Anónimos, pseudónimos e «noms de guerre»

Uma das maiores conquistas da era da comunicação poderá alimentar a sua destruição. Quando, a partir dos meados do século XIX, livros e jornais passaram a ter como alvo um público alargado, alimentado pelo progresso da alfabetização e pelo desenvolvimento do ensino médio, nasceu a «opinião pública», associada à expansão e à partilha da informação e do conhecimento. Com todo o potencial democrático possibilitado pelo facto de mais pessoas poderem conhecer, opinar, debater e agir no plano político a partir de uma ideia mais completa do mundo que pisavam. Por isso, no processo de centralização administrativa dos Estados iniciado no mesmo período histórico, o controlo e a manipulação da informação foram ganhando importância. Em alguns casos através do controlo do sistema educativo e da propaganda do Estado, noutros, mais graves e aplicados nas ditaduras do século seguinte, mediante fortes mecanismos de censura e de repressão das vozes mais livres. Em qualquer caso, livros e jornais continuaram a ser um espaço privilegiado para a construção do saber, da liberdade e da cidadania.

A indústria cultural, da qual falavam Adorno e Horkheimer na década de 1940, e cujos efeitos a sociedade de consumo veio ampliar a partir dos anos sessenta, associada a uma nova explosão da educação de massas, introduziu outro fator neste processo. Consistiu na transformação de muitos dos meios – jornais e revistas, editoras, estações de rádio e de televisão – em instrumentos de manipulação ou de alienação impostas por interesses privados. Particularmente com a televisão, a «caixa que mudou o mundo», esse processo ganhou nova grandeza, moldando consciências e perceções com recurso ao fator aliciante da imagem. Em todos estes casos, porém, mantinham-se os espaços de resistência à imposição de perspetivas, nomeadamente no campo da imprensa e da edição, onde era possível encontrar espaços livres ou alternativos. Vigoravam também, nos meios de comunicação, normas de deontologia, maioritariamente aplicadas, que forçavam quem opinava a assumir as ideias, sempre sujeito a um contraditório apoiado na lei. Tudo isto através de processos nos quais cada parte possuía um nome e um rosto.

É claro que existia e se foi mantendo o recurso ao pseudónimo literário, ao «nom de guerre» usado na clandestinidade, à camuflagem da identidade falsa, que permitiam contornar as regras da responsabilidade sobre aquilo que se escrevia ou se dizia; mas esta era a exceção, não a norma. Com o surgimento da Internet, porém, a situação alterou-se de modo muito significativo. Após uma fase de pioneirismo na qual quase todos conheciam todos, a expansão muito rápida dos serviços disponíveis e dos utilizadores colocou novas fronteiras no campo da responsabilização pessoal, tanto pelas opiniões como pelas suas formas de contraditório. A situação entrou numa nova etapa com os blogues e, mais ainda, com a explosão das redes sociais ou dos sistemas de comentários em linha. Com estes, veio a possibilidade de qualquer pessoa escrever, comunicar, opinar, contraditar, o que em termos gerais é bom, mas pode também produzir efeitos perversos. Sobretudo quando, sob a capa do anonimato ou da falsa identidade – apenas aceitáveis sob regimes autoritários e persecutórios –, a mentira, o boato, a calúnia, a agressividade verbal, ou a tolice pura e simples, substituem a responsabilização pessoal e a coerência dos argumentos, destruindo o debate.  

A verdade é que em democracia o anonimato sem uma justificação sólida, como as máscaras que escondem facilmente a expressão, as vozes que se alteram para camuflar o proprietário, os anoraques que tapam o rosto, oferece uma sensação de poder e de impunidade que tem todas as condições para impedir um debate sério e franco seja sobre que tema for, servindo inversamente para libertar o ódio e a desconfiança. Basta passar pelas caixas de comentários de alguns jornais ou por certos murais do Facebook para ver autênticas lixeiras a céu aberto de ignorância e insultos que se fazem passar por «opinião». Por isto, a criação de mecanismos de responsabilização nestes novos territórios de comunicação e debate pode ser a única forma de manter as suas potencialidades como instrumentos capazes de alimentar a opinião pública e a cidadania. Não censurando as ideias, mas impondo um rosto visível a quem as expressa.

Rui Bebiano

Publicado originalmente no Diário As Beiras de 9/3/2019
    Democracia, Direitos Humanos, História, Opinião.