Arquivo de Categorias: História

Um arquivo singular

Esta semana a Universidade de Coimbra e a Fundação Cuidar O Futuro assinaram o termo de doação que transferiu para o Centro de Documentação 25 de Abril a responsabilidade de guardar, tratar e disponibilizar de forma pública o importante arquivo político e pessoal de Maria de Lourdes Pintasilgo (1930-2004). São cerca de 250.000 documentos de uma tipologia muito diversa que dão conta de um trajeto à escala nacional absolutamente singular. Um trajeto que ao longo de décadas se fundiu com a história recente de Portugal, testemunhando experiências que deixaram um lastro inapagável, nas instituições mas sobretudo nas pessoas que nelas participaram ou a elas assistiram, e que merecem ser conhecidas e estudadas. (mais…)

    Apontamentos, Biografias, Democracia, História

    Shakespeare e a tábua das emoções

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    A contemporaneidade de William Shakespeare tem sido particularmente destacada na altura em que se evoca o 450º aniversário do seu nascimento. No início deste ano, em Berlim, um colóquio promovido pelo British Council que envolveu diversos especialistas teve justamente como pressuposto que dentro e fora do universo académico o seu legado «se mantém vivo sob múltiplos aspetos». Todavia a ideia não é nova, pois já em 1961 o encenador Jan Kott publicara em Varsóvia um livro, rapidamente traduzido em diversas línguas, sobre a força dessa ligação. Kott traçava ali uma série de analogias entre as situações dramáticas criadas pelo mais conhecido dos naturais de Stratford-upon-Avon e as cambiantes infernais da vida pública, duplamente subjugada ao impacto do nazismo e do estalinismo, presentes na Polónia do seu tempo. (mais…)

      Ensaio, História, Leituras, Olhares

      A banalização do fascismo

      Auschwitz. Por Alex Ayann
      Auschwitz. Por Alex Ayann

      Quando oiço dizer que vivemos, em Portugal e nesta complicada Europa que nos cabe, «pior que no tempo do fascismo», ocorrem-me três argumentos contra uma afirmação tão imperfeita e perigosa. Em primeiro lugar, ninguém que tenha vivido ou conheça de forma cabal o tempo e a experiência dos fascismos que envenenaram o século passado, fazendo dos Estados aparelhos de coação e não de garantia dos direitos fundamentais, é capaz de proferir em consciência uma afirmação dessa natureza. Em segundo lugar, estabelecer uma comparação que incide de forma particularmente negativa sobre o presente é prova de um claro desconhecimento da História, pois nenhum dos conflitos e formas de opressão pelos quais passamos hoje, sobretudo no mundo industrializado e nas suas contíguas periferias, se compara, em escala e na brutalidade, com aqueles que cruzaram as décadas em que os fascismos se impuseram. Em terceiro lugar, quem o diz vive provavelmente no terreno nebuloso de um wishful thinking feito de enormes simplificações, com recurso às quais pensa agudizar contradições e desta forma prover as «condições objetivas» para impor mudanças julgadas redentoras, necessariamente ilusórias. No fundo, quem de tudo isto beneficia são de facto os novos fascismos, agora mais insidiosos e apurados nos seus métodos, que pelo efeito de banalização que uma tal afirmação provoca vão podendo desbravar caminho. Desta maneira, em vez de se baterem pela defesa dos direitos alcançados em décadas de lutas pela democracia e pelo bem-estar, muitos cidadãos desenvolvem uma consciência política feita essencialmente de ressentimento, que acaba por isolá-los, desmobilizando-os de facto e colocando-os à mercê dos algozes. À noite, nas suas casas, adormecem narcotizados, tentando esquecer um mundo que os atemoriza e não compreendem.

        Apontamentos, Atualidade, História, Opinião

        Quarenta anos depois de Abril

        Acrílico sobre tela de Jorge Cardoso
        Acrílico sobre tela de Jorge Cardoso

        À medida que o ano de 1974 foi ficando para trás, a evocação do 25 de Abril foi perdendo a tonalidade vibrante que manteve nos primeiros tempos. A estabilização do regime democrático, com as suas qualidades e imperfeições, tal como a instalação progressiva de uma sociedade menos desigual, foram induzindo distanciamento. Em cada aniversário, ressurgia sobretudo a memória afetiva de quem vivera a Revolução, ou de quem a preparara nos subterrâneos do exílio ou da clandestinidade, bem como uma compreensível nostalgia por uma fase do percurso pessoal e coletivo partilhada por quem desejava o retorno das utopias perdidas. Esperando por «outro 25 de Abril», como muitos diziam com convicção mas reduzida esperança. (mais…)

          Atualidade, Democracia, História, Opinião

          O meu 25 com quarenta

          Será provavelmente a primeira vez que o faço de uma forma pública e com algum detalhe, mas já que se cumprem hoje quarenta anos sobre aquele 25 que mudou as nossas vidas, vou contar como vivi o meu. Eu era então militar. Em finais de 1972 fora detido pela polícia no decurso de uma manifestação estudantil contra a Guerra Colonial, que acabara com o apedrejamento de um banco considerado cúmplice da política do governo. Depois de interrogado pela PSP – e algum tempo após pela PIDE-DGS – vi o meu nome inscrito numa lista de cidadãos pouco ou nada passivos a integrar compulsivamente no Exército. (mais…)

            Apontamentos, Democracia, História, Memória

            Nos cem anos da Primeira Guerra Mundial

            À medida que nos fomos aproximando do centenário da Primeira Guerra Mundial, desdobraram-se as tentativas para explicar as suas circunstâncias à luz do presente. Todas têm coincidido em aspetos que a historiografia sempre deu como certos e incontroversos. Ninguém contesta, por exemplo, que ela começou quando poucos esperavam que pudesse ocorrer, que ganhou um extensão temporal e geográfica distante das expectativas de um confronto que se presumira curto e regional, e, acima de tudo, que introduziu um novo equilíbrio nas relações entre os Estados, perturbador da ordem internacional vigente e criador das condições para a eclosão, duas décadas depois, de um confronto ainda mais brutal. Existem, todavia, características que foi a última década de desenvolvimento do conhecimento histórico a reconhecer e destacar. Três delas justificam uma atenção especial: a guerra não opôs no terreno, pelo menos no seu início, modelos de Estado e de sociedade diametralmente opostos; desenvolveu-se num ambiente marcado por uma violência indiscriminada e sem precedentes; e emergiu no contexto de um conflito latente, aparentemente invisível, cuja gravidade não terá sido devidamente avaliada por aqueles que estavam no centro da decisão política. (mais…)

              História, Leituras, Memória

              O bom traidor

              Adolfo Suárez

              Após dez anos de dolorosa doença, acaba de morrer Adolfo Suárez (1932-2014), o homem que, na qualidade presidente do governo de Espanha, entre 1976 e 1981 apoiou o razoavelmente pacífico processo de transição política que conduziu o Estado espanhol do franquismo até a democracia. Foi justamente quando em 23 de Fevereiro de 1981 se encontrava numa sessão das Cortes na qual Leopoldo Calvo Sotelo iria tomar posse como seu sucessor que teve lugar uma tentativa de golpe de Estado, destinada a recolocar a direita franquista no poder e materializada então na violenta ocupação do parlamento por uma companhia da Guarda Civil chefiada pelo tenente-coronel Tejero Molina. Anatomia de um instante, do escritor Javier Cercas, é uma excelente reconstituição histórica deste episódio, invocando os acontecimentos desse dia e dessa noite para enfatizar, com flashes retrospetivos, o papel daqueles que considera terem sido os protagonistas da resistência à iniciativa golpista: Suárez, o general Gutiérrez Mellado, Santiago Carrillo, então o secretário-geral do PCE, e, do lado de fora do parlamento, o rei Juan Carlos. (mais…)

                Apontamentos, Atualidade, Biografias, História

                Os «Homens dos Monumentos»

                Monuments Men – Caçadores de Tesouros, realizado e interpretado por George Clooney, não é um grande filme. O ritmo é algo trôpego, a caracterização dos personagens quase sempre insípida – salva-se Cate Blanchett como Claire Simone, na verdade Rose Valland, a «Capitaine Beaux-Arts» – e nota-se uma hesitação excessiva entre a comédia que o não é e o drama que o não chega a ser. Melhora bastante na última meia hora, mas como filme convida um tanto ao bocejo de quem tenha dormido mal. Existe, porém, algo que o torna importante e o fará permanecer na memória de quem o viu. (mais…)

                  Artes, Cinema, História, Memória

                  O ideal kibbutzin

                  Pode parecer hoje incompreensível, ou no mínimo um pouco desajustado, que alguém de esquerda reconheça sem qualquer remorso que teve um dia como modelo de uma vida com sentido, feita de entrega, de internacionalismo e de solidariedade, a partida para Israel com a finalidade de partilhar uma experiência de trabalho comunitário num kibbutz. Mas foi isso que aconteceu com muitos militantes convictos da esquerda europeia durante as décadas de 1960-1970. Deverá recordar-se, em defesa desta memória recôndita, o facto dessas pequenas colónias integrarem então espaços de trabalho e de vida partilhados, formalmente igualitários, muitos deles de orientação laica e progressista, que apesar de nessa fase já conterem algumas funções de ocupação do território haviam sido em boa parte iniciativa de organizações associadas a um sionismo judaico com caraterísticas particulares, menos defensivo e mais aberto aos outros. Muito diferente do primitivo e daquele que agora conhecemos, mais assumidamente nacionalistas, religiosos, messiânicos e extremistas. (mais…)

                    Atualidade, História, Memória, Olhares

                    O «lado de lá» da Cortina de Ferro

                    Anne Applebaum

                    Não existe história imaculada de ideologia. A par da efetiva impossibilidade de um reencontro total com o passado, ou da recuperação do que aconteceu sem a interferência dos padrões de perversão da memória, este é um dos motivos que torna irrealizável um conhecimento histórico completamente objetivo. Todavia, tal não implica uma subjetividade total: existem processos de aferição e de comparabilidade que separam o historiador, sempre em demanda de indícios materiais ou imateriais que sustentem a sua observação, do mero charlatão ou do vendedor de passados. Por este motivo, para que possa ser aceite e reconhecido pelo trabalho que desenvolve, as marcas de subjetividade do historiador devem encontrar-se menos na manipulação da informação do que no silenciamento de determinados aspetos. Ele não pode pôr-se a inventar, embora possa sempre desviar o olhar daquilo que menos lhe agrada. Foi o que fez, em particular na última obra – A Cortina de Ferro. O fim da Europa de Leste*, saída no início do ano passado e agora traduzida pela Civilização –, Anne Applebaum, a antiga jornalista polaco-americana, hoje reorientada para a história e a ciência política, autora do aclamado Gulag: Uma História, saído em 2003. (mais…)

                      Ensaio, História, Leituras, Memória

                      Cunhal, Carrillo e a História


                      A vida pessoal de Álvaro Cunhal, durante décadas rodeada de um secretismo não ajustado à sua presença pública, e o seu longo trajeto político, só muito parcialmente conhecido do cidadão comum, têm sido alvo de uma atenção crescente. A mudança começou em 1999, com o lançamento do primeiro volume da biografia escrita por José Pacheco Pereira (o quarto está prestes a sair). Apesar de olhada com desconfiança, devido às escolhas políticas do autor, por contornar a insistência do PCP em não disponibilizar os seus arquivos e por ter sido iniciada sem a cooperação do biografado, a obra rapidamente se impôs pelo valor documental, abrindo caminho para o desenvolvimento dos três modelos de abordagem da vida de Cunhal que estão em curso. O primeiro é o do estudo biográfico, apontado ao reconhecimento da sua vida e intervenção, sem qualquer valoração ética ou análise sectária; o segundo, de nítida influência partidária, propõe uma perspetiva controlada, associada ao recorte exemplar e heroico da sua personalidade; já o terceiro modelo centra-se nos pormenores da vida privada, explorando a atenção de um público voyeur e de menor exigência. Todavia, este trabalho pode ser ampliado seguindo outras estratégias. Uma delas passa por confrontar o trajeto do antigo secretário-geral do PCP com o de outras figuras do movimento comunista internacional suas contemporâneas, num exercício que enfatiza inevitavelmente a originalidade do seu caminho. (mais…)

                        Biografias, Democracia, História, Olhares

                        Marina

                        Marina Ginestà

                        Aos 97, Marina Ginestà, veterana francesa da Guerra Civil de Espanha, morreu em Paris no dia 6 de janeiro. O seu rosto tornou-se conhecido graças a uma fotografia tirada pelo alemão Hans Gutmann no terraço do Hotel Colón, em Barcelona [clique na imagem para ampliar]. Marina, combatente republicana e militante da Juventude Socialista Unificada, tinha então 17 anos e toda a esperança do seu lado. Reagindo muito mais tarde ao facto de ter dado rosto, durante algum tempo sem o saber, a uma das mais icónicas imagens da guerra, fez um comentário que dava um livro: «Dizem-me que tinha ali um olhar altivo. É bem possível. Vivíamos então a mística da revolução proletária e das imagens de Hollywood, de Greta Garbo e de Gary Cooper.»

                          Apontamentos, Biografias, História, Memória

                          Coragem e convicção

                          Este anúncio publicado em finais de 1913 no Times londrino pelo explorador irlandês Ernest Shackleton, quando este procurava homens para integrar a viagem aventurosa de exploração e travessia da Antárctida que comandou entre 1914 e 1916, é verdadeiramente extraordinário. Os termos do anúncio prometem o pior – «jornada arriscada, baixo salário, frio penetrante, longos meses de completa escuridão, perigo constante, duvidoso regresso em segurança» – mas termina com a previsão, «em caso de sucesso», da única e maior das recompensas: «honra e reconhecimento». Nem todos os voluntários integrariam a equipa de 56 homens que em dois navios deixaram as águas britânicas a 8 de Agosto de 1914 para uma viagem que teria momentos intensamente dramáticos. Quem no seu perfeito juízo, nestes tempos de «turismo de aventura» e de riscos muito calculados, estaria em condições de responder afirmativamente a um desafio destes e de pôr-se a caminho de todos os perigos?

                          Frank Wild
                          Frank Wild, um dos oficiais da expedição
                            Apontamentos, História, Olhares, Recortes

                            O ano de todas as esperanças

                            Este é o ano do 40º aniversário do 25 de Abril. Para muitos portugueses, a data relaciona-se com a sua experiência de vida. Se já não eram crianças na época que o antecedeu, se não perderam de todo a memória ou se não estavam comprometidos com o regime derrubado, para eles a data incorpora uma corrente forte de recordações. Para os restantes, aqueles que atingiram a idade da razão já depois da data fundadora da democracia, aquilo que os aproxima dela é principalmente a memória transmitida pelos mais velhos e a dimensão simbólica que ela foi incorporando. (mais…)

                              Atualidade, História, Opinião

                              Nos 120 anos de Mao

                              Mao

                              A 26 de novembro completaram-se 120 anos sobre o nascimento de Mao Tsé-Tung. A data foi lembrada em muitos lugares e em diferentes suportes, sobretudo em blogues e murais do Facebook, ou nas primeiras páginas das edições online de respeitáveis diários, mas só lhe atribuiu um destaque maior que o habitualmente concedido a uma vulgar efeméride – como a data da morte de um político ou o dia exato de uma descoberta científica – quem ainda seja capaz de reconhecer alguma coisa de positivo na intervenção pública e no legado histórico do antigo dirigente comunista chinês. (mais…)

                                Atualidade, Biografias, História, Opinião

                                Hannah

                                Fui ver Hannah Arendt, de Margarethe von Trotta. As expectativas eram moderadas: grande parte da crítica levantava sérias objeções ao filme, mas algumas das pessoas com quem tinha falado e que já o tinham visto haviam gostado razoavelmente, se não «muito». Além disso, Arendt é Arendt, a filósofa de vida arriscada e de personalidade forte que escapou à bota antissemita e no exílio americano não deixou de assumir posições incómodas contra o governo ou as verdades convenientes. Fui portanto de espírito aberto e pronto para tudo. No entanto, esse tudo revelou-se bastante dececionante. O argumento foca-se numa espécie de pedagogia da «banalidade do mal para principiantes», com alguns passos nos quais flutuam conceitos algo ingénuos e com situações completamente caricaturais. O próprio referencial histórico – apoiado nas imagens televisivas a preto e branco do julgamento de Eichmann em Jerusalém, que por acaso me recordo de ter visto em criança na televisão – é muito simplificado, não enfatizando com o devido destaque a descrição desse «estado normal de obediência» da larga maioria dos alemães ao domínio nazi que, ele sim, poderia fundamentar com maior clareza a consideração do mal como parte da vida de todos os dias, da normalidade, «banalizando» até as suas expressões mais extremas. Salvou-se a representação excecional de Barbara Sukowa, uma Hannah forte e assertiva, mas ao mesmo tempo sensível e afetiva, como o era a verdadeira. E ficou-me no ar o aroma de um passado que já não participa do mundo que agora conheço: das aulas onde era possível fumar cigarro atrás de cigarro, do ruído único e familiar da máquina de escrever, das conversas argumentadas noite fora com inteligência e paixão.

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                                  O leste selvagem de Hitler

                                  Mais de três décadas após o suicídio de Adolf Hitler no seu bunker berlinense, uma perspetiva bastante redutora da fulgurante ascensão do nacional-socialismo alemão era ainda dominante entre os historiadores. De facto, o nazismo era visto como resultado exclusivo de uma combinação letal de maldade alucinada, protagonizada por uns quantos dirigentes e ativistas, com as circunstâncias de uma época perturbada e propensa a acreditar nas propriedades redentoras da experiência totalitária. Somente para o final do século se começou a compreender e a dar como adquirida a intervenção de outros aspetos até então relevados, como o aplauso ou o silêncio cúmplice de um grande número de alemães, ou a ingénua cegueira de muitos dos responsáveis políticos europeus da altura. Em O Império de Hitler, o britânico Mark Mazower expõe uma outra forma de entender o que aconteceu, não totalmente ignorada por outros historiadores do nazismo mas raramente considerada com o merecido destaque. (mais…)

                                    História, Leituras