Benjamin, ele de novo, lembrou a distância, ou mesmo o conflito, que ocorre entre a obra de arte criada manualmente, envolta nessa aura que associou a um fulgor etéreo, imaterial, advindo da sua existência única, e aquela outra, vulgarizada, afastada da dimensão do sagrado porque sujeita a um processo de «reprodutibilidade técnica», de multiplicação mecânica, como aquela projectada, no seu tempo, principalmente pelo cinema e pela fotografia. O recuo da dimensão ritualizada da obra de arte, ou, se se preferir, a reconsideração do próprio conceito de aura, não possuíam contudo, para o filósofo, uma dimensão necessariamente negativa, como expressão de uma qualquer decadência, definindo antes a entrada num universo de tipo novo, mais preenchido e ruidoso, no qual se vai perdendo esse instante singular em que a obra de arte emerge do silêncio e apenas dialoga com o interlocutor privilegiado. Este jogo de oposições e proximidades entre o silêncio criador, acessível a uns quantos, e um ruído que aproxima a criação das pessoas comuns, põe-se de uma forma particularmente aguda no contexto actual de multiplicação da música gravada escutada em estado de solidão. (mais…)
De novo ao encontro de apontamentos guardados. Este de Abril de 2004.
Arendt associava a centelha da revolução ao momento no qual o fio do tempo «começa subitamente de novo», revelando «uma história inteiramente nova, uma história nunca antes conhecida ou contada.» Entendida desta maneira, ela chispa obrigatoriamente nos momentos luminosos, inesperados, irrepetíveis, da experiência colectiva. O mesmo se pode aplicar à vida individual: não é revolucionário quem simplesmente o deseje, ou defenda um programa capaz de proclamar com décadas de antecipação a necessidade histórica da mudança mais abrupta. Mas sim aquele que, num infinito jogo de risco, é capaz de inscrever na sua vida, principalmente na parte da vida que partilha com os outros, instantes ruidosos, insurrectos, de afirmação do inesperado e do ainda não contado. O que consegue, como um dia escreveu Adorno, «contemplar todas as coisas como se elas se apresentassem sempre sob uma perspectiva redentora». Sabendo aproveitar o vento da urgência.
Conta Pierre Kalfon, um dos seus mais isentos biógrafos (poucos entre muitos), que numa tarde de Abril de 1964, durante uma breve passagem por Paris – a caminho da União Soviética em missão diplomática da então jovem revolução cubana – Ernesto Guevara almoçou numa pizzaria da Boulevard Saint-Michel. Passeou depois por meia hora pelas imediações do Collège de France e da Sorbonne, que muito antes conhecera de leituras e de filmes. Relatará o próprio «Che» que de repente, na Rue des Écoles, um sujeito reparou no seu inconfundível aspeto – barba rala e desalinhada, a boina preta estrelada e o dólman de caqui verde-oliva – comentando para a pessoa que o acompanhava: «Vê bem a lata daquele tipo ali, a imitar o Che Guevara!» Desde muito cedo a figura do argentino viu-se de facto colada ao ícone que excedia já o seu corpo físico, definindo-se muito para além do lugar datado e material que a História lhe reservou.
De início, e durante bastantes anos, ela ganhou vida no espectro das crenças insurretas que interpretavam as possibilidades de erguer um mundo melhor, mais igualitário e mais justo. Conquistado no entanto, se preciso fosse, a tiro de bazuca e de metralhadora. Esse é o vulto que alguns dos nossos contemporâneos, com sentido de missão ou necessidade de ratificação tribal, ainda transportam consigo, como vestígio de uma real ou imaginada insolência, em medalhas, autocolantes e t-shirts. Quase sem de tal se aperceberem, rompem porém as configurações da rebeldia e do desespero, associando-as a algo de mais amplo que integra o conjunto de sinais dos quais se servem habitualmente os imaginários de fuga. Aproximando-se do logótipo dos velhos cigarros Camel, do mapa irregular de uma ilha das Caraíbas gravado na publicidade colorida de uma marca de rum, das capas tentadoras dos livros de Bruce Chatwin ou de Paul Theroux. Para os quais olhamos sem grandes conjeturas, projetando a ideia da viagem, da partida, associada a uma vaga e errática noção de liberdade.
Percorrendo os arquivos de um dos meus primeiros blogues, dou de caras com este post-proposta datado de Dezembro de 2003. Pura arqueologia, pois.
O poeta, porque transporta consigo a liberdade, é um viajante. Longe de se perder nas esferas menores do reino do efémero, cruza a mais antiga memória com impaciência juvenil diante do não visto e do que está por cumprir. Crivado de passados, organiza emoções e renova desejos. Combina experiência e invenção. É moderno na medida do seu arcaísmo. É o próprio tempo. Por isso todos os ministérios, direcções-gerais, gabinetes jurídicos, administrações, conselhos directivos, estados-maiores, deverão no futuro integrar um núcleo avançado de poetas. Para que jamais percam o sentido do importante, do realmente importante, que é o transitório.
Uma possibilidade maiakovskiana que não pesaria muito no Orçamento Geral do Estado.
Enquanto bebia um café na esplanada interior de um centro comercial, reparei num daqueles quiosques dedicados à compra instantânea de ouro usado que se têm multiplicado às centenas por cidades e vilas. Ainda há poucos anos, quando alguém procurava negociar uma peça no circuito das ourivesarias, era habitual levantarem-lhe uma série de obstáculos, na presunção de que quem vendia poderia ser um viciado no jogo entretido a dissipar o património familiar, ou mesmo um vulgar ladrão à procura de receptador. Agora vemos homens e mulheres com um ar desgostoso e invariavelmente envergonhado mas com aquele aspecto limpo e cuidado de quem ainda há pouco tinha dinheiro suficiente, esperando a sua vez junto a pequenos balcões públicos, expostos sem piedade aos olhares dos outros, para se desfazerem do fio, do medalhão, das libras «da rainha Vitória», do pesado relógio de bolso, que ao longo de gerações os seus antepassados compraram com esforço, exibiram com orgulho e guardaram para os que haviam de vir. «Vão-se os anéis, fiquem os dedos», pensarão como autoconsolo no meio da aflição e do pessimismo. O corte profundo com o passado e com aquilo que em tempos se presumia serem os «valores seguros» da prosperidade é também uma consequência desta espiral do empobrecimento que já não se observa apenas nos bairros periféricos e nos concelhos decadentes do interior.
1. A vitória da direita – ou do centro-direita, como preferem os benévolos – era esperada, mas foi bem mais ampla que o previsto. É verdade que a abstenção, somada aos votos brancos e nulos, também foi elevada, mas, queira-se ou não, e se contarmos também com os votos no PS, os resultados referendam a manifesta convicção da grande maioria dos eleitores de que as medidas de austeridade impostas do exterior são péssimas mas inevitáveis.
2. Ao contrário, a esquerda que se autoproclama consequente foi incapaz de provar o inverso e de apresentar propostas nas quais uma parte substancial dos cidadãos pudesse confiar como algo de realmente possível, e não apenas de vagamente desejável. Permanecem quase sempre ideias imprecisas sobre futuros melhores sem a apresentação de programas concretos – não a de meros cadernos reivindicativos – e de alianças no terreno capazes de produzirem uma governabilidade à esquerda.
3. A CDU ganhou pouco mas segurou os seus eternos 7 ou 8%. No entanto, festeja com grande alarido o facto de ter «mais força». Às custas do Bloco de Esquerda, como parece evidente. É preciso dizer mais alguma coisa sobre o grande futuro desse indefinido projecto de um «governo patriótico e de esquerda» hegemonizado pelo Partido Comunista Português que ninguém percebe o que seja, como se pode construir e o que nos propõe?
4. O Bloco agiu muito mal na gestão política da crise financeira e no ensaio «a pedido» de uma aliança com o PCP, e isso pesou na deslocação de voto de muitos dos seus agora ex-eleitores. Mas, acima de tudo, diante da alternativa entre um «socialismo verdadeiro» e um «comunismo moderno», tombou para o segundo lado, quando o seu campo natural e o espaço por onde poderia e poderá crescer e afirmar a sua identidade é e será sempre o primeiro.
5. A alternativa futura passará sempre por um PS pós-Sócrates renovado, que corte assumidamente com o modelo neoliberal e erradique tanto quanto possível o caciquismo que o consome e lhe mina o prestígio. Em convergência com um Bloco que se decida entre as duas vias e alije de vez o fardo tardo-leninista que ainda carrega, assumindo o seu papel de partido democrático e europeu, e, ao mesmo tempo, regressando quando necessário à «política de causas» que lhe deu identidade. E com um PCP que perca de vez a cisma da hegemonia «da classe operária», rompendo também com o projecto estatista e totalitário do qual não se viu ainda livre. Isto custa e demora, mas não é impossível, devendo todos mostrar serem capazes de transigir em algumas coisas. Não para unir – esse é um princípio errado e perigoso, com péssimas provas dadas – mas sim para aproximar.
6. A luta social não pode abrandar, mas no plano político e organizativo é melhor a esquerda à esquerda lamber as feridas, reflectir sobre o acidente sem pôr a culpa sobre os ombros dos eleitores mal-agradecidos – como já hoje vi fazer –, e começar a tratar da cura, do que cair na tentação da fuga para a frente, prego a fundo e fé «na luta», isolando-se no plano social e dilatando o tempo de espera para ser possível a construção de uma alternativa de governo capaz, credível e mobilizadora.
Adenda: Votei neste domingo – como o tenho feito desde a sua fundação, mas admito que desta vez com algumas reservas – no Bloco de Esquerda. Daí também a minha preocupação. Regressarei mais desenvolvidamente a alguns destes tópicos.
É cada vez maior o número de trabalhos sobre a história recente – a nossa e a dos outros – que recorrem ao depoimento oral como fonte absolutamente decisiva. A tendência não é nova, uma vez que se tornou patente já em meados do século XX quando a irrupção prática e metodológica da abordagem histórica do presente forçou a uma revisão do pressuposto, ainda dominante entre as duas primeiras gerações da Escola dos Annales, segundo o qual um corte com o passado seria garantia essencial para se chegar a um conhecimento seguro do passado. Esta legitimação da oralidade não foi, de início, nada consensual entre a comunidade dos historiadores, para quem os testemunhos, materializados em entrevistas necessariamente mediadas pelo investigador, eram por vezes considerados fantasiosos e tomados como factor negativo de «subjectivação do passado». Jogando um papel decisivo neste processo, os primeiros estudos sobre a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto cedo mostraram que, ao contrário, esse instrumento representa uma forma de recuperação do vivido que nenhum outro documento, seja ele um diário, um relatório, um livro ou uma imagem, está em condições de colocar à disposição dos investigadores e dos leitores. (mais…)
Uma ideia disseminada considera que o percurso dos feminismos, ou pelo menos o da sua presença visível e com impacto público, é em Portugal relativamente recente, circunscrito às duas últimas décadas do regime democrático. Feminismos – Percursos e desafios, um livro de Manuela Tavares publicado há poucos meses, vem provar o equívoco desse juízo injusto e apressado, mostrando, precisamente em sentido contrário, que o rasto dos movimentos promotores dos direitos das mulheres é afinal razoavelmente dilatado e tem uma agenda própria. Duas das razões que determinaram esse erro de perspectiva são anotadas logo no início da obra: de um lado, a possante influência do regime autoritário do Estado Novo, vinculado a «uma ideologia de submissão das mulheres» que silenciou as ténues mas reais posições de natureza emancipatória projectadas durante a Primeira República; do outro, o peso do «pensamento dogmático das esquerdas políticas», que não souberam «captar a dimensão plural dos feminismos» e aquilo a que a autora chama «as contradições de género na sociedade», sistematicamente subsumidas na lógica da unidade na acção. (mais…)
sei que não são todos iguais, mas a excepção faz a regra. não gosto, não gosto mesmo, de políticos em campanha. por muito honestos que sejam ou aparentem ser, nas suas propostas como nas suas vidas, existe sempre um sorriso a mais, uma palmada nas costas que parece supérflua, um beijinho claramente excedentário, um panfleto que se impõe a contragosto, um cheiro, ainda que ténue, a axila e a demagogia do qual bem podemos prescindir. pior ainda é o espectáculo dado por muitos daqueles que os recebem lá na terra ou no bairro. com banda trajada a preceito, criteriosas palavras de circunstância e uma incontida alegria artificial, lá estão eles nas praças e nas ruas à espera do audi, vestidos de varinas, de bombeiros, de moços-forcados, de noivas minhotas, de judocas, de meio-maratonistas, de zés-pereiras, de mulheres partidárias, de jovens jotas, de povo-povo, com lenço e boné a condizer com a cor da bandeira. e há depois os mega-almoços, com cantores entre o proto-pimba e a pós-intervenção, copos de plástico atestados de sumol de ananás, croquetes marados, feijoadas mete-nojo, azeitonas manhosas e pães com manteiga que todos enfiam na boca atulhada enquanto se tratam por companheiros, por camaradas, por ó pá, ó doutor, ó engenheiro, olhe qu’agora é que vai ser. as campanhas, digo-vos eu, deviam ser interditas a grandes grupos. afinal sempre há a televisão, a internet, os jornais, a caixa do correio, a sessão de esclarecimento, os outdoors identificados, ou o contacto porta-a-porta como o fazem os mórmones, as testemunhas de jeová, os angariadores da cabo-tv e os mordomos das festas da padroeira. deveria criar-se um serviço grátis de desintoxicação eleitoral. e uma ponte aérea para que todos nós, os democratas do ano inteiro, pudéssemos emigrar nestas alturas para uma estância termal nas ilhas faroë. retornando, claro está, a tempo de votar em quem merece. ou quase.
Parece uma extravagância e provavelmente é-o, mas comecei há uns anos a coleccionar palavras a caírem em desuso. Não me refiro às de um arcaísmo patente, já só conservadas em livros, jornais e cartas antigas, mas sim àquelas que ainda são utilizadas e das quais se servem apenas algumas pessoas das gerações mais velhas, membros de determinados agrupamentos políticos ou cidadãos socialmente agregados por certas práticas e rituais. Apenas um exemplo: a palavra «larápio», à qual ninguém recorre agora quando quer nomear o ladrão, pouco me interessa, mas «gatuno», que já só aparece nas imprecações dos estádios de futebol – naturalmente dirigidas ao infeliz árbitro da partida e intercaladas com ofensas à sua progenitora – ou no discurso político da direita e da esquerda mais arcaicas, é um must. Talvez este seja um tique profissional, forçado que estou a seguir, se não se quiser tornar-me críptico para quem me ouve em aulas e seminários, a mudança cada vez mais veloz e ziguezagueante dos vocábulos e dos seus sentidos.
Entretanto iniciei outra colecção. Desta vez a dos gestos que estão a evaporar-se ou deixámos de encontrar no dia-a-dia deste lado de cá do hemisfério norte. A primeira peça da colecção retirei-a de um filme dos anos 50, a preto e branco, visionado ao acaso no YouTube. Ela documenta o hábito cada vez mais proscrito de fumar fazendo desse acto uma parte importante do jogo social: aquele modo único, pouco higiénico mas que funcionava como marca de à-vontade, de estilo, por vezes de provocação, de apagar o cigarro, dentro de um café, no hall do cinema ou numa repartição pública, atirando-o ainda incandescente para o chão e esmagando-o sem piedade com o tacão ou a sola do sapato. Uma marca de macho ou de «mulher da vida» que, se repararem, quase desapareceu do nosso horizonte. Tal como engraxar os sapatos em público, cuspir para o lado sem qualquer aviso, usar um pente no bolso posterior das calças e servir-se dele com regularidade, limpar os ouvidos com o mindinho ou tamborilar com os dedos em cima do balcão do bar enquanto se espera pela cerveja gelada. Espera-me pois uma missão na arqueologia do contemporâneo. Pouco urgente, mas uma missão.
Como gosto de filmes de «entretenimento, acção, aventura» e tenho um especial carinho pela figura ficcional do pirata – bem mais pela ficcional do que pela histórica, embora também possamos reconhecer piratas dos verdadeiros com um trajecto assombroso – fui ver «Por Estranhas Marés», o quarto filme da série O Pirata das Caraíbas, desta vez dirigido por Bob Marshall. Resultado: uma desilusão profunda, uma irritante experiência de tédio e a sensação pós-visionamento de 10 euros e 137 minutos de vida esbanjados. A movimentação dos actores, puramente coreográfica, tem algo de jogo para PlayStation, e provavelmente será essa mesmo a ideia, já que deparei, por comparação com os anteriores episódios, com uma clara infantilização do argumento, dos personagens e dos diálogos. Estes são agora deploráveis, primários, com tudo «bem explicadinho», prontos para um público pouco exigente e não preparado para subtilezas e citações. As sequências amorosas – as do casto missionário com a sereia ingénua, ou as que envolvem Johnny «Sparrow» Depp, desta vez com os maneirismos do personagem exagerados até à caricatura, e uma Penélope Cruz que aqui mais parece uma esforçada actriz de teatro amador – são de um bocejo indescritível. E a piorar a experiência, um inquietante sinal dos tempos: como é possível fazer um filme de piratas sem tabaco e quase sem álcool? Salva-se a intervenção da única personagem que conserva uma certa dignidade «pirática» e que é desde o início da série a minha favorita. Sim, refiro-me ao imprevisível, bem-humorado, e tão canalha quanto generoso, Capitão Hector Barbossa, de novo interpretado por Geoffrey Rush, que é de longe o melhor actor de todo o casting. Se querem mesmo ver o filme, então abstraiam-se do omnipresente Jack Sparrow – agora tão enjoativo quanto as pipocas do espectador da fila da frente – e sigam as pisadas do «perna de pau».
Três curtos parágrafos sobre o «caso» da pintura das Escadas Monumentais da Universidade de Coimbra com propaganda eleitoral do PCP-CDU e da manifestação canalha e desproporcionada de uns quantos estudantes universitários, de negro trajados e com o estranho apoio da direcção da Associação Académica, que para a contestar se lhe seguiu.
Qualquer pessoa com alguma sensibilidade estética e sem uma perspectiva politicamente utilitarista que realmente tenha visto a «obra» – já ali projectada, aliás, noutras ocasiões eleitorais – sabe que não é um primor visual. Apesar de ser absolutamente legal, tal como a CNE acaba de confirmar, seria no entanto escusada, uma vez que se trata de propaganda algo agressiva, que com aquelas proporções é ecologicamente desajustada ao local. Não importa quem a realizou: se fosse o Bloco de Esquerda ou o CDS, a situação seria rigorosamente a mesma. Falamos não de um mural mas de uma pintura sobre a via pública, num local de passagem inserido na malha urbana da Universidade, onde todos os dias circulam obrigatoriamente muitos milhares de pessoas de todas as tendências ou opiniões, que não deveria sofrer intervenções desta natureza. Aliás, também não me agradaram as criações pseudo-artísticas e de diferentes origens que ali foram realizadas noutras alturas. Em causa está sobretudo o facto de se tornarem por vezes tão fortes, tão impositivas, tão «gritadas», que impedem os cidadãos de cruzarem a área de forma clean, fazendo a sua vida normal na fruição de uma cidade já de si bastante martirizada no equilíbrio das formas e dos espaços.
Todavia, a posição tomada pelo grupo de estudantes, que se serviu do facto para boicotar um comício do PCP-CDU, já me parece oportunista e absolutamente condenável. Foi, aliás, feita não em tom de crítica, mas sim sob a forma de gritos e de impropérios ofensivos, fazendo com que se perdesse a razão que poderia ser reconhecida a qualquer reparo. Já a posição da organização em causa, ou de alguns dos seus defensores, também foi exacerbada e num desajustado mas recorrente estilo «vitimizante». A mim, o que aconteceu parece antes uma mera expressão de parvoíce e de incultura democrática, vinda aliás de núcleos dessa estúrdia estudantil que nos anos oitenta os próprios estudantes da JCP, antecessores dos actuais, talvez sem o querer ajudaram a recriar. Mas essa é outra história, que fica para melhor altura.
Circulam ventos contraditórios. Em sociedades bloqueadas e em estado crítico como aquela em que vivemos, a indiferença e a indignação crescem de forma rápida e significativa. Nada garante no entanto que elas não possam encontrar-se. E que desse encontro não resulte, como já aconteceu no passado, algo que pouco ou nada tenha de bom.
A multiplicação das manifestações, dos movimentos, dos blogues, das petições, dos acampamentos em praças, dos grupos activos nas redes sociais, engana um pouco. Ela congrega um grande número de pessoas, sem dúvida. E aquilo que estas fazem é importante, tem quase sempre motivos fortes e compreensíveis, mas nem por isso elas deixam de constituir uma imensa minoria. À lógica da indignação, ainda há pouco gritada pelo veterano Stéphane Hessel, sobrepõe-se então a dinâmica negativa da indiferença, associada ao desânimo e por vezes à depressão. Basta sair do círculo activista e falar com jovens universitários, para ver como a generalidade permanece desinteressada, se não ignorante, das dinâmicas da mudança e das possibilidades de redenção. A energia negra do neoliberalismo anestesiou as consciências, enquanto uma democracia pobre instalou a convicção de que cada um se deve procurar desembaraçar por si, de que as dinâmicas solidárias são um mal ou mesmo um perigo, de que a política é uma selva povoada de oportunistas e de que é impossível fazer alguma coisa contra isso. (mais…)
Num artigo da Wired de Junho que saiu ontem, o autor, Brendan Koerner, dialoga com um leitor, real ou forjado, que lhe conta ter sido repreendido por um estranho pelo facto de usar o seu iPad num autocarro nova-iorquino, o que o transformaria, de acordo com as palavras um tanto irritadas desse estranho, em alvo potencial, e provavelmente justificado, de um assalto ou mesmo de uma tentativa de homicídio. Nem tanto pelo valor monetário do aparelho, que ainda assim seria fácil vender numa rua menos iluminada por quaisquer 500 dólares, mas antes pelo que representava para o potencial agressor a exibição de uma tecnologia que significa conhecimento, mobilidade e acesso a universos de comunicação infinitos e desejáveis. A repreensão parece fazer sentido, tal como o perigo invocado se afigura verdadeiro, remetendo-nos para um território de violência, urbana e selvagem, no qual pode tornar-se difícil gerir a própria integridade física.
Utilizador regular e intensivo dos aparelhos de comunicação e lazer da tríade i da Apple, percebo o perigo e o mal-estar que esse uso pode causar aos outros. Apesar deles me servirem como instrumentos de trabalho, já me tenho inibido de usar em público o iPad ou o iPhone – o iTunes, o único exclusivamente voltado para o lazer, é o mais humilde de todos e passa facilmente por tecnologia barata – justamente por perceber o seu uso como uma potencial agressão aos cidadãos com quem partilho a sala de espera do centro de saúde ou a gare da estação de comboios. Aquilo que me preocupa, porém, não é ocorrência ocasional da situação, na expectativa desta poder ser alterada pela melhoria das condições de vida e de acesso à tecnologia por parte da maioria das pessoas. É antes a consciência de que, no tempo que agora passa, o fosso entre os que têm muito ou o suficiente (em dinheiro, informação, capacidade para comunicar, direito aos sonhos) e os que nada disso podem ter ou sequer desejar, tende a aumentar, produzindo situações de conflito. Criar-se-á então, numa situação extrema, a necessidade de, para usarmos um aparelho que serve para nos ligarmos aos outros, precisarmos de isolamento em ambientes reservados. Já é assim em Calcutá, no Rio ou em Lima. Provavelmente, em breve assim será aqui também.
Vamos lá a uma cena um bocado retro. O ano era 1968, com toda a certeza. Do mês não me recordo bem, mas sei que tinha faltado às aulas para ir à matinée. Como já estava um bocado de calor, podemos supor que era Maio. Soa bem contar que isto aconteceu, e provavelmente aconteceu, no final de uma tarde de Maio. De 68. Um casal de namorados, que se tinha sentado umas filas à frente, não aguentara as desafinações de Bob Dylan em Don’t Look Back e fora-se embora a resmungar em surdina. O projeccionista escondia-se no seu cubículo, protegido pelo foco de luz. O arrumador desaparecera. E enquanto em Paris se erguiam barricadas e se marchava pelas ruas aos gritos – «Ce-n’est-q’un-début-continuons-le-combat!» –, fiquei absolutamente só, espectador único na sala escura de um cinema de província malcheiroso e desconfortável, a imaginar mundos possíveis. No Verão, estava decidido, iria estoirar as economias a comprar uma guitarra e uma harmónica. E mudaria de vida. Eu tinha quinze anos e Robert Allen Zimmerman, o rapaz do ecrã, raios o partam, deus o abençoe, faz hoje 70.
O governo soviético da década de 1920 foi o primeiro da História a deter um poder de tal forma pleno e colossal que lhe permitiu conceber de raiz redes de grandes bairros e até cidades inteiras, determinando rigorosamente o número, a dimensão e o desenho dos edifícios e das ruas, bem como a taxa de ocupação em cada área ou estrutura. Podia também escolher sem constrangimentos onde construir, como projectar o crescimento, como articular os novos espaços dentro de um equilíbrio idealizado entre a cidade e o campo, chegando a conceber e tipificar o aspecto, a exacta localização e mesmo o pormenorizado funcionamento das fábricas, dos escritórios, das escolas, dos hospitais, dos armazéns e dos edifícios destinados à habitação. O planeamento urbano num Estado todo ele planificado – que foi aquilo em que a Rússia soviética se transformou a partir de 1928 com a entrada em funcionamento do 1º plano quinquenal – não era uma ocupação menor; tratava-se, de facto, de organizar em larga escala e a partir da base, num esforço de design macro-comunitário, todo um universo que se pretendia radicalmente novo e profundamente dinâmico. Diante de tal projecto, como não compreender o entusiasmo dos quadros políticos, engenheiros, arquitectos, economistas ou geógrafos a quem foi atribuída essa tarefa gigantesca? (mais…)
Benghazi, Maio de 2011 | Fotografia de Rodrigo Abd
O título poderia ser: «No século 21 a guerra também é estilo». A reverberação mediática da imagem induz este efeito. Estranho, paradoxal, mas apenas na aparência.