À medida que o ano de 1974 foi ficando para trás, a evocação do 25 de Abril foi perdendo a tonalidade vibrante que manteve nos primeiros tempos. A estabilização do regime democrático, com as suas qualidades e imperfeições, tal como a instalação progressiva de uma sociedade menos desigual, foram induzindo distanciamento. Em cada aniversário, ressurgia sobretudo a memória afetiva de quem vivera a Revolução, ou de quem a preparara nos subterrâneos do exílio ou da clandestinidade, bem como uma compreensível nostalgia por uma fase do percurso pessoal e coletivo partilhada por quem desejava o retorno das utopias perdidas. Esperando por «outro 25 de Abril», como muitos diziam com convicção mas reduzida esperança. (mais…)
Será provavelmente a primeira vez que o faço de uma forma pública e com algum detalhe, mas já que se cumprem hoje quarenta anos sobre aquele 25 que mudou as nossas vidas, vou contar como vivi o meu. Eu era então militar. Em finais de 1972 fora detido pela polícia no decurso de uma manifestação estudantil contra a Guerra Colonial, que acabara com o apedrejamento de um banco considerado cúmplice da política do governo. Depois de interrogado pela PSP – e algum tempo após pela PIDE-DGS – vi o meu nome inscrito numa lista de cidadãos pouco ou nada passivos a integrar compulsivamente no Exército. (mais…)
À medida que nos fomos aproximando do centenário da Primeira Guerra Mundial, desdobraram-se as tentativas para explicar as suas circunstâncias à luz do presente. Todas têm coincidido em aspetos que a historiografia sempre deu como certos e incontroversos. Ninguém contesta, por exemplo, que ela começou quando poucos esperavam que pudesse ocorrer, que ganhou um extensão temporal e geográfica distante das expectativas de um confronto que se presumira curto e regional, e, acima de tudo, que introduziu um novo equilíbrio nas relações entre os Estados, perturbador da ordem internacional vigente e criador das condições para a eclosão, duas décadas depois, de um confronto ainda mais brutal. Existem, todavia, características que foi a última década de desenvolvimento do conhecimento histórico a reconhecer e destacar. Três delas justificam uma atenção especial: a guerra não opôs no terreno, pelo menos no seu início, modelos de Estado e de sociedade diametralmente opostos; desenvolveu-se num ambiente marcado por uma violência indiscriminada e sem precedentes; e emergiu no contexto de um conflito latente, aparentemente invisível, cuja gravidade não terá sido devidamente avaliada por aqueles que estavam no centro da decisão política. (mais…)
Após dez anos de dolorosa doença, acaba de morrer Adolfo Suárez (1932-2014), o homem que, na qualidade presidente do governo de Espanha, entre 1976 e 1981 apoiou o razoavelmente pacífico processo de transição política que conduziu o Estado espanhol do franquismo até a democracia. Foi justamente quando em 23 de Fevereiro de 1981 se encontrava numa sessão das Cortes na qual Leopoldo Calvo Sotelo iria tomar posse como seu sucessor que teve lugar uma tentativa de golpe de Estado, destinada a recolocar a direita franquista no poder e materializada então na violenta ocupação do parlamento por uma companhia da Guarda Civil chefiada pelo tenente-coronel Tejero Molina. Anatomia de um instante, do escritor Javier Cercas, é uma excelente reconstituição histórica deste episódio, invocando os acontecimentos desse dia e dessa noite para enfatizar, com flashes retrospetivos, o papel daqueles que considera terem sido os protagonistas da resistência à iniciativa golpista: Suárez, o general Gutiérrez Mellado, Santiago Carrillo, então o secretário-geral do PCE, e, do lado de fora do parlamento, o rei Juan Carlos. (mais…)
Monuments Men – Caçadores de Tesouros, realizado e interpretado por George Clooney, não é um grande filme. O ritmo é algo trôpego, a caracterização dos personagens quase sempre insípida – salva-se Cate Blanchett como Claire Simone, na verdade Rose Valland, a «Capitaine Beaux-Arts» – e nota-se uma hesitação excessiva entre a comédia que o não é e o drama que o não chega a ser. Melhora bastante na última meia hora, mas como filme convida um tanto ao bocejo de quem tenha dormido mal. Existe, porém, algo que o torna importante e o fará permanecer na memória de quem o viu. (mais…)
Pode parecer hoje incompreensível, ou no mínimo um pouco desajustado, que alguém de esquerda reconheça sem qualquer remorso que teve um dia como modelo de uma vida com sentido, feita de entrega, de internacionalismo e de solidariedade, a partida para Israel com a finalidade de partilhar uma experiência de trabalho comunitário num kibbutz. Mas foi isso que aconteceu com muitos militantes convictos da esquerda europeia durante as décadas de 1960-1970. Deverá recordar-se, em defesa desta memória recôndita, o facto dessas pequenas colónias integrarem então espaços de trabalho e de vida partilhados, formalmente igualitários, muitos deles de orientação laica e progressista, que apesar de nessa fase já conterem algumas funções de ocupação do território haviam sido em boa parte iniciativa de organizações associadas a um sionismo judaico com caraterísticas particulares, menos defensivo e mais aberto aos outros. Muito diferente do primitivo e daquele que agora conhecemos, mais assumidamente nacionalistas, religiosos, messiânicos e extremistas. (mais…)
Não existe história imaculada de ideologia. A par da efetiva impossibilidade de um reencontro total com o passado, ou da recuperação do que aconteceu sem a interferência dos padrões de perversão da memória, este é um dos motivos que torna irrealizável um conhecimento histórico completamente objetivo. Todavia, tal não implica uma subjetividade total: existem processos de aferição e de comparabilidade que separam o historiador, sempre em demanda de indícios materiais ou imateriais que sustentem a sua observação, do mero charlatão ou do vendedor de passados. Por este motivo, para que possa ser aceite e reconhecido pelo trabalho que desenvolve, as marcas de subjetividade do historiador devem encontrar-se menos na manipulação da informação do que no silenciamento de determinados aspetos. Ele não pode pôr-se a inventar, embora possa sempre desviar o olhar daquilo que menos lhe agrada. Foi o que fez, em particular na última obra – A Cortina de Ferro. O fim da Europa de Leste*, saída no início do ano passado e agora traduzida pela Civilização –, Anne Applebaum, a antiga jornalista polaco-americana, hoje reorientada para a história e a ciência política, autora do aclamado Gulag: Uma História, saído em 2003. (mais…)
A vida pessoal de Álvaro Cunhal, durante décadas rodeada de um secretismo não ajustado à sua presença pública, e o seu longo trajeto político, só muito parcialmente conhecido do cidadão comum, têm sido alvo de uma atenção crescente. A mudança começou em 1999, com o lançamento do primeiro volume da biografia escrita por José Pacheco Pereira (o quarto está prestes a sair). Apesar de olhada com desconfiança, devido às escolhas políticas do autor, por contornar a insistência do PCP em não disponibilizar os seus arquivos e por ter sido iniciada sem a cooperação do biografado, a obra rapidamente se impôs pelo valor documental, abrindo caminho para o desenvolvimento dos três modelos de abordagem da vida de Cunhal que estão em curso. O primeiro é o do estudo biográfico, apontado ao reconhecimento da sua vida e intervenção, sem qualquer valoração ética ou análise sectária; o segundo, de nítida influência partidária, propõe uma perspetiva controlada, associada ao recorte exemplar e heroico da sua personalidade; já o terceiro modelo centra-se nos pormenores da vida privada, explorando a atenção de um público voyeur e de menor exigência. Todavia, este trabalho pode ser ampliado seguindo outras estratégias. Uma delas passa por confrontar o trajeto do antigo secretário-geral do PCP com o de outras figuras do movimento comunista internacional suas contemporâneas, num exercício que enfatiza inevitavelmente a originalidade do seu caminho. (mais…)
Aos 97, Marina Ginestà, veterana francesa da Guerra Civil de Espanha, morreu em Paris no dia 6 de janeiro. O seu rosto tornou-se conhecido graças a uma fotografia tirada pelo alemão Hans Gutmann no terraço do Hotel Colón, em Barcelona [clique na imagem para ampliar]. Marina, combatente republicana e militante da Juventude Socialista Unificada, tinha então 17 anos e toda a esperança do seu lado. Reagindo muito mais tarde ao facto de ter dado rosto, durante algum tempo sem o saber, a uma das mais icónicas imagens da guerra, fez um comentário que dava um livro: «Dizem-me que tinha ali um olhar altivo. É bem possível. Vivíamos então a mística da revolução proletária e das imagens de Hollywood, de Greta Garbo e de Gary Cooper.»
Este anúncio publicado em finais de 1913 no Times londrino pelo explorador irlandês Ernest Shackleton, quando este procurava homens para integrar a viagem aventurosa de exploração e travessia da Antárctida que comandou entre 1914 e 1916, é verdadeiramente extraordinário. Os termos do anúncio prometem o pior – «jornada arriscada, baixo salário, frio penetrante, longos meses de completa escuridão, perigo constante, duvidoso regresso em segurança» – mas termina com a previsão, «em caso de sucesso», da única e maior das recompensas: «honra e reconhecimento». Nem todos os voluntários integrariam a equipa de 56 homens que em dois navios deixaram as águas britânicas a 8 de Agosto de 1914 para uma viagem que teria momentos intensamente dramáticos. Quem no seu perfeito juízo, nestes tempos de «turismo de aventura» e de riscos muito calculados, estaria em condições de responder afirmativamente a um desafio destes e de pôr-se a caminho de todos os perigos?
Este é o ano do 40º aniversário do 25 de Abril. Para muitos portugueses, a data relaciona-se com a sua experiência de vida. Se já não eram crianças na época que o antecedeu, se não perderam de todo a memória ou se não estavam comprometidos com o regime derrubado, para eles a data incorpora uma corrente forte de recordações. Para os restantes, aqueles que atingiram a idade da razão já depois da data fundadora da democracia, aquilo que os aproxima dela é principalmente a memória transmitida pelos mais velhos e a dimensão simbólica que ela foi incorporando. (mais…)
A 26 de novembro completaram-se 120 anos sobre o nascimento de Mao Tsé-Tung. A data foi lembrada em muitos lugares e em diferentes suportes, sobretudo em blogues e murais do Facebook, ou nas primeiras páginas das edições online de respeitáveis diários, mas só lhe atribuiu um destaque maior que o habitualmente concedido a uma vulgar efeméride – como a data da morte de um político ou o dia exato de uma descoberta científica – quem ainda seja capaz de reconhecer alguma coisa de positivo na intervenção pública e no legado histórico do antigo dirigente comunista chinês. (mais…)
Uma intervenção informal, destinada a dinamizar algum debate e concebida para um público que à partida desconhecia qual fosse. Trata-se da participação no TEDxCoimbra de 19 de Outubro de 2013, onde falei sobre «A História como Futuro» (o mote do encontro era Pelo sonho é que vamos).
Fui ver Hannah Arendt, de Margarethe von Trotta. As expectativas eram moderadas: grande parte da crítica levantava sérias objeções ao filme, mas algumas das pessoas com quem tinha falado e que já o tinham visto haviam gostado razoavelmente, se não «muito». Além disso, Arendt é Arendt, a filósofa de vida arriscada e de personalidade forte que escapou à bota antissemita e no exílio americano não deixou de assumir posições incómodas contra o governo ou as verdades convenientes. Fui portanto de espírito aberto e pronto para tudo. No entanto, esse tudo revelou-se bastante dececionante. O argumento foca-se numa espécie de pedagogia da «banalidade do mal para principiantes», com alguns passos nos quais flutuam conceitos algo ingénuos e com situações completamente caricaturais. O próprio referencial histórico – apoiado nas imagens televisivas a preto e branco do julgamento de Eichmann em Jerusalém, que por acaso me recordo de ter visto em criança na televisão – é muito simplificado, não enfatizando com o devido destaque a descrição desse «estado normal de obediência» da larga maioria dos alemães ao domínio nazi que, ele sim, poderia fundamentar com maior clareza a consideração do mal como parte da vida de todos os dias, da normalidade, «banalizando» até as suas expressões mais extremas. Salvou-se a representação excecional de Barbara Sukowa, uma Hannah forte e assertiva, mas ao mesmo tempo sensível e afetiva, como o era a verdadeira. E ficou-me no ar o aroma de um passado que já não participa do mundo que agora conheço: das aulas onde era possível fumar cigarro atrás de cigarro, do ruído único e familiar da máquina de escrever, das conversas argumentadas noite fora com inteligência e paixão.
Mais de três décadas após o suicídio de Adolf Hitler no seu bunker berlinense, uma perspetiva bastante redutora da fulgurante ascensão do nacional-socialismo alemão era ainda dominante entre os historiadores. De facto, o nazismo era visto como resultado exclusivo de uma combinação letal de maldade alucinada, protagonizada por uns quantos dirigentes e ativistas, com as circunstâncias de uma época perturbada e propensa a acreditar nas propriedades redentoras da experiência totalitária. Somente para o final do século se começou a compreender e a dar como adquirida a intervenção de outros aspetos até então relevados, como o aplauso ou o silêncio cúmplice de um grande número de alemães, ou a ingénua cegueira de muitos dos responsáveis políticos europeus da altura. Em O Império de Hitler, o britânico Mark Mazower expõe uma outra forma de entender o que aconteceu, não totalmente ignorada por outros historiadores do nazismo mas raramente considerada com o merecido destaque. (mais…)
Nos últimos vinte anos o interesse pela história do comunismo foi ampliado por dois fatores decisivos. O primeiro foi, naturalmente, a avalancha de mudanças propiciada pelas circunstâncias que levaram à Queda do Muro, instigando o interesse pelos fatores de transformação ocorridos em Estados que ao longo de décadas haviam sido olhados como subordinados a regimes imutáveis. A este fator de interesse foram adicionadas as estimulantes possibilidades de um alargamento do conhecimento trazidas pela abertura pública de arquivos até então inacessíveis e particularmente aproveitadas pelos historiadores. O segundo fator foi imposto pela presente reafirmação da desigualdade e da instabilidade do capitalismo, que tem proporcionado um regresso à crítica sistémica proposta por Marx e a uma reavaliação da justeza do valor utópico e emancipatório do ideal comunista. Recentemente vertida para o português, A Bandeira Vermelha, do historiador britânico David Priestland, relaciona-se com ambos os fatores, embora o faça de uma forma que permite diferenciá-la de outras obras de síntese sobre a história do comunismo que foram editadas nos últimos tempos. (mais…)
Apesar de conservar um rastro visível e constante na vida pública nacional das últimas quatro décadas, parte significativa do processo de descolonização de Angola tem permanecido em boa medida calada. As causas deste silenciamento são diversas. Há desde logo a influência da narrativa oficial, produzida pelas autoridades portuguesas em circunstâncias históricas complexas e dramáticas logo nos anos de 1974-1975, a qual foi ocasionalmente contrariada mas jamais revista. Outra causa tem a ver com o uso recorrente de relatos – geralmente impostos por setores politicamente conservadores ou emocionalmente envolvidos nos acontecimentos – mais pontuados pela nostalgia, pelo rancor ou pela incompreensão que por uma tentativa de perceber realmente aquilo que aconteceu. Além disso, o que se passou em Angola naquele período foi de certa forma empurrado para segundo plano pelos terríveis caminhos da violência ali percorridos após a independência do país. (mais…)
As minhas primeiras biografias eram hagiografias. Retratavam invariavelmente os biografados como santos, seres incomuns, grandiosos e perfeitos, dotados de uma vontade indómita que ninguém sabia de onde vinha. Eram quase sempre histórias de vida muito simples, condensadas para leitores principiantes e escritas de forma cândida, em boa parte influenciadas pela conceção romântica de heroísmo, que destacava os biografados como modelos de bronze diante dos quais o leitor não podia ter outra atitude que não fosse a da admiração mais incondicional. Recordo sobretudo histórias de vida de compositores, como Mozart, Beethoven, Schubert, Chopin ou Mahler, desenhadas sobre o modelo de Sísifo, o humano rebelde castigado por Zeus ao qual foi imposto o dever de cumprir até à eternidade a tarefa sempre inacabada de carregar um bloco de mármore até ao topo de uma montanha. Também eles se mostravam exímios, na vida pessoal como na sua arte, a cumprir o duro destino que no entanto, contrariamente ao que acontecera com o filho de Éolo, lhes traria a imortalidade. (mais…)