9 de novembro de 1989. Anoitecia e eu começava a jantar quando tive a invulgar sensação de estar a viver em direto a História. O televisor estava ligado e pude então assistir à «primeira revolução televisionada». Diretamente das ruas de Berlim para os lares do planeta, o Muro de betão erguido em 1961 e a ordem mundial que ele simbolizava desfaziam-se às mãos de uma multidão eufórica que não sabia aquilo que se seguiria, mas parecia possuída de uma consciência clara do que não desejava. Projetado a partir daquele momento, as convulsões do biénio seguinte levariam ao fim dos regimes europeus do «socialismo realmente existente», terminando em 26 de dezembro de 1991 com a dissolução formal e definitiva da União Soviética. Era o desabar do mundo vivido e observado por várias gerações.
O regresso da extrema-direita ao primeiro plano do debate
político nas sociedades democráticas tem dado um papel de relevo aos chamados
«usos da História». Por isso, é um erro atribuir a esta disciplina um lugar
neutro, limpo, silencioso, supostamente acima dos interesses e dos conflitos. Se
vivemos a era da globalização, permanecemos ainda herdeiros das estruturas
políticas nascidas no século XVIII, o que, como notou Marc Ferro, se reflete em
muitos dos problemas e dos confrontos que enfrentamos. Estes continuam a passar
por batalhas em redor da democracia e da liberdade, do papel do Estado e dos
nacionalismos, do lugar da solidariedade e do individualismo, dos direitos
humanos e da igualdade, bem como pelos processos de transformação que seguem modelos
e ideais contraditórios, associados a diferentes interesses.
Quem se interesse de modo crítico pela história das ideias políticas conhece a ambiguidade que há mais de cem anos acompanha o conceito de social-democracia. Declarações de Catarina Martins ao Observador, nas quais considerou existir uma dimensão social-democrata no programa do Bloco de Esquerda, trouxeram de novo alguma atenção a esse equívoco, tantas vezes alimentado por circunstâncias históricas, mas também pelo desconhecimento e pelo dogmatismo. Nada tem isto a ver com o PSD, partido liberal cuja inadequada designação resultou das circunstâncias de Abril, mas antes com os setores que à esquerda olham o conceito com aprovação ou descrédito.
«Sinto muita vezes que sufoco no interior de um magnífico deserto», escreveu Victor Serge (1890-1947) a partir do exílio no México. Serge, bolchevique internacionalista desde a primeira hora, vivia essa impressão na dupla condição de opositor a Estaline e também ao comodismo dominante na comunidade de exilados que se lhe opunham. Num apontamento de 1943 falava da «cobardia dos intelectuais» – ele, toda a vida um intelectual – e do maior interesse de muitos destes pelas questões teóricas, pelo puro diletantismo, em detrimento do combate diário. Considerava a política como «feita essencialmente de pessoas, não de análises», propondo até ao fim uma atitude de compromisso e iniciativa radicada na melhor tradição bolchevique. Aquela que Estaline destruiu três vezes: primeiro pelo golpismo interno, depois pela violência e pelo medo, por fim pela desmobilização de boa parte dos que se lhe haviam oposto e Serge considerava «desertores». Para ele, todavia, a desistência era impensável, ainda que a sua vida de revolucionário passasse agora pelo «deserto» que referiu, «magnífico» porque feito, contra todas as adversidades e fugas, de convicção e empenho.
Na fotografia: Victor Serge, o poeta dadaísta Benjamin Péret, a pintora surrealista Remedios Varo e André Breton, que Serge considerava o típico diletante (França, 1941) A partir da recente edição crítica de «Notebooks: 1936-1947», de Victor Serge, e de uma nota de leitura de Alex Press
Vivemos uma inquietante vaga de rasura da memória projetada a
partir do apagamento, da reescrita e da trivialização de episódios da história.
Uma parte produzida de forma consciente, com objetivos políticos precisos,
resultando a outra apenas da leviandade, da indiferença ou da ignorância. Por
isso o vínculo entre história e memória está na ordem do dia, seja para quem
aproxima estas duas categorias de representação do passado, seja para os que pretendem
a sua separação. Olhar com sentido crítico e pragmatismo a relação entre ambas
requer um banho de realidade.
Em 2015 duas fundações francesas de investigação divulgaram
os resultados de um inquérito subordinado ao tema Mémoires à venir. Envolveu
cerca de 32 mil jovens de 31 países – Austrália, Canadá, Estados Unidos, Japão,
Índia, Israel, Rússia, Turquia e quase toda a Europa – com idades compreendidas
entre os 16 e os 19, e visava conhecer aquilo que os cidadãos educados já neste
milénio retêm dos grandes acontecimentos do século XX, com a particularidade de
terem sido colocadas as mesmas questões a pessoas de regiões e culturas muito diversas.
Os acontecimentos mais referenciados foram aqueles que incorporaram uma
dimensão traumática: o Holocausto, as bombas atómicas sobre o Japão e as duas
guerras mundiais. Dos episódios mais recentes, destacaram-se os que em
1989-1991 envolveram a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética.
O título desta crónica parafraseia o
de um livro do historiador Tony Judt sobre três intelectuais franceses – Léon
Blum, Albert Camus e Raymond Aron – com personalidades singulares e percursos muito
diversos, mas que coincidiram no sentido exigente da sua responsabilidade perante
o mundo. Encararam-na num duplo sentido. Por um lado, sob a perspetiva de quem o
observa de maneira informada, razoavelmente liberta dos filtros impostos pelas ideologias,
dos modismos e dos lugares-comuns. Por outro, agindo, escrevendo e falando em
função das suas próprias conclusões, obtidas através da reflexão e da crítica, e
assumindo-as de uma forma pública, ainda que tal os tenha colocado por vezes contra
a maioria dos que pertenciam ao seu campo político.
Evocam-se neste Abril cinquenta anos
sobre a «Crise Académica de 1969» em Coimbra. Os seus acontecimentos podem ser hoje
encarados de três formas diferentes: duas mais voltadas para a celebração, uma
terceira ocupada com a compreensão histórica. A primeira contém o testemunho
dos que a viveram, retomando com orgulho e nostalgia uma parte memorável das
suas vidas e o contributo maior dado à luta pela democracia. A segunda, a ser
vista com alguns cuidados, é ocupada com perspetivas parciais ou equívocas, por
vezes associadas à manipulação utilitária e institucional da memória. A
terceira forma é preenchida por olhares retrospetivos e compreensivos sobre o
acontecimento e a sua época.
Perceber a «Crise» requer, em primeiro lugar, conhecer o seu contexto, e não apenas os factos que em Abril de 1969 a projetaram. Desde logo, observando a mudança sociológica do ambiente universitário, onde crescia a presença da classe média e das mulheres. Depois a expansão da cidade, com um timbre cada vez mais cosmopolita e urbano. Crucial foi também a influência política da «abertura marcelista», notória entre 1969 e 1971 (e logo de seguida infletida), com maior flexibilidade da censura e uma moderação provisória nos processos da repressão. Importante também foi a presença de uma cultura política de oposição ao regime, em crescimento desde as eleições de 1958, e de uma diversificação das suas correntes, com uma grande influência política e vivencial do marxismo e do existencialismo. Indispensável a entrada no meio universitário da atitude hedonista, libertária e inconformista dos anos 60, associada em boa parte à nova cultura juvenil de matriz anglo-saxónica. Para além da importância da vida estudantil pautada por uma cultura de debate, informada e crítica, que em Coimbra incorporava a atividade dos organismos da AAC e envolvia a sociabilidade dos cafés e das repúblicas, enquanto a cultura da «sociedade académica tradicional» tendia a desaparecer.
Durante cerca de três décadas dei aulas sobre a dimensão cultural, política e vivencial do romantismo oitocentista. Começavam invariavelmente por procurar diluir a conceção do romantismo tardio, ou ultrarromantismo, que transformava o conceito numa expressão doentia – sob a forma de sentimento aparentemente dócil e contemplativo, mas traduzida em gestos por vezes bárbaros – da posse de alguém por outro alguém. Em regra, de uma mulher por um homem, embora pudesse ocorrer o contrário, ou pudesse também acontecer algo de menos convencional.
Começo por contar um episódio ocorrido comigo que já referi em público algumas vezes. Tendo há algum tempo sido convidado para participar num ciclo de conferências-debate sobre o movimento estudantil, fiz aquela que me competiu sobre a «crise de 69», o importante momento do combate da juventude universitária contra o autoritarismo do regime e das autoridades universitárias que aconteceu em Coimbra e do qual se evoca agora o cinquentenário. No final da sessão, num daqueles momentos em que os conferencistas contactam o público, fui abordado por um senhor que me disse o seguinte: «olhe, gostei imenso de o ouvir, mas tenho a dizer-lhe uma coisa: tudo o que disse é mentira, pois eu estive lá e sei que não foi assim.» É claro que tivemos de esclarecer o imbróglio. Fomos beber um café e antes de nos separarmos já essa pessoa me dera razão: «afinal estive lá, mas não vi certas coisas e não fiz algumas ligações».
Uma das maiores conquistas da era da
comunicação poderá alimentar a sua destruição. Quando, a partir dos meados do
século XIX, livros e jornais passaram a ter como alvo um público alargado,
alimentado pelo progresso da alfabetização e pelo desenvolvimento do ensino
médio, nasceu a «opinião pública», associada à expansão e à partilha da informação
e do conhecimento. Com todo o potencial democrático possibilitado pelo facto de
mais pessoas poderem conhecer, opinar, debater e agir no plano político a
partir de uma ideia mais completa do mundo que pisavam. Por isso, no processo
de centralização administrativa dos Estados iniciado no mesmo período
histórico, o controlo e a manipulação da informação foram ganhando importância.
Em alguns casos através do controlo do sistema educativo e da propaganda do
Estado, noutros, mais graves e aplicados nas ditaduras do século seguinte, mediante
fortes mecanismos de censura e de repressão das vozes mais livres. Em qualquer
caso, livros e jornais continuaram a ser um espaço privilegiado para a
construção do saber, da liberdade e da cidadania.
O presentismo é uma categoria de análise do tempo, criada pelo historiador francês François Hartog, segundo a qual passado e presente desaparecem como referentes da experiência humana, seja esta pessoal ou coletiva, dado passarem a valer apenas pela forma como são compreendidos no momento. Nestas condições, o próprio futuro desvincula-se de toda a construção utópica, sendo visto como mais do mesmo e deixando de suscitar esperança nos indivíduos e nas comunidades. Resta única e exclusivamente o presente como instância de orientação no tempo: tudo é apresentado como se passado e futuro fossem realidades incertas, que não têm lições a dar-nos, nem projetam a nossa vida para horizontes de progresso. Para os presentistas, vivemos um eterno presente e só este é real.
A história dos últimos anos da
oposição ao Estado Novo não pode ser feita sem ter em conta o movimento
estudantil e, dentro deste, sem mencionar os acontecimentos que tiveram lugar
em Coimbra durante a «crise académica» vivida entre Abril e Julho de 1969. A perfazer
agora meio século, esta configurou um momento crítico da vida portuguesa
daquela época, marcando para sempre o país, a cidade, a sua universidade e quem
a viveu. Tendo sucedido numa fase de relativa abertura do regime – em plena
«primavera marcelista», um tempo de esperanças rapidamente goradas –,
representou, para toda uma geração de universitários, uma parte inesquecível
das suas biografias pessoais e uma escola de política e de democracia. Ao mesmo
tempo, ajudou a sacudir um sistema político decrépito que cinco anos depois
iria ruir com estrondo.
Durante o Estado Novo, o passado de Portugal ensinado na primária – nas antigas terceira e quarta classes – era muitíssimo simplificado, embora contivesse uma pesada carga de ideologia. Os conteúdos eram apenas de natureza heróica, épica ou sagrada, e na forma tudo era limitado aos factos mais básicos, dispostos numa cronologia linear que seguia ano após ano a mera ordem das dinastias e dos reis. Terminava em 1910, naturalmente, e depois dava um salto até 1926 e à emergência de Salazar. A Primeira República desaparecia assim, apresentada, tal como os anos que se haviam seguido à Revolução de 1820, como a era «do gato e do rato». Uma permanente e insana balbúrdia que era preciso apagar.
O recente episódio mediático ocorrido com a viagem de António Costa a Angola, quando uma evidente falha dos serviços de protocolo fez com que a indumentária mais informal do primeiro-ministro usada à chegada a Luanda se transformasse, na imprensa e nas redes sociais, em arma de arremesso contra si e o seu governo, conduziu-me até ao passado. Ao encontro de uma das vertentes dos preconceitos atávicos contra esquerda expressos por setores conservadores. Ao mesmo tempo, revisitei fantasmas a habitar ainda velhos armários.
Entre 1971 e 1977, ano em que dela me afastei por razões de ordem moral – as divergências políticas chegariam mais tarde –, mantive uma militância ativa na esquerda à esquerda do PCP. Na época, os setores conservadores gostavam de associar uma atitude social própria de parte dos que se afastavam da velha ordem a determinadas formas do estar e do parecer. Estas traduzir-se-iam em escolhas relacionadas com o estilo de vida, a etiqueta, o vestuário ou a higiene, que tais setores apontavam na tentativa de denegrir os que delas participavam e os ideais que partilhavam. Ao mesmo tempo, um certo senso comum, apoiado numa ética elitista que chegava à classe média e tinha em boa medida uma raiz geracional, exibida principalmente pelos mais velhos, desqualificava muitos deles como pessoas sem maneiras, que vestiam de forma descuidada e não gostavam especialmente de tomar banho. (mais…)
1. É natural que uma efeméride como a que acaba de envolver os cinquenta anos decorridos sobre o movimento de Maio de 1968 em França suscite leituras contraditórias. Se elas já o eram na época, se assim se foram mantendo ao longo de décadas, não existe razão alguma para que não continue a ser assim. Como sempre, essas leituras são frequentes vezes influenciadas, a meu ver negativamente, por dimensões de sectarismo, de wishful thinking, de nostalgia e de escasso conhecimento, não só do que realmente aconteceu – e não interessa aqui se alguns dos comentadores «estiveram lá» ou não -, como dos debates sobre a interpretação do episódio que nestes cinquenta anos têm acontecido. (mais…)
1. Se tivesse nascido três ou quatro anos mais cedo, provavelmente teria sido «companheiro de jornada» ou mesmo militante do PCP. Esse era o destino mais plausível para um jovem que tomasse consciência da realidade de um país socialmente desigual, amordaçado, fechado e envolvido numa guerra injusta, e possuísse vontade sincera e a coragem suficiente para correr riscos ao ajudar a transformá-lo. O Partido Comunista representou, até ao final da década de 1960, praticamente a única possibilidade de conceber um país-outro, de pertencer a um coletivo que se opusesse de facto ao regime, e era, para quem conhecesse a sua luta, um exemplo admirável de tenacidade e heroísmo.
Mas não foi assim: despertei para a política aos 15, a idade que tinha na primavera de 1968. Por esses dias, em lugares como Paris e Praga, surgiam hipóteses, que, embora por vezes ingénuas, emergiam, sobretudo junto de muitos ativistas mais jovens, como alternativas aos males do capitalismo, mas também ao modelo autoritário e esgotado do «socialismo real» e aos partidos que nele viam um bom exemplo. O «Maio de 68» e a «Primavera de Praga», brutalmente esmagada em Agosto com a entrada dos tanques soviéticos, representou para muitos dos da minha geração um corte com uma possibilidade que deixava de os mobilizar. Foi contra os efeitos desta clivagem que em 1970 Álvaro Cunhal escreveu O radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista, o seu texto menos sustentado e mais injusto. Muitos continuaram a respeitar o PCP, a sua história, a sua luta, não se tornaram «anticomunistas», mas passaram a estar mais atentos à forma como as suas escolhas e leituras foram tendo dificuldade em lidar com alguns aspetos da rápida mudança do mundo e das formas de nele viver, por aquela época sentida também em Portugal. (mais…)
Em Maio de 68 explicado àqueles que o não viveram, o documentarista Patrick Rotman afirmou ser este «um objeto histórico encerrado, que devemos olhar e analisar como tal». Muito pelo contrário, é possível e mesmo indispensável encarar o «Maio francês» como um dos momentos que conferem sentido aos últimos cinquenta anos da história mundial, permanecendo aberto a interpretações e a efeitos que lhe atribuem uma dimensão singular e permitem considerá-lo, pelo menos por enquanto, como memorável.
O ano de 1968 foi o mais turbulento do pós-guerra, carregado de acontecimentos inesperados, violentos, exaltantes ou trágicos: a ofensiva do Tet no Vietname, o auge do movimento pacifista contra o apoio dos EUA a Saigão, a explosão por todo o lado da contestação estudantil, a afirmação do Movimento de Libertação das Mulheres e do fenómeno da contracultura, a Primavera de Praga, as barricadas de Paris, o assassinato de Martin Luther King e de Robert Kennedy, os protestos de Chicago contra o racismo, a invasão da Checoslováquia pelos tanques soviéticos, o massacre de 200 estudantes na cidade do México. Neste contexto, o que ocorreu em França poderia ser um episódio sonoro, é certo, mas curto e de limitado impacto; já o não será, todavia, se o olharmos como sinal de um tempo e prenúncio de algumas transformações. (mais…)
Em 1968 o mundo inteiro aparentava mover-se mais depressa, ainda mais depressa. Tudo parecia estar a acontecer em Paris, em Praga, em Berlim, nos Estados Unidos, Brasil e México, envolvendo a União Soviética, Cuba, a China, o Vietname, na verdade o mundo inteiro. Combates de rua com a polícia antimotim, guerrilhas urbanas e rurais, surgimento e auge da contracultura, revoluções sucessivas nas artes, no romance, na filosofia, no cinema, na música, acompanhando a rápida expansão da indústria cultural. (mais…)