O ano de todas as esperanças

Este é o ano do 40º aniversário do 25 de Abril. Para muitos portugueses, a data relaciona-se com a sua experiência de vida. Se já não eram crianças na época que o antecedeu, se não perderam de todo a memória ou se não estavam comprometidos com o regime derrubado, para eles a data incorpora uma corrente forte de recordações. Para os restantes, aqueles que atingiram a idade da razão já depois da data fundadora da democracia, aquilo que os aproxima dela é principalmente a memória transmitida pelos mais velhos e a dimensão simbólica que ela foi incorporando.

Para os primeiros, cada vez menos, a lembrança comporta sempre momentos fortes. Remete para uma outra era, para uma realidade que foi ficando para trás, que correspondeu a um tempo de sobrevivência num país esgotado, deprimido, desigual, vergado pelo medo, ao qual sobrava na imaginada dimensão imperial aquilo que faltava em democracia e desenvolvimento. Para muitos deles foi também um duro tempo de combate, sempre determinado, independentemente da bandeira que os acolhia, pelo desejo de erguer um país melhor e socialmente mais justo. E depois foi o momento da libertação, tão esperado quanto inesperado, inesquecível e emocionante.

Já a dimensão simbólica do 25 de Abril, assente na comparação do presente com o modelo de sociedade à qual pôs fim, construída nas últimas décadas, incorporou dimensões muito diversas que foram envolvendo sucessivas gerações. Nem sempre esta aproximação foi feita da melhor forma: por vezes a evocação da data incorporou uma nostalgia autocelebratória e repetitiva, imune aos novos valores e linguagens, ao inevitável distanciamento de quem já só conheceu as dinâmicas da liberdade. Produziu-se assim, em alguns momentos, uma leitura banalizada, esvaziada de sentido, da qual muitos dos mais jovens se foram distanciando e os setores mais retrógrados se foram apropriando, usando o 25 de Abril como uma flor na lapela e servindo-se do jogo democrático que ele permitiu para acederem ao poder.

Ainda assim, este processo incorporou uma área de consensual reconhecimento pelo que de bom o regime democrático trouxe. Não apenas a liberdade política, o fim da guerra e alguns princípios de equidade social, já de si suficientes para lhe estarmos gratos. Mas sobretudo a considerável ampliação do bem-estar, a melhoria extraordinária da saúde, um salto enorme na extensão da educação, o progresso visível das infraestruturas, a extensão da solidariedade social e da abertura às culturas do mundo. Até há pouco, poucos tinham a desfaçatez de mentir para o negarem.

No entanto, no contexto de crise que atravessamos, favorecedor de uma certa culpabilização retrospetiva, o discurso da direita, apoiado na ignorância ou no servilismo de alguma comunicação social, tem deixado cair a máscara democrática, questionando tudo o que foi erguido nas últimas quatro décadas. Claro que a História não anda para trás e as circunstâncias são outras, mas de modo algum pode ser apagado – mesmo sabendo nós hoje que nem todos os caminhos trilhados foram os mais coerentes – aquilo que de bom aconteceu, ou esquecido o quinhão de felicidade conquistado, deixando que sobre o futuro caiam apenas as sombras. Por isso, neste 2014 em que tanto se irá falar do 25 de Abril, é preciso reter a lição, por ele doada, de confiança no futuro e de capacidade para um encontro coletivo com o nosso destino. Aqui chegadas naquela «clara e límpida madrugada» desse ano de todas as esperanças.

Publicado originalmente no Diário As Beiras.

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