O caladinho do Citroën

Estão por todo o lado, embora se encontrem sobretudo em profissões mais afastadas do escrutínio público. São gente desprezível que jamais fala com clareza e olha os outros de frente, que pode passar décadas sem abrir a boca, sem nunca pôr a debate os seus pontos de vista, até ao dia em que tem a absoluta certeza de estar na mó de cima e de, enfim, poder ditar o que deseja sem a maçada do contraditório. São os caladinhos, os calculistas, os carreiristas, que lançam o veneno sem que se lhes ouça o corpo a rastejar por entre os arbustos, até poderem, já em cima da presa, engoli-la sem dificuldade. Gente na qual nunca se pode confiar, mas que, justamente por causa da sua falta de coragem e de verticalidade, nunca se comprometendo, fazendo-se sempre passar por cordata e consensual, acaba por se aproveitar do desgaste dos outros. Daqueles que suaram anos a fio, tomaram posições difíceis, mas que por cansaço ou desistência, deixaram vazios os lugares que alguém teria de ocupar.

Pois assim foi e é Cavaco. Ao longo de toda a carreira profissional e política. Até na forma como em 1985, vindo de décadas de cauteloso silêncio, se tornou alguém dentro do PSD, naquele surpreendente congresso da Figueira da Foz. Quando, chegando «por omissão» ao volante do seu Citroën BX em rodagem, foi capaz, «por espírito de serviço» ou «contra vontade» – esta gente, já Salazar fazia o mesmo, bate sempre na tecla da modéstia como estratégia de legitimação –, de derrotar os adversários internos e de se lançar ao assalto do poder. E por muito que o episódio possa dar algum gozo a todos aqueles que, como eu, não gostam de Passos nem de Portas, e menos ainda daquilo que eles representam, é preciso reconhecer que o que lhes fez ontem o presidente, depois de aparentemente os ter apoiado e de ter tido a oportunidade de cara a cara lhes dizer o que iria fazer, foi completamente mesquinho, traiçoeiro e indigno. Mas é próprio do comportamento desta sorte de indivíduos, que só se movem no momento em que têm a faca e o queijo na mão e podem trair sem problemas de maior quem lhes deu de comer.

Nem que fosse apenas por isso, se não fossem o que são e não falassem em nome de quem falam, Passos e Portas (ou Portas e Passos, como queiram) deveriam ter a coragem de pedir a demissão, fazendo Cavaco passar pela vergonha de ficar com o menino nos braços e obrigando-o a provar do próprio veneno. Bem o merece, o caladinho do Citroën.

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