Responsabilidade ou servidão

Na Genealogia da Moral, Nietzsche evoca a «longa história das origens da responsabilidade» para mostrar como esta categoria foi impondo uma disciplina do dever que tornou previsível o comportamento humano. Sob esta perspectiva, ela pode traduzir uma forma de sujeição moral que reduz a margem de liberdade e transforma o indivíduo num ser conformista. No entanto, as coisas não precisam ser necessariamente assim: o «homem da mais vasta responsabilidade», capaz de construir a sua própria ética através da vontade, pode, para o filósofo, caminhar no sentido contrário, promovendo as suas próprias regras como um acto de liberdade. A dissociação entre responsabilidade e conformismo será aliás, décadas depois, particularmente sublinhada pelos existencialistas. Sartre projectou em 1946 a conhecida tirada a propósito do ser humano estar condenado a ser livre: «condenado porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre, porque uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer». Liberdade e responsabilidade aproximar-se-ão assim num núcleo ético que determinará o comportamento de muitos dos elementos de uma geração, a saída dos horrores da Segunda Grande Guerra e da experiência do «totalitarismo ideológico», à procura de um novo conceito de empenhamento cívico e de independência moral. Em The Burden of Responsability, significativamente traduzido na edição francesa por La Responsabilité des Intellectuels, um livro sobre a intervenção autónoma e a contracorrente de Blum, Camus e Aron, Tony Judt lembra a relação desta forma de entender a «escolha responsável» como uma atitude de compromisso de cada um para com os outros, mas também para consigo mesmo.

Obviamente, nada disto é tomado em linha de conta pelas figurinhas que, diante do espectáculo terrível dado pelas hordas de pré-adolescentes lançados em actos de violência nas cidades inglesas – e presumivelmente em outras, apenas à espera da oportunidade – vêm agora para os jornais e televisões falar de uma «responsabilidade» que para elas é sinónimo de obediência e de respeito unívoco pelos valores mais tradicionais proclamados no domínio da acção do Estado, da família, das igrejas ou das instituições militares. Que existe um crescente défice de responsabilização social na atitude de muitas pessoas jovens na sua relação com os outros pode até ser verdade. É inegável o alastramento de uma geração de cidadãos que nasceu e cresceu, em numerosos casos, a diferir constantemente para os outros – para os pais, a escola, o Estado, os patrões, no limite para a polícia e os tribunais – a gestão da sua própria vida. Mas este não é seguramente o caso da maioria esmagadora destes jovens em incontrolada fúria, os quais, obviamente, não nasceram em berço de ouro ou em famílias que de tanto os protegerem ou os ignorarem os transformaram em criaturas «irresponsáveis» cujo lugar é uma casa de correcção. As razões são aqui, com toda a certeza, muito mais complexas. É fácil, no entanto, vir agora com o ladainha da responsabilidade, ou da ausência dela, para legitimar atitudes autoritárias que muitos destes psicólogos sociais de pacotilha estão desejosos de ver colocadas em prática, se necessário com o uso da força, por aquelas que proclamam como as «instituições fundamentais da sociedade». Retomando a acepção sartreana, se «o homem é condenado a se fazer homem, a cada instante de sua vida, pelo conjunto das decisões que adopta no dia-a-dia», pode dizer-se que, contrariando-a, esta gente deseja que as coisas avancem no sentido inverso. Que o ser humano se «faça homem» tornando-se mudo e obediente. Este não pode ser o caminho para resolver o enorme problema que temos em mãos.

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