Nos 120 anos de Mao

Mao

A 26 de novembro completaram-se 120 anos sobre o nascimento de Mao Tsé-Tung. A data foi lembrada em muitos lugares e em diferentes suportes, sobretudo em blogues e murais do Facebook, ou nas primeiras páginas das edições online de respeitáveis diários, mas só lhe atribuiu um destaque maior que o habitualmente concedido a uma vulgar efeméride – como a data da morte de um político ou o dia exato de uma descoberta científica – quem ainda seja capaz de reconhecer alguma coisa de positivo na intervenção pública e no legado histórico do antigo dirigente comunista chinês.

Podemos dividir essas pessoas em cinco grupos. Em primeiro lugar, os atuais dirigentes do Partido Comunista Chinês, que apesar de terem traído os ideais coletivistas e igualitários de Mao continuam a precisar do sistema centralista e autoritário que este ergueu. Em segundo, uma parte substancial da população chinesa, principalmente a mais idosa, a quem as experiências de transformação da velha sociedade postas em prática pelo «Grande Timoneiro» ainda suscitam um certo assombro e reconhecimento. Em terceiro, aqueles que acreditam nas lendas e omissões construídas, como foi sempre habitual no trajeto das chamadas «democracias populares», a propósito da biografia do líder máximo e herói fundador. Em quarto lugar, alguns dos admiradores de personalidades, como Badiou ou Žižek, que encontram virtualidades positivas numa certa dimensão do maoismo, em condições de conferir uma dimensão fecundante e detentora de uma racionalidade própria à violência revolucionária. E em quinto, aqueles que, reconhecendo «certos erros e desvios» no processo de construção do socialismo que foi da sua responsabilidade, alguns deles «muito grandes», ainda assim continuam a ver em Mao um dos seus, e na experiência da China comunista uma lição essencialmente positiva.

A verdade é que toda esta valorização do legado maoista cai por terra quando confrontamos alguns passos decisivos do seu percurso e das escolhas políticas que foi fazendo, o que é hoje possível devido a um número crescente de estudos históricos e biografias de caráter não-apologético. Desde logo, com a forma como ascendeu no interior do Partido, frequentes vezes através de atos de traição destinados a isolar e a eliminar aqueles que lhe pudessem fazer sombra. O último terá sido Chu-En-Lai, segunda figura do partido, particularmente prestigiada no exterior, que viu serem-lhe sucessivamente retiradas competências e, no final da vida, negado até tratamento médico adequado. Depois, o modo como o seu «génio militar» causou, como aconteceu também com Estaline quando da invasão alemã da União Soviética, perdas imensas nas tropas comunistas e entre as populações por elas controladas, diante das tropas japonesas ou do exército nacionalista. A seguir, a forma absolutamente despótica utilizada para governar o partido e o Estado, assente numa rede apoiada no medo e na denúncia. Porém, o caráter mais brutal e imperdoável da sua intervenção levou-o a cabo com a insensata gestão da economia durante o Grande Salto em Frente (1958-1960), afastando-se do modelo de planificação soviético e provocando uma vaga de fome na China que, de acordo com números considerados moderados, causou perto de 20 milhões de vítimas. E depois com a Grande Revolução Cultural Proletária – tudo em «Grande», à escala do país e da sua personalidade – que, principalmente entre 1966 e 1969, em nome de um anti-intelectualismo «de classe» e de uma recusa da História, procurou aniquilar com requintes de crueldade a elite chinesa, substituindo-a por uma outra, inteiramente renovada e fiel.

Nos 120 anos de Mao, no seu caso como em tantos outros, a melhor homenagem que pode ser feita à história do socialismo e à dimensão dos seus ideais não passa pelo branqueamento das perversões, ou pela desculpabilização daqueles que foram os seus piores intérpretes e executantes, mas justamente pela sua denúncia com recurso aos documentos e a uma interpretação não marcada pelo dogma ou pelo preconceito. Para que, regressando a uma recorrente analogia com a frase que Marx, evocando Hegel, deixou no 18 de Brumário de Luís Bonaparte, os factos e personagens da história do mundo não ocorram por duas vezes, «a primeira como tragédia e a segunda como farsa».

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