Arquivo de Categorias: Biografias

(Nôtre, leur) France

Merece uma observação um pouco mais longa, mais densa e, tanto quanto possível, arrefecida, mas para já fica o essencial. Diria que, com o desaparecimento físico de Mário Soares, desapareceu também um dos últimos políticos portugueses de primeiro plano que tinham na França, na dimensão mais cosmopolita, laica e progressista de uma parte da sua cultura, no imaginário poético, político e vivencial de Paris, na relação com um universo espacial e geracional essencialmente francófono e francófilo, um padrão de reconhecimento e de intervenção no mundo. Também por isso, as palavras de Baudelaire, retiradas de «Le voyage» e ditas pela filha Isabel na cerimónia mais formal das suas exéquias, soou como uma despedida e um epitáfio. «Ô Mort, vieux capitaine, il est temps! levons l’ancre! / Ce pays nous ennuie, ô Mort! Appareillons! / Si le ciel et la mer sont noirs comme de l’encre, / Nos coeurs que tu connais sont remplis de rayons!» Não se trata de um drama – embora para os mais nostálgicos possa sê-lo -, pois a vida prossegue e o mundo não cessa por isso de rolar, mas não deixa de ter algo de trágico. Ou, pelo menos, de sinalizar um render da guarda.
[Originalmente publicado no Facebook]

    Apontamentos, Biografias, Olhares

    Um Mário contra o único

    Não se trata de concordar ou não com as escolhas politicas de Mário Soares. Pessoalmente, discordei de grande número delas e só por uma vez lhe dei o meu voto. Também não se trata de gostar ou não da sua maneira de ser. No que me diz respeito, sempre tive simpatia pela bonomia e pelo patente hedonismo, tão raros na política profissional e tão necessários, mas essa é uma escolha subjetiva. Trata-se de reconhecer o seu papel, ainda que numa outra barricada, na construção da democracia portuguesa. E de respeitar uma vida de entrega ao bem comum. Ou, mais simplesmente, trata-se de respeitar uma vida. O ódio de dentes cerrados que vai por aí – à direita e à «esquerda», diga-se – só pode vir de quem, para além de ignorante, desmemoriado ou mal-formado, conviveria bem com um regime de partido único, no qual toda a gente fosse forçada a pensar do mesmo modo ou a calar a divergência. Ou aceita um pensamento capaz de justificá-lo. Foi contra isso que Mário Soares se bateu a vida inteira. E é por isso que também lhe deixo aqui um obrigado e um imenso adeus.
    [Originalmente publicado no Facebook]

      Apontamentos, Biografias, Democracia, História

      Sobre uma biografia de Estaline

      Três notas prévias:
      1. Esta nota de leitura foi escrita e publicada em Dezembro de 2006. Republico-a no momento em que a biografia de Estaline a que se refere, escrita por Simon Sebag Montefiore, vai ser distribuída, a partir de sábado, com o semanário Expresso. Aconselho a sua leitura – crítica, como todas as leituras o devem ser – e julgo ter explicado aqui porquê.
      2. O livro é divulgado em tempo do que parece ser uma nova Guerra Fria, quando a direita se serve dos crimes cometidos em nome da esquerda e, infelizmente, parte desta insiste em recusar a História como meio de aprendizagem. Seria bom que quem luta por uma causa essencialmente justa, como a do socialismo e do comunismo o é, aprendesse, de mente aberta e sem tabus, com os erros e crimes que em seu nome foram cometidos. Redimindo a memória daqueles que eles atingiram, em grande parte adeptos convictos da sua causa.
      3. Neste intervalo foram numerosos os estudos históricos publicados sobre Estaline, o estalinismo e o Gulag, vários deles traduzidos, que são merecedores de consideração profissional e não podem ser considerados «propaganda do inimigo» ou «aldrabice», como por estes dias tenho lido. Um deles é outro de Montefiore, sobre O Jovem Estaline, traduzido entre nós em 2008. Voltarei ao assunto logo que possível.

      Da casa dos mortos
      17/12/2006

      O subtítulo, bastante infeliz, recorda uma certa literatura antisoviética do tempo da Guerra Fria. Mas Estaline – A Corte do Czar Vermelho, do jornalista e historiador britânico Simon Sebag Montefiore (ed. Alêtheia, 2006), não é, de forma alguma, um livro de propaganda ou de um sensacionalismo oportunista fora do tempo. (mais…)

        Biografias, Democracia, História, Memória

        Mentira, nostalgia e melancolia

        Fidel, Jean-Paul e Simone em 1960
        Fotografia de A. Korda (cor de M. Athanasiadis)

        Passados os dias que se seguiram ao desaparecimento mais ou menos esperado de Fidel Castro, em que foram propostas interpretações do seu papel histórico muitas vezes opostas e quase sempre pouco racionais, regresso ao assunto para olhar justamente alguns dos rostos que tomou esta irracionalidade. Para o fazer, recorro a três conceitos que, na sua relação com diferentes modos de observar a vida e a intervenção pública do líder cubano, refiro aqui de uma forma inevitavelmente concisa e parcial. A cada um associo uma diferente proposta de leitura, que vivamente recomendo a quem se interesse por estes temas.

        O primeiro conceito é o de «mentira». Falei em crónica recente da «pós-verdade», sobre a qual Ralph Keyes publicou em 2004 o livro The Post-Truth Era. Para Keyes, vivemos um tempo de manipulação da verdade, no qual aquilo que se diz tem mais valor do que a realidade à qual supostamente se refere. Isto leva a uma constante deturpação ou mesmo à invenção de factos, fazendo passar a mentira por verdade. Foi em parte o que aconteceu com a identificação liminar, por estes dias repetida como um mantra, de Fidel como ditador. Se observarmos a forma autocrática como por mais de quatro décadas exerceu o poder, o regime de partido único sem eleições realmente livres, a censura e a informação controlada, a polícia política, as prisões e execuções por oposição ou dissidência, o qualificativo será adequado. Mas a direita serve-se indevidamente dele, usando-o para demonizar uma experiência histórica que, em anos de constante apoio da política externa norte-americana a ditaduras sanguinárias espalhadas por toda a América Latina, funcionou para milhões como fator de esperança e um importante exemplo emancipatório. Por isso essa «verdade», vinda, ademais, de uma área política na qual a luta pela liberdade sempre esteve longe de ser uma prioridade, se funda na ocultação, produzindo, de facto, uma mentira. (mais…)

          Atualidade, Biografias, Democracia, Memória, Opinião

          O génio cobarde e o medíocre engenhoso

          O Ruído do Tempo, último livro de Julian Barnes, é um romance histórico. Incorporando uma componente ficcional, centrada em particular nos diálogos, nos cenários, nos personagens secundários, no enunciar de subjetividades e, naturalmente, na trama narrativa, possui uma espinha dorsal que é o conhecimento histórico das circunstâncias que envolvem os factos mencionados e a biografia das figuras reais que as povoam. Em algumas obras do género a primeira componente é dominante, mas neste caso isso acontece claramente com a segunda. Barnes seguiu aqui, de forma muito próxima, a vida do compositor russo Dmitri Chostakovich, personalidade central da música do século XX, que viveu sempre uma relação tensa e ambígua como o poder soviético. Nas últimas duas páginas, aliás, refere as fontes históricas das quais principalmente se serviu.

          Gira em torno de três momentos nos quais essa tensão emergiu de forma particularmente dramática, aproximando o génio criador da pessoa que a todo o instante teme pelo seu bem-estar e pela sua pele. O primeiro ocorreu em 1936, ano do início dos impiedosos Processos de Moscovo, quando a sua ópera Lady Macbeth de Mtsensk, composta dois anos antes, foi acusada pelo jornal Pravda de se tratar de «chinfrim em vez de música», uma expressão de um inútil formalismo e, por isso, contrária ao dogma artístico do realismo socialista. Incidente que que forçou Chostakovich a uma longa fase de medo físico da prisão ou mesmo da execução, e depois a uma retratação pública que não deixou de o manter ao longo de décadas sob suspeita, cerco e vigilância. (mais…)

            Artes, Biografias, Leituras, Olhares

            O impostor no seu labirinto

            Todos, mesmo aqueles que se julgam à prova de sonho, gostamos de palavras e de ideias que de alguma forma nos ajudem a tornar a realidade mais suportável. Mascarando-a com ambientes de fantasia, colando-a aos nossos desejos ou interessando-nos apenas por aquilo que ela pode oferecer de positivo. Minimizando ao mesmo tempo, ou fazendo por esquecer, as partes mais desagradáveis e monótonas das nossas vidas. Esta é a principal razão para mergulharmos em romances e filmes, para seguirmos determinadas séries de televisão, para gostarmos particularmente de certas músicas, pinturas ou fotografias. Ou, mais simplesmente, para sentir prazer perante uma história bem contada.

            Mas esta é também a razão pela qual, em certos momentos, nos tornamos presa fácil dos vendedores de quimeras, sejam eles políticos oportunistas, pregadores cheios de prosápia ou simples burlões. Na verdade, para o sucesso da sua missão enganadora, quem vende ficção em proveito próprio apenas precisa ter alguma desfaçatez e a capacidade de dizer de forma ajustada aquilo que precisamos ouvir para nos sentirmos confortáveis. Nestas circunstâncias facilmente aderimos à sua capacidade hipnótica. (mais…)

              Biografias, História, Leituras, Memória

              Svetlana

              Svetlana Boym

              Acaba de desaparecer prematuramente, aos 49, a professora, escritora e artista multimédia russo-americana Svetlana Boym. Empenhou-se particularmente num trabalho caleidoscópico capaz de cruzar utopia, kitsch, literatura, história, memória e modernidade. Os dois livros que dela li e reli – The Future of Nostalgia, sobre o passado que se ergue das ruínas recentes de Moscovo, Berlim ou Praga, e Another Freedom, uma história alternativa da ideia de liberdade – foram uma descoberta e um estímulo.

                Apontamentos, Biografias, História, Memória

                Ana Hatherly

                Ana Hatherly

                Ana Hatherly (1929-2015) morreu esta quarta-feira, 5. Escritora, poeta, artista visual, professora e outras coisas mais. Conheci-a por interposto livro quando, provavelmente por causa do título, aos dezassete comprei o Eros Frenético em edição da Moraes. Fisicamente cruzámo-nos poucas vezes, e apenas uma com mais tempo. Quando no início dos anos 80 me lancei, sozinho e a contracorrente, a estudar a dimensão visual e feérica do barroco sob a perspectiva da história política, foi das pouquíssimas pessoas do meio universitário português com quem falei do assunto que não achou o tema exótico nem me disse para “ter cuidado” com ele, estimulando-me a continuar e propondo-me mesmo colaborar na sua revista Claro-Escuro. Nunca lhe falei do conforto que então me ofereceu esse seu estímulo. E agora é tarde para fazê-lo pessoalmente.

                  Apontamentos, Biografias, Memória

                  O meteorologista e o «dever de memória»

                  Olivier Rolin

                  Não acontece apenas com o Holocausto: existe também um negacionismo do Gulag. A década e meia que se seguiu à queda do Muro de Berlim correspondeu a um período de expansão de trabalhos sobre a dimensão e o impacto da repressão política e social na União Soviética durante o longo período em que Estaline foi impondo a sua brutal ditadura. Estudaram-se em particular a formação e o desenvolvimento do Gulag, o tentacular e imenso sistema de campos, bem como as decisões de natureza genocida, impostas por manobras de engenharia social que envolveram muitos milhões de pessoas, e ainda os assassinatos em massa perpetrados durante o Grande Terror de 1936-1938. Nos últimos anos, porém, algo tem vindo a mudar neste processo de reconhecimento. E a mudar num sentido preocupante, com a emergência pública de vozes que se esforçam por negar ou por justificar aquilo que aconteceu.

                  Naturalmente de valia diversa, a maior parte desses estudos foi levada a cabo por historiadores profissionais, cientistas políticos e jornalistas reconhecidos de várias nacionalidades, que puderam ter acesso aos arquivos da antiga URSS, outrora sonegados ao conhecimento dos cidadãos e à investigação, enquanto no interior da Rússia a Associação Memorial, fundada em 1989, se esforçava por desenvolver um trabalho árduo mas persistente e com resultados palpáveis de recuperação da memória das vítimas e de inventário da pós-memória dos seus descendentes. (mais…)

                    Biografias, Democracia, História, Leituras

                    Lemkin e o genocídio

                    Veio há dias parar-me às mãos um ensaio do jurista francês Olivier Beauvallet sobre a vida e a obra de Raphael, ou Rafal, Lemkin (1900-1959). O nome deste advogado polaco de origem judia não me era totalmente estranho, mas confesso que jamais o seu trabalho me havia surgido como algo que justificasse uma atenção especial. Todavia, o conteúdo da obra veio provar-me a profunda injustiça que representa o desconhecimento quase generalizado da sua obra. De facto, Lemkin foi «apenas» o fundador do conceito de «crime bárbaro», que na qualidade de procurador público na Polónia apresentou em 1933 a um comité jurídico da Sociedade das Nações reunido em Madrid, associando-o à «destruição de uma nação ou de um grupo étnico» tomada como crime particularmente grave e forçosamente imputável. (mais…)

                      Biografias, Direitos Humanos, Memória

                      Nos 90 anos de Soares

                      Na história política do século XX português há as figuras, as figurinhas e os figurões. Das de segundo e terceiro tipo geralmente não reza a História. Chegam, tomam a palavra, e logo partem para ser esquecidas. De entre as primeiras existe, porém, uma linha da frente que perdurará para além das representações de natureza benévola ou negativa que sobre elas e a sua obra possam ser feitas: Afonso Costa, António O. Salazar, Álvaro Cunhal e Mário Soares. A característica comum aos quatro reside no facto de jamais alguém lhes ter sido ou permanecer indiferente. Todos carregaram e continuam a carregar paixões e ódios. E todos souberam, cada um à sua medida, mobilizar vontades e deixar lastro.

                      Concorde-se ou não com ele, goste-se ou não das suas escolhas, apreciem-se apenas algumas (é o meu caso) ou todas as decisões que tomou, louve-se ou não o seu intenso hedonismo (deste, tão raro nos profissionais da política, eu gosto mesmo), Mário Soares, que perfaz hoje 90 anos de vida continuando nas bocas do mundo, está aí, felizmente, para mostrar a falta que fazem políticos com coragem e um selo próprio. Que saibam pôr no lugar as caixas de repetição e se tornem inesquecíveis. A vida das repúblicas, e em particular a das democracias, não pode depender apenas das personalidades fortes, raras e imprevisíveis, mas não se constrói sem elas. Sem elas desfalece de tédio.

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                        Um arquivo singular

                        Esta semana a Universidade de Coimbra e a Fundação Cuidar O Futuro assinaram o termo de doação que transferiu para o Centro de Documentação 25 de Abril a responsabilidade de guardar, tratar e disponibilizar de forma pública o importante arquivo político e pessoal de Maria de Lourdes Pintasilgo (1930-2004). São cerca de 250.000 documentos de uma tipologia muito diversa que dão conta de um trajeto à escala nacional absolutamente singular. Um trajeto que ao longo de décadas se fundiu com a história recente de Portugal, testemunhando experiências que deixaram um lastro inapagável, nas instituições mas sobretudo nas pessoas que nelas participaram ou a elas assistiram, e que merecem ser conhecidas e estudadas. (mais…)

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                          A fera amansada

                          Slavoj Žižek em entrevista à Babelia deste sábado.

                          P. ¿De verdad no quiere tomar nada? Jela Krecic, periodista treintañera, y tercera esposa de Zizek, se asoma un instante por el salón del apartamento, amplio y agradable, pero sin lujos especiales. Desde el patio ajardinado llega el canto de los mirlos. Este es el santuario de Zizek.
                          R. Aquí me gusta pasar el tiempo, trabajando en el ordenador, viendo películas [en un enorme televisor con pantalla de plasma], preparando nuevos proyectos. Con Sophie Fiennes voy a hacer la tercera guía pervertida, esta vez sobre el amor. Algo muy tradicional. El amor es percibido como patológico si es muy intenso. Hoy lo normal es ser promiscuo. Hasta tal punto estamos obsesionados con la idea moderna de hacer cosas, de ser dinámicos. Pero yo soy un romántico.
                          P. ¿No le pesa a veces cargar con su personaje de filósofo adorado por las masas?
                          R. No, porque soy un solitario. La gente cree que me gusta estar en público, pero mi momento más feliz es cuando acaba la conferencia. Aquí estoy en conflicto con todo el mundo, lo que me gusta es estar en casa, con mi mujer, dos o tres amigos. ¿Conoce usted Islandia? ¡Oh! Es el país donde querría vivir. No parece de este mundo, no hay árboles, ni hierba siquiera, es como otro planeta, como si Dios no hubiera terminado allí la creación.

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                            Mudam-se os tempos

                            1972. O senhor do meio é Martin McGuinness, antigo líder militar do IRA e hoje vice-primeiro-ministro norte-irlandês. Nesta terça-feira vai jantar em Londres com a rainha Isabel II mas tudo irá correr bem. Muito bem mesmo. O mundo dá muita volta e os pontos cardeais já não são o que eram.

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                              O bom traidor

                              Adolfo Suárez

                              Após dez anos de dolorosa doença, acaba de morrer Adolfo Suárez (1932-2014), o homem que, na qualidade presidente do governo de Espanha, entre 1976 e 1981 apoiou o razoavelmente pacífico processo de transição política que conduziu o Estado espanhol do franquismo até a democracia. Foi justamente quando em 23 de Fevereiro de 1981 se encontrava numa sessão das Cortes na qual Leopoldo Calvo Sotelo iria tomar posse como seu sucessor que teve lugar uma tentativa de golpe de Estado, destinada a recolocar a direita franquista no poder e materializada então na violenta ocupação do parlamento por uma companhia da Guarda Civil chefiada pelo tenente-coronel Tejero Molina. Anatomia de um instante, do escritor Javier Cercas, é uma excelente reconstituição histórica deste episódio, invocando os acontecimentos desse dia e dessa noite para enfatizar, com flashes retrospetivos, o papel daqueles que considera terem sido os protagonistas da resistência à iniciativa golpista: Suárez, o general Gutiérrez Mellado, Santiago Carrillo, então o secretário-geral do PCE, e, do lado de fora do parlamento, o rei Juan Carlos. (mais…)

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                                Pina político

                                No prefácio a Por Outras Palavras, a segunda das três antologias que foram reunindo muitas das crónicas escritas por Manuel António Pina (MAP) para jornais e revistas, Sousa Dias lembra dois fatores decisivos, apesar de contraditórios na aparência, para obter uma leitura justa daqueles textos. O primeiro considera o caráter sempre efémero de toda a prosa do género – «o cronista é filho de Cronos, o tempo que passa», lembrava o próprio Pina – e remete a sua completa decifração para as circunstâncias nas quais foi produzida. O segundo fator, aplicado mais explicitamente ao registo de MAP, remete para uma identidade conceptual advinda do facto dos seus textos cronísticos serem, cada um deles e o seu conjunto, trabalho de um grande escritor, o que lhes prolonga o prazo de validade. Partem do episódico, do instante, para chegarem àquilo que permanece e o transcende. Há naquelas peças quase diárias, bem acima do que pode ter sido incidental, «um sopro literário, por vezes mesmo poético», que é «imediatamente sensível» e lhes amplia a projeção. Esta é, aliás, uma característica partilhada pela multíplice obra escrita de Pina (na poesia, no teatro, na literatura infanto-juvenil, na reportagem), mas também no seu modo de viver a vida (nisso insistem os amigos, os colegas, os entrevistadores, os leitores que lhe cruzaram os passos). Em ambas, obra e vida, uma constante marca de poeticidade. (mais…)

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                                  Cunhal, Carrillo e a História


                                  A vida pessoal de Álvaro Cunhal, durante décadas rodeada de um secretismo não ajustado à sua presença pública, e o seu longo trajeto político, só muito parcialmente conhecido do cidadão comum, têm sido alvo de uma atenção crescente. A mudança começou em 1999, com o lançamento do primeiro volume da biografia escrita por José Pacheco Pereira (o quarto está prestes a sair). Apesar de olhada com desconfiança, devido às escolhas políticas do autor, por contornar a insistência do PCP em não disponibilizar os seus arquivos e por ter sido iniciada sem a cooperação do biografado, a obra rapidamente se impôs pelo valor documental, abrindo caminho para o desenvolvimento dos três modelos de abordagem da vida de Cunhal que estão em curso. O primeiro é o do estudo biográfico, apontado ao reconhecimento da sua vida e intervenção, sem qualquer valoração ética ou análise sectária; o segundo, de nítida influência partidária, propõe uma perspetiva controlada, associada ao recorte exemplar e heroico da sua personalidade; já o terceiro modelo centra-se nos pormenores da vida privada, explorando a atenção de um público voyeur e de menor exigência. Todavia, este trabalho pode ser ampliado seguindo outras estratégias. Uma delas passa por confrontar o trajeto do antigo secretário-geral do PCP com o de outras figuras do movimento comunista internacional suas contemporâneas, num exercício que enfatiza inevitavelmente a originalidade do seu caminho. (mais…)

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                                    Marina

                                    Marina Ginestà

                                    Aos 97, Marina Ginestà, veterana francesa da Guerra Civil de Espanha, morreu em Paris no dia 6 de janeiro. O seu rosto tornou-se conhecido graças a uma fotografia tirada pelo alemão Hans Gutmann no terraço do Hotel Colón, em Barcelona [clique na imagem para ampliar]. Marina, combatente republicana e militante da Juventude Socialista Unificada, tinha então 17 anos e toda a esperança do seu lado. Reagindo muito mais tarde ao facto de ter dado rosto, durante algum tempo sem o saber, a uma das mais icónicas imagens da guerra, fez um comentário que dava um livro: «Dizem-me que tinha ali um olhar altivo. É bem possível. Vivíamos então a mística da revolução proletária e das imagens de Hollywood, de Greta Garbo e de Gary Cooper.»

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