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Por onde andam?

imigrante

Enquanto este blogue passa por uns dias de pousio, retomo um apontamento já com dois anos.

As preocupações são constantes, muitas, em demasia. A maioria dos portugueses conta e reconta o que tem ou pode obter para conservar uma vida digna. Alguns já nem isso conseguem. O horizonte permanece instável, da cor negra da tempestade. E em épocas como esta, cada um, cada família, cada grupo, cada rua ou vilarejo, procura acima de tudo preservar o seu nicho de vida, a bolha de oxigénio que ainda lhe permite respirar um pouco e seguir em frente. Ainda assim, como é possível – se retirarmos as notícias doentias sobre eletricistas assassinos ou tristonhas mulheres da noite que aparecem nos tablóides – que os imigrantes, ou a inquietação com as suas precárias existências, tenham desaparecido por completo dos telejornais, das capas dos diários, das nossas preocupações? Por onde andam as suas vidas silenciosas e invisíveis?

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    Ainda «o lado brilhante da vida»

    Christopher Hitchens

    Não sei se existe alguma dissertação académica sobre o tema, mas é muito provável que sim, apesar dele requerer uma disposição psicológica especial. A «literatura de estado terminal», a escrita de leito de morte, é um género que se impõe por si mesmo, uma vez que os escritores, os críticos, os historiadores, os jornalistas, também morrem, e, por certo, a maioria daqueles que perto do fim estejam em condições físicas e com discernimento para o fazerem terá sempre a tentação, por vezes transformada em ato, de escrever, de escrever uma vez mais, talvez pela derradeira vez. Agora sobre essa experiência única pela qual está a passar, do convívio com o fim iminente da própria vida no limite da capacidade de se fazer ouvir. Walt Withman terá sido um dos que foi mais longe, ao completar em 1892, já muito perto da morte e totalmente dependente dos outros, a derradeira versão de Leaves of Grass, declarando-a como a única fidedigna e completa. (mais…)

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      A distopia da qual se fala

      Quando se buscam os fatores partilhados de disfunção da grande utopia comunista que conduziram os Estados do «socialismo realmente existente» à situação cataléptica que decidiu a sua morte, alguns revelam-se particularmente evidentes. Desde logo aqueles que se reportam às rígidas políticas de engenharia social que determinaram êxodos de povos inteiros, fomes que poderiam ter sido evitadas ou uma atitude política de exclusão determinada pela origem social do reprimido, ainda que esta se encontrasse associada a uma quota significativa da população. São também recorrentemente mencionadas as condições de ausência de liberdade de crítica, que bloquearam as sociedades e até os próprios partidos no poder, assim como o espartilho de uma economia rigidamente planificada e burocratizada, através da qual se assinou a sentença de morte de um crescimento equilibrado e a incapacidade de suprir as necessidades reais da população. Outro aspeto conhecido mas habitualmente menos abordado diz respeito à formação e ao funcionamento das elites políticas e administrativas, as chamadas nomenklaturas, que emergiram da conceção leninista do partido como vanguarda e «exército de revolucionários profissionais» para se destacarem progressivamente como casta privilegiada, inamovível e cega face às transformações de um mundo em constante e cada vez mais rápida mudança. (mais…)

        Atualidade, Democracia, Olhares

        Graça e realidade

        Na tentativa de explicar os primeiros indícios de mudança e o esforço de aproximação às pessoas comuns do novo papa, sinais que têm tornado ainda mais evidente o caminho de imobilismo e afastamento do mundo contemporâneo que marcou os dois últimos pontificados, muitos católicos têm declarado esta aparente metamorfose, e em particular a sua face mais afirmativa e calorosa, como «uma graça do Senhor». No entanto, dado que o conceito de «graça» se encontra associado à dádiva e à misericórdia divina, sendo por isso, e nessa medida, da exclusiva responsabilidade de Deus, tal não parece suficiente. A explicação da graça é a de quem acredita num ser superior, omnipotente e omnisciente, na sua bondade e na sua capacidade para intervir na esfera do humano, mas esta é uma justificação necessariamente incompleta, dado reforçar uma atitude de mera recetividade humana face à vontade divina. A verdade é que as eventuais mudanças, tal como os sinais que as estão a anteceder, estes já inequívocos, representam na prática – independentemente das boas intenções – uma resposta de parte da Igreja católica ao atoleiro de vícios e de ensimesmamento no qual esta se tem deixado submergir. A mudança é pois, para os não-crentes, não um ato de graça, mas antes o resultado de uma iniciativa humana personificada neste papa. Representa uma resposta a uma necessidade, determinada pelos problemas da própria Igreja e pela imprescindível reinscrição, ou reinicialização, do seu lugar no mundo. Se desta resultar uma Igreja católica melhor e mais próxima dos anseios, expectativas e necessidades que partilhamos, tanto melhor. Para todos, inclusive para aqueles não-crentes que sabem estender a mão.

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          Filosofia ao domicílio |7

          Após algumas semanas de silêncio relacionado com outras preocupações, retoma-se hoje a série de posts que tem vindo a sugerir uma hipotética biblioteca básica da filosofia contemporânea. Desta vez a escolha recai no grosso tomo da Teoria do agir comunicacional, publicada em 1981 pelo filósofo alemão Jürgen Habermas (n. 1929). (mais…)

            Olhares, Séries

            As sandálias do pescador

            Quando alguém pede que declare a identidade religiosa costumo descrever-me como um agnóstico cristão. Não é difícil explicar o aparente paradoxo: não concebo racionalmente, nem creio, na existência de um Deus superior, entidade sobre-humana que não esteja apenas dentro de nós e como parte de nós. E muito menos acredito nas virtudes de uma religião capaz de tomar principalmente a forma de Igreja. Prezo muito no entanto a mensagem, revolucionária à época do seu surgimento, proposta por Jesus Cristo. Admiro-a pelo que então trouxe de radicalmente novo: pela defesa da paz e da aceitação numa era marcada pela guerra e pela tirania, pelo acento no ecumenismo num tempo de ódio religioso e poder imperial, pelo reconhecimento da igualdade numa sociedade esclavagista, pela valorização da compaixão e do amor quando a ética dominante assentava na violência, pelo reconhecimento das mulheres dentro de uma sociedade acentuadamente patriarcal, pela ênfase colocada na humildade quando a soberba pontuava a conduta daqueles que se elevavam acima dos outros. (mais…)

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              Demissão ou revolução

              Demissão Já!

              Nenhum governo se demite ou deve ser demitido só porque os seus adversários o exigem em todas as partes, com todas as forças e numa grande algazarra. Se assim fosse, o poder estaria sempre na boca do megafone, o que tornaria qualquer república ingovernável. Mas é verdade que a revolta não se faz em silêncio, com punhos de renda e pezinhos de lã. Faz-se sempre com estrondo, em alta voz, porque aponta para uma mudança urgente e completa, porque corresponde a um clamor pela justiça justa ou porque exprime uma sentida indignação. Mas, ainda assim, ela acontece dentro da ordem constitucional que só uma revolução terá condições para superar. No entanto, existe um limite para a legitimidade desta ordem: quando qualquer forma de poder põe em cheque a soberania popular, governando em nome do povo mas contra ele, apoiando-se no valor do voto mas subvertendo os programas com os quais esse voto foi obtido, cessa então o seu direito a mandar e a sua autoridade transforma-se em tirania.

              Quando, como ontem, o principal ministro do governo PSD-CDS reconheceu publicamente a falência do programa eleitoral, assumiu como um falhanço as medidas de emergência com as quais se subverteu esse programa e declarou solenemente a hipoteca austeritarista do nosso futuro – «o ajustamento [proposto por este governo] terá de continuar durante décadas, exige o esforço de uma geração», disse Gaspar – então nada mais existe que justifique o lugar que ocupa e o ambiente de aceitação que os cidadãos podem ter em relação a quem ainda governa. Diante deste panorama, só existem então três caminhos: ou o governo se demite ou quem tem a capacidade constitucional para o fazer toma essa iniciativa. Mas eu falei de três caminhos, não falei? Pois então o terceiro deles, o que faltava, pode ser a rua a ditá-lo. Demissão rimará então com revolução. Teremos mesmo de chegar aí?

              Nota: Este texto será partilhado na página Demissão do Facebook. Onde se espera que outros surjam e os leitores cliquem. Por mim, na condição dos próprios se sentirem envolvidos na iniciativa, passo o desafio ao Marco Santos, ao Miguel Cardina, ao Nuno Serra, ao Tomás Vasques e ao Zé Neves. Esta proposta, tinha-a recebido do João José Cardoso.

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                O pesadelo e o grito

                Imagem de Cesarr Terrio
                Imagem de Cesarr Terrio

                As sondagens sobre o sentido de voto nos partidos políticos ou o grau de popularidade dos seus dirigentes são avaliadas consoante os resultados. Quem nas tabelas aparece na mó de baixo declara logo que tais pesquisas possuem «um valor relativo» e no fundo «valem o que valem». Já quem é beneficiado pelos números apressa-se a considerar exprimirem os mesmos «uma tendência que não pode ser ignorada», evidenciando «o estado de espírito do eleitorado». Aquela que acaba de sair, revelando uma inesperada subida de 4 pontos nas intenções de voto no PSD e uma descida dos restantes partidos, ao mesmo tempo que a popularidade do governo continua a cair, deixa muita gente um tanto desconcertada. Afinal o que quer esta populaça bipolar, que se declara vegetariana enquanto deseja um belo bife da vazia? A resposta conhecem-na bem todos aqueles a quem estes resultados desagradam ou perturbam, embora jamais aceitem reconhecê-lo de forma pública e sincera. O evidente, perante tais números, é que um número muito grande de cidadãos não gosta da forma como é governado, mas também não confia nos modos, nos rostos e nas propostas das alternativas mais imediatas à gestão do navio. O Jornal de Notícias titula hoje, a toda a largura do rosto: «Governo É Mau Mas Oposição Não Convence». O Diário de Notícias segue o mesmo caminho: «Governo Continua A Ser Mau, Mas Maioria Não Vê Alternativa». Este é pois – por trás do friso deprimente de Coelhos, Gaspares, Relvas e outros mais de idêntico perfil – o segundo plano do drama no qual afundámos. Alguns chamam-lhe pesadelo. A esperança, a única esperança, reside, como acontece sempre que estamos mergulhados num pesadelo, no facto de o nosso maior desejo ser fugir dele. Ainda que algo de horrível nos tolha as pernas e a língua, há sempre a alternativa de gritar, de estrebuchar. Ou a de nos esforçarmos por intermédio da vontade para procurar uma saída rápida, retornando à realidade.

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                  Teremos papa

                  Face às previsíveis demonstrações de «enorme felicidade», «grande satisfação» e «esperança imensa» mecanicamente debitadas pelos católicos que em relação ao seu papa mantêm um relação de inquestionável fidelidade, surgiram também, logo após a escolha de Francisco para bispo de Roma, os juízos diametralmente opostos de quem, tal como em forma de caricatura alguém escreveu no meu mural do Facebook, ficou logo de pé atrás por se encontrar, provavelmente, «à espera da eleição de um hippie comunista, de um informático libertário ou de um transsexual saído dum bairro da lata.» Tentemos então escapar a este tipo de julgamento, fugindo de juízos apressados. De facto, a biografia do cardeal Ratzinger e o seu comportamento como papa Bento XVI, por constituírem um exemplo recente, deveriam ser suficientes para mostrar que a condição papal, pela dimensão e responsabilidades que envolve, pode reescrever muitos comportamentos e perspetivas. A mesma coisa se passa noutras áreas: assumir uma tarefa de responsabilidade máxima numa instituição de poder e prestígio investe, quem viva tal experiência, numa nova condição. A pessoa continua a ser quem é, mas ao mesmo tempo deixa de ser a mesma. Por isso será preferível esperarmos um pouco, sem crucificar já o novo papa por não se ter comportado neste ou naquele momento como eventualmente gostaríamos que se tivesse comportado. E sobretudo evitemos julgá-lo antes de fazer o quer que seja, para além de pronunciar umas palavras de circunstância na Praça de São Pedro e de dar aos fiéis a tradicional benção urbi et orbi. Ou por um passado com episódios mal conhecidos, que pode até não ter sido propriamente simpático, mas sobre o qual existem também muitos boatos e suposições. Cá estaremos para escrutinar aquilo que, na nova e pesada qualidade de sucessor de Pedro, o argentino Francisco vai dizer, escrever e fazer para os seus e perante o mundo inteiro. Ou pelo lado obscuro que possa eventualmente ter omitido do currículo. O «tempo de graça», como se sabe, é sempre curto. Mas um pouco de esperança, ainda que passageira, não faz mal a ninguém.

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                    Péssimo sinal

                    Pergunto-me, tal como se perguntará uma larga franja de portugueses interessados na queda do atual governo e na construção de uma solução de governabilidade à esquerda, se o PCP e o Bloco se darão conta da extrema gravidade que comporta o gesto de recusarem (o PCP abertamente, o Bloco implicitamente, dada a visível falta de empenho) a proposta do Partido Socialista e de António José Seguro para discutir eventuais alianças nas eleições autárquicas. É verdade que um dos flancos politicamente mais discutíveis, pessoalmente mais duvidosos e administrativamente mais obscuros do PS se define ao nível de boa parte das suas escolhas autárquicas. Vivendo e sendo desde há muito eleitor na cidade de Coimbra, estou particularmente habilitado para confirmar esta triste realidade. E sei perfeitamente que existe, aqui como em todo o país, um longo caminho a percorrer para que a aproximação à esquerda ocorra e sem desenvolva de um modo dinâmico e transparente, no respeito mútuo e no interesse da maioria dos cidadãos. Boa parte desse caminho será, aliás, forçosamente da responsabilidade do próprio PS. Mas não dar sequer ensejo a conversas sobre hipotéticas alianças a nível local, reagindo «de pedra na mão», constitui não só um ato de hostilidade em relação à possibilidade de construir alianças voltadas para a política do país como uma forma de mostrar publicamente que o sectarismo está longe de ser ultrapassado. Aceitando aproximações apenas se forem as «nossas regras» a determiná-las ou colocando sempre o acento tónico nas diferenças e nas divergências, apesar do tempo que vivemos, no qual uma rápida mudança de políticas associada a um vasto consenso eleitoral é, obviamente, a única solução para evitar o estado de calamidade e o salto do país para o mais negro dos abismos. O sinal que está a ser dado é negativo e deixará sequelas. E é também um fator de redução dessa dimensão de esperança sempre decisiva em tempo de mudança.

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                      Mulheres e Mulherzinhas

                      O Dia Internacional da Mulher, evocado como momento de rebelião e protesto no Portugal pré-Abril – devido ao lugar visivelmente secundário, marcado pela exploração material e pela depreciação cultural, que nele ocupavam as mulheres – foi-se banalizando nos últimos anos, e, tal como aconteceu com o Dia das Mentiras ou o dos Namorados, transformando num engodo para o consumo. Não que a data tivesse deixado de ser importante e não tenha permanecido na agenda dos movimentos e dos cidadãos cientes de que a emancipação das mulheres é uma tarefa apenas iniciada. Mesmo no mundo no qual estas são formalmente iguais em direitos e deveres e não precisam sair à rua com o rosto tapado ou vigiadas pelo marido. O que acontece é que a trivialização da data fez com que ela passasse a ser evocada também por mulheres com uma noção frágil da sua própria emancipação, confundindo-a apenas com a presença na rua e no mercado de trabalho, e ainda por homens que com o seu gesto de «homenagem às senhoras» apenas reforçam a desigualdade e o preconceito. São as mesmas e os mesmos que têm pavor do feminismo – grosseiramente julgado como expressão de uma hipotética luta «das mulheres contra os homens» ou de uma «recusa do feminino» – e que alimentam esta versão caricatural do 8 de Março. Na verdade, do que falam é do «Dia da Mulherzinha», essa criatura débil, frágil e desejavelmente rosada, decalcada do livro autobiográfico de Louisa May Alcott publicado há quase século e meio. A mulherzinha que se realiza no «final feliz», eventualmente consumado no casamento e na maternidade, mas, de facto, que permanece no seu lugar decorativo, dependente e subalterno. Mesmo quando sobe à tribuna, conduz um trator com presteza, toca pandeireta numa tuna ou dirige a economia familiar.

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                        Como arruinar um projeto em 144 páginas

                        Na História Politicamente Incorreta do Portugal Contemporâneo (De Salazar a Soares), editada há pouco pela Guerra & Paz, Henrique Raposo, o cronista do Expresso também «licenciado em História e mestre em Ciência Política», considera existir um padrão dominante no interior da historiografia nacional que é preciso meter na ordem. Este funcionaria como uma espécie de vírus, desvirtuando e falsificando o conhecimento que temos do século passado a partir da perspetiva vitoriosa da esquerda. Considerando-a intrinsecamente nefasta e objetivamente falsa, propõe-se então contribuir para atenuar essa influência. Resume-a neste livro através de um complexo de «mitos» que pretende questionar. Identifica essencialmente cinco: o de Salazar como mera criatura da Igreja católica, o de um Mário Soares sem o qual Portugal de facto não teria entrado na Europa, o do Estado Novo vergando os portugueses à irrevogável pobreza, o de uma esquerda que vez alguma fora «colonialista», e, por fim, o da hegemonia cultural da mesma esquerda como tendo começado antes do 25 de Abril e fechado as portas logo no final de 1975. A narrativa de Raposo procura negar radicalmente estes juízos, anunciados como fábulas. (mais…)

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                          O elétrico vermelho

                          Num livro sobre o levantamento, o apogeu e o fim da Cortina de Ferro publicado há poucos meses pela Doubleday (Iron Curtain: The Crushing of Eastern Europe), a jornalista e historiadora norte-americana Anne Applebaum, conhecida por ser a autora de uma das mais sérias e completas obras sobre a origem, a organização e o funcionamento do Gulag soviético, conta-nos um episódio extraordinário. Ele ocorreu em Varsóvia já depois de terminada a guerra, num belo dia do verão de 1945. Seguia um funeral por uma das muitas centenas de ruas reduzidas a destroços na altura da retirada pelos nazis quando os seus tristes acompanhantes depararam de repente com uma cena extraordinária: um verdadeiro carro elétrico varsoviano, vermelho como sempre mas o primeiro a cruzar a cidade depois do fim do conflito, fazia o seu percurso tocando a sineta. As pessoas nos passeios estacaram todas, surpreendidas, e muitas desataram a correr atrás dele, enquanto outras batiam palmas e gritavam vivas. E então o funeral parou, os seus enlutados participantes esqueceram por momentos o corpo gélido que conduziam à última morada, e envolvidos na euforia geral viraram-se para aquele elétrico saído das cinzas e começaram, também eles, a bater palmas. Por um instante, uma espantosa vibração de esperança e de vida esmagou, gloriosa, a fixidez da morte.

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                            Para quem é…

                            Os acontecimentos que nos últimos dias envolveram a presença pública de Miguel Relvas e a violenta contestação da qual esta tem sido objeto por parte de alguns grupos de cidadãos mais destemidos, levantam uns pequenos problemas. Não penso que, em democracia, a contestação dos governantes deva passar pelo cerceamento da sua liberdade de opinião e de expressão. Ou pelo insulto público. Existem formas e lugares para a demonstração do descontentamento, mesmo quando esta é muito veemente, e que podem passar por outras iniciativas sem que tal diminua o seu impacto. Porém, no caso deste governante, e do seu trajeto oportunista, obscuro, mercantil e politicamente desprestigiado, exibido com a conivência de um governo empenhado em pôr em causa a própria Constituição da República, justifica-se uma exceção. Perante a desfaçatez, enorme e insultuosa, que é a sua manutenção teimosa, artificial e até imprudente como responsável governamental da mais alta responsabilidade, a soberania pode ser transferida para os governados e estes adquirem todo o direito, desde que o não façam com recurso à violência física – o que jamais aconteceu, diga-se –, de fazerem ouvir a sua voz. Da forma, com a intensidade e nos lugares onde entendam por bem fazê-lo. O protesto e a indignação, para serem eficazes como protesto e indignação, não podem ser bradados em surdina, cantados em becos, mastigados em vãos de escada e exibidos à socapa com punhos de renda. Precisam ser visíveis e sonoros, e, de hoje em dia, de ganhar projeção mediática. Só que cantar o Grândola, Vila Morena em tal situação parece-me um pouco desprestigiante para este grande hino-canção, tão importante para a tradição democrática e a memória coletiva dos portugueses. É que «para quem é bacalhau basta», e por isso, como escrevia alguém com piada e carradas de razão no meu mural do Facebook, mais valia cantar a Relvas A Mula da Cooperativa.

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                              Um cartaz perigoso

                              Há cerca de duas semanas, quando nele reparei pela primeira vez, pareceu-me de imediato que valeria a pena comentar um dos mais divulgados dos cartazes com os quais a CGTP procurou mobilizar os cidadãos para as manifestações deste 16 de fevereiro contra as políticas antissociais do governo. A maior parte da propaganda difundida falava aliás, preferencialmente, de «trabalhadores», não de «cidadãos», menosprezando a mudança semântica que nas últimas décadas envolveu aquela palavra. Agora reforçada, aliás, no contexto de um alastramento dramático do desemprego, do trabalho precário, da desqualificação profissional e da pauperização da classe média. Tomei na altura algumas notas, mas não escrevi logo um post pois de modo algum queria, por ínfima que pudesse ser a sua divulgação, que este pudesse ser interpretado como um apelo à desmobilização de um combate imprescindível e agregador que é urgente travar. Ultrapassadas essas circunstâncias e de um modo agora mais sereno, vou direto ao assunto. (mais…)

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                                Filosofia ao domicílio |6

                                Albert Camus

                                Noutro post da série que sugere uma hipotética biblioteca básica da filosofia contemporânea, hoje é a vez de apresentar O Mito de Sísifo, o «ensaio sobre o absurdo» publicado por Albert Camus (1913-1960) em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial e na sua fase de colaboração ativa e regular com a Resistência francesa.

                                Albert Camus era existencialista? Apesar de o ter por diversas vezes negado e da desavença com Jean-Paul Sartre em 1952, um homem capaz de escrever, no primeiro romance, «Tenho a intenção de me casar, de me suicidar ou de me dedicar à Ilustração. Num gesto desesperado, talvez…», era naturalmente existencialista. Mais tarde, quando publicou O Estrangeiro, o livro foi repetidamente julgado «existencialista»… Qual o motivo? Porque Meurseault, o herói, passeia como um sonâmbulo num mundo que parece realmente não habitar. E no entanto ele age, come, bebe, fuma, faz amor e até comete um assassinato. Através deste personagem, Camus fornece a chave para o seu ensaio editado quase ao mesmo tempo, O Mito de Sísifo, que aparece como o manifesto da sua «filosofia do absurdo». Aí afirma que o absurdo se encontra em todo o lado. Evoca o personagem de Sísifo, o herói grego condenado pelos deuses a empurrar até à eternidade uma rocha para o cimo de uma montanha, de onde ela rola forçando-o a recomeçar. Sísifo incarna o tipo de ser humano dedicado a uma vida insana. Aproxima-se aí de uma das intuições de Martin Heidegger: a estranheza do sujeito em relação ao seu mundo, que designa como «desamparo», e à qual Sartre chama «abandono». Em Camus a palavra é no entanto mais forte: é «absurdo». Soren Kirkegaard e Edmund Husserl propõem soluções para o desespero: a fé para um, a procura das essências para o outro. E Camus? Está muito mais próximo de Sartre e do seu dever de liberdade. Em O Mito de Sísifo, encontram-se estas palavras: «Se o absurdo aniquila todas as minhas possibilidades de liberdade eterna, então ele força-me, contrariamente, a exaltar a minha liberdade de ação.» Num mundo sem Deus nem valores últimos, o ser humano é ainda mais livre. Camus, sem nada esperar, faz também o elogio da criação artística: «Criar, é assim dar uma forma ao seu destino.» Mais tarde dará um conteúdo ainda mais radical à sua ideia de liberdade: ela é a revolta. [Tradução e adaptação de um artigo de Nicolas Journet.]

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                                  As faturas e a apoteose do ridículo

                                  Contou-me certa vez um amigo açoriano que a imagem do medo da sua mais recuada memória de infância associava três elementos: a proximidade de hipotéticos navios russos, a intervenção certa e segura do diabo e a convicção de que, por onde quer que passeasse na sua ilha, existiriam fiscais do isqueiro para o autuarem por falta de licença de uso daquela ferramenta manual de ignição, imprescindível para os fumadores, como ele era na altura. Este terceiro medo era afinal o único que tinha razão de ser: a necessidade de porte de licença para uso de acendedores e isqueiros antes de 1974 não é uma invenção de pessoas com imaginação e prova-nos de que forma, naquela época, a vigilância policial dos cidadãos combinava por vezes a rigidez do controlo com a intervenção do ridículo. O aviso, feito agora pela Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais, de que, onde quer que se transacionem bens, poderão ser realizadas ações de fiscalização «que incidam sobre a obrigação de exigir a emissão de fatura por parte dos consumidores finais», ações que «podem ser realizadas à saída dos estabelecimentos comerciais para garantir que os consumidores exigem efetivamente as faturas pelas compras realizadas», reconduz-nos perigosamente a esse tempo. Pondo portugueses a vigiarem portugueses, de livro de autos na mão, inclusive à porta de capoeiras nas quais se possam transacionar clandestinos galináceos, ou encostados às carroças dos assadores de castanhas, como «medida de combate eficaz à economia paralela, à evasão fiscal e às situações de subfaturação». Para reequilibrar as contas do Estado, naturalmente. De volta pois à apoteose do ridículo.

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                                    Kapuściński e o socialismo

                                    Quase a concluir a leitura da biografia do jornalista e escritor polaco Ryszard Kapuściński (1932-2007), da autoria do também jornalista e seu antigo colaborador Artur Domosławski. Um livro que justifica um post autónomo, dados os problemas que expõe, as informações que faculta, as dúvidas que levanta sobre as duas faces, a mais conhecida e a obscura, de uma das mais importantes, e das mais eloquentes, testemunhas da evolução do mundo na segunda metade do século XX. O que hoje aqui fica é apenas um extrato de um texto escrito por Kapuściński quando, após longos anos de trabalho como correspondente da imprensa polaca na América Latina, regressou ao seu país. Na Polónia vivia-se na altura a fase de transição que mais tarde determinaria o fim do regime «socialista», e Kapuściński, velho militante comunista mas homem que conhecia muito bem outras realidades, questiona-se nele sobre a diferença entre o idealismo e a entrega dos combatentes socialistas que conhecera na América Latina, e o panorama de laxismo e ausência de convicção com as quais deparava agora no seu próprio país:

                                    «Ali: Devido à sua crença no socialismo, os jovens idealistas acabam muitas vezes na prisão, são torturados, são forçados a organizar-se na selva, e são por via de regra ignorados por aqueles que deveriam ser até os destinatários da sua luta. Aqui: Devido à sua crença no socialismo, os jovens carreiristas são os primeiros a conseguir um andar, um carro ou um lugar numa estância de férias. Ali: grandes ideais, o ruído metálico das espingardas; aqui: dinheiro fácil, viver indolentemente a ver televisão, passar a vida em bailes. Ali: rebelião, inconformismo, adrenalina; aqui: sorrisos falsos, mostrando apenas as caras que as autoridades querem ver. Se ali é o socialismo, aqui será o socialismo também?»

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