oficiais, que depuraram algumas das manchas de uma juventude violenta, criminosa e obscura, e recorre a documentos disponibilizados apenas a partir de 1991, o que permite construir uma narrativa detalhada, cheia de novidade e por vezes aliciante. Segue, porém, alguns caminhos que lhe reduzem o valor: desde logo um excesso de «psicologismo» adiantando afirmações sobre a construção da personalidade megalómana e psicopata de Estaline que aqui não passam de hipóteses; depois, uma fixação excessiva na descrição de episódios rocambolescos, alguns deles envolvendo o lado mulherengo do georgiano, que poderiam servir um argumento de comédia mas desviam a atenção da fundamentação interpretativa; e, por fim, a construção de um retrato íntimo através de estratégias, próprias das utilizadas nas biografias ficcionadas, que uma obra de natureza assumidamente historiográfica deve usar com parcimónia. [Trad. de Victor Antunes, Manuela Novais Santos e Maria José Figueiredo. Alêtheia, 512 págs. Originalmente na LER de Fevereiro.]
N’Gola ritmo
A propósito da visita a Portugal de José Eduardo dos Santos, presidente do MPLA e chefe supremo da clique cleptocrática que neste momento dirige um grande país onde a democracia, a transparência e o respeito pelos menos protegidos tardam em chegar, parece-me aceitável a posição do governo recebendo educadamente o chefe de Estado angolano e tratando com ele de uma forma normal. Afinal, com mais de 100.000 portugueses a trabalharem em Angola e muitas centenas de empresas e instituições envolvidas em negócios e projectos, com a grande tradição cultural e (assumidamente) histórica partilhada pelos dois países, seria de uma irresponsabilidade total insistir no carácter não-democrático e corrupto do poder instalado em Luanda voltando as costas aos seus circunstanciais porta-vozes. Mas é também justa a posição do Bloco de Esquerda ao recusar participar na parte teatral da visita: não estando no poder, o Bloco pode assumir uma atitude de princípio que exprime, tenho a certeza, aquilo que a maioria dos portugueses verdadeiramente pensa. Não faz sentido, pois, a rábula de Vital Moreira referindo-se à atitude frontal dos bloquistas como «falta de sentido de Estado». Nem, uma vez mais, o silêncio conivente do PCP, que não precisa de mostrar «sentido de Estado» mas ainda pensa o MPLA como uma espécie de «partido-irmão» subtropical que é necessário proteger.
João Mesquita
Há meses que o não via e não sabia que estava doente. Muito doente, por sinal. Estava prevista uma conversa por um destes dias por causa de um artigo a sair na Rua Larga e contava telefonar-lhe durante esta semana para acertarmos pormenores. Soube agora, há uma hora e picos atrás, por uma mensagem de e-mail, que o João Mesquita morreu hoje de manhã. Com ele foi-se também uma pessoa generosa, afável sem servilismo, e um dos já raros combatentes de um jornalismo intransigente e de causas. De esquerda, sim. Vai fazer cá muita falta o João.
Contra a censura na Internet
Hoje, 12 de Março, é o Dia Mundial contra a Cibercensura. Segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras, os 12 Inimigos da Internet – Arábia Saudita, Birmânia, China, Coreia do Norte, Cuba, Egipto, Irão, Síria, Tunísia, Turquestão, Uzbequistão e Vietname (a Bielorrússia, o Zimbabwe, e outros que tal, estão à porta para entrarem neste triste clube) – «transformaram a sua Internet numa Intranet, procurando impedir as suas populações de acederem a informação online considerada ‘indesejável’». Pode descarregar aqui (em formato pdf) o relatório detalhado Internet Enemies de 2009.
Outubro em breve
A série Outubro, sobre a sequência, a apoteose e o impacto mundial da Revolução de 1917, que aqui foi publicada em dez episódios entre 2007 e 2008, sairá em breve em livro homónimo numa versão bastante revista e um pouco aumentada. A edição será da Angelus Novus. Serão divulgadas mais informações sobre o livro durante a 2a. quinzena de Abril. Entretanto os posts originais deixaram de estar disponíveis.
O meu lado geek
Em tempos discuti quase até à exaustão se a Apple era o Jardim das Delícias e a Microsoft tinha a face horrenda de Behemoth. Ou se as coisas se passavam rigorosamente ao contrário. Hoje, fora dos círculos que avaliam as grandes fortunas do mundo, parecem-me um tanto despropositadas as pequenas e médias batalhas dos adeptos de Mr. Jobs com os seguidores de Mr. Gates. Deixei-me de maniqueísmos: trago sempre comigo um Apple iPod Classic, daqueles de 120 Gigas, a luz dos meus dias que me ilumina as noites, mas aborrece-me a canonização do Apple iPhone que se encontra a decorrer. Já falei do assunto quando da saída da engenhoca. Agora limito-me a recomendar o meu fiel companheiro, que bate aos pontos, em praticamente tudo, o produto da Apple. É da HTC, responde por Touch HD, vem equipado com o sistema operativo Windows Mobile 6.1 e um ecrã de quase 4 polegadas. Mais agenda, telefone, álbum de imagens, processador de texto, folha de cálculo, e-mail, Internet (incluindo o Twitter), dá-me música, tem rádio e gravador de som, tira fotografias e regista vídeos, reproduz filmes, dá para ligar directamente ao YouTube, fala-me do estado do tempo em tempo real, tem GPS mais Google Maps, e por aí fora. Até fala sozinha, a coisa linda, vulcânica debaixo de uma capa de sobriedade. Uma só desvantagem, que eu não sou faccioso: a câmara de 5 Megapixéis não tem flash. Mas a do iPhone também não.