A guerra às avessas

As imagens até há poucos dias chegadas do conflito na Líbia, mostrando o seu lado desregrado imposto pelo voluntarismo dos insurgentes, foram ampliadas agora que desceram à grande cidade. Em Tripoli, observamos no terreno uma espécie de manual ilustrado da forma de não fazer a guerra. A cadeia de comando é impercetível ou pelo menos irreconhecível, ultrapassada por uma horda que combina deserdados do sistema com uma massa de jovens que, afora o pormenor das armas, se apresentam ao combate como se estivessem a caminho do Festival do Sudoeste. Avançam desafiadores, arrogantes, mas mal armados, pior equipados e em completa desordem. Movimentam-se em campo aberto, usando bonés de basebol brancos ou coloridos detetáveis a olho nu pelos atiradores inimigos, t-shirts do Inter de Milão ou com a efígie do Che, keffyehs iguais aos da Fatah, corsários de marca e sandálias havaianas. Disparam em todas as direções, a qualquer momento, gastando munições sem um sentido claro ou objetivo percetível, sem precisar um alvo do qual não possuem quaisquer coordenadas, por vezes com companheiros na provável linha de tiro.

Nestas condições, é inevitável que uma grande parte das mortes e ferimentos seja autoinfligida. A ocupação do complexo de Bab Al-Aziziyah foi particularmente notável sob este aspeto, assistindo meio-mundo, em direto pela televisão, ao que parecia ser uma réplica de um imenso e ruidoso mercado árabe, com pessoas circulando aos magotes em todas as direções, conduzindo pickups em derrapagem como se fossem burros de carga em versão turbo, transportando objetos roubados, aqui e ali tentando mesmo vender algumas coisas aos jornalistas ocidentais. Mas se gente nestas condições pôde avançar desta maneira e conquistar terreno tão depressa, isso só pode querer dizer que, para além da importante ajuda militar da NATO, o regime de Khadaffi se encontrava ainda mais dividido e isolado das pessoas comuns do que poderíamos ingenuamente imaginar. Só neste cenário podemos entender que tenha sido possível chegar-se a um tal ponto de não-retorno, fazendo tábua rasa dos manuais mais elementares da arte da guerra clássica ou dos princípios consagrados da guerrilha urbana. Ainda assim é extraordinário não se ouvirem apelos ao bom-senso táctico e a uma atitude cívica que pouparia muitas vidas.

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