Noventa dias

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Sempre me pareceu, ainda o executivo de José Sócrates palmilhava alegre e impante as estradas de Portugal, que o ramerrão de certa esquerda de acordo com o qual PS e PSD são «as duas caras da mesma moeda», não sendo inteiramente falso em termos de macropolítica, projetava um enorme equívoco. Queiramos ou não, foi esta perceção, ainda que expressa de forma ligeiramente mais elaborada, que levou parte dessa esquerda a assinar de cruz a condenação à morte do anterior governo, projetando, numa atitude de contranatural cumplicidade, a mais do que previsível vitória da coligação que sustenta o atual. Foi insensata, pueril e profundamente danosa essa escolha. O governo do PS seguiu, é certo, caminhos ínvios e sinuosos, incapaz de escapar a pressões externas e ao manobrismo da parte mais insana do seu próprio aparelho, inábil para projetar uma política inteligente, independente e corajosa que permitisse buscar um caminho coerente, eficaz e socialmente aceitável no crítico contexto internacional que já se vinha desenhando. Mas bastaram noventa dias de governo PSD-CDS para se notar a diferença, para bem pior, em áreas cruciais. Independentemente do que foi preciso e possível negociar com a troika, das condições em que o anterior governo rosa teria também de ceder em algumas coisas – e fá-lo-ia com toda a certeza –, este, azul-laranja, tem aproveitado para «ir mais longe». Um «mais longe» que não é senão, em áreas críticas como a saúde, o ensino e a solidariedade social, o tentar aplicar em poucos meses, numa lógica de irreversibilidade, o programa que desde 1974 a direita e o patronato mais mesquinho e ultramontano jamais foram capazes sequer de propor. Os trabalhadores, as mulheres, os jovens, os idosos, a classe média, a quem estão a empobrecer e a retirar às cegas direitos absolutamente fundamentais, a quem em nome de um «saneamento financeiro» injusto e sem horizonte estão a roubar a esperança, que o digam.

Nota escrita a posteriori: Este post teve algum feedback na bloga. A maior parte limita-se a registar ou a acentuar a «originalidade» da posição de alguém que foi e permanece muito crítico do PS dos anos de governo. Outra, porém, vê nele uma declaração de apoio a este partido, coisa que só pode «ler» quem de facto só lê aquilo que quer ou não sabe pensar se não a branco e vermelho. Ou então não entende que qualquer mudança política que venha a reconduzir a direita ao seu lugar passa por um debate entre os socialistas e um diálogo efectivamente paritário com eles. E por alterações nas atitudes de irredutibilidade política que roçam a teimosia. Em alguns casos, um pouco tristes, a estupidez.

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