O impostor no seu labirinto

Todos, mesmo aqueles que se julgam à prova de sonho, gostamos de palavras e de ideias que de alguma forma nos ajudem a tornar a realidade mais suportável. Mascarando-a com ambientes de fantasia, colando-a aos nossos desejos ou interessando-nos apenas por aquilo que ela pode oferecer de positivo. Minimizando ao mesmo tempo, ou fazendo por esquecer, as partes mais desagradáveis e monótonas das nossas vidas. Esta é a principal razão para mergulharmos em romances e filmes, para seguirmos determinadas séries de televisão, para gostarmos particularmente de certas músicas, pinturas ou fotografias. Ou, mais simplesmente, para sentir prazer perante uma história bem contada.

Mas esta é também a razão pela qual, em certos momentos, nos tornamos presa fácil dos vendedores de quimeras, sejam eles políticos oportunistas, pregadores cheios de prosápia ou simples burlões. Na verdade, para o sucesso da sua missão enganadora, quem vende ficção em proveito próprio apenas precisa ter alguma desfaçatez e a capacidade de dizer de forma ajustada aquilo que precisamos ouvir para nos sentirmos confortáveis. Nestas circunstâncias facilmente aderimos à sua capacidade hipnótica.

O escritor Javier Cercas publicou no final de 2014 um livro, de certa forma inclassificável – é ao mesmo tempo um romance, uma investigação histórica e uma «reportagem ficcionada» –, sobre a vida e a arte de iludir de um incomum mestre na arte do engano. Em O Impostor, agora editado pela Assírio & Alvim (tradução de Helena Pitta), Cercas relata-nos a história labiríntica e fascinante de Enric Marco, um agora nonagenário barcelonês que se fez passar por sobrevivente dos campos nazis, chegando, nessa qualidade, a ser condecorado e a presidir à associação espanhola dos sobreviventes do Holocausto.

O embuste é já conhecido desde Maio de 2005, quando Marco foi publicamente desmascarado por um jovem historiador, mas este livro do escritor estremenho vai bem mais longe na observação da sua vida singular. No essencial, comprova que todo o trajeto pessoal do biografado foi construído com uma sucessão de desmedidas mentiras, costuradas com curtos fragmentos de verdade. A origem familiar, a data de nascimento, a infância e o progresso dos estudos, o percurso profissional, o lugar nas fileiras republicanas da Guerra Civil, a militância clandestina antifranquista, o passado anarcossindicalista, e por último a experiência no campo de Flossenburg, tornaram-se parte, apoiados numa audácia e numa energia infinitas, de uma teia de mentiras capaz de envolver as suas três mulheres, os seus filhos, os seus amigos, os seus correligionários, depois um país inteiro e pessoas de todo o mundo. Seduzidos pelas histórias que Marco inventou, em particular após a morte de Franco, muitos o foram acarinhando, admirando e até seguindo, deixando que alcançasse um lugar público e protagonismo em sucessivas organizações.

Javier Cercas declarou em entrevista: «tratando-se da história de um grande embusteiro, de um efabulador genial, de um aparatoso criador de ficções a respeito de si próprio», a sua obra apresenta-se, paradoxalmente, como «um romance sem ficção, saturado de ficção». Dito de outra forma: é tão grande a dose de invenção produzida por este impostor genial, que a única forma de dar um sentido inteligível à narrativa foi nada inventar que por ele não tivesse sido inventado. Mas Cercas vai mais longe, ao afirmar que Marco foi apenas, ainda que «em ponto grande» o embusteiro que, no fim de contas, todos nós somos um pouco. Motivados pelo nosso «desesperado e humilhante desejo de sermos a todo o custo aceites, queridos e admirados», pela rejeição de «nos reconhecermos tal como somos», sempre procuramos inventar, em maior ou menor dose, nem que seja apenas pelos floreados da fala, «uma vida paralela, fictícia e lisonjeira, capaz nos tornar suportável a vida real.»

A leitura de O Impostor, coloca-nos, pois, perante um problema na observação do que designamos «vida real». Porque, na verdade, todos somos, nós e o nosso percurso, ao mesmo tempo, aquela que reconhecemos e aquela que contamos aos outros, a que nos pertence e aquela que imaginamos. O eventual mal não reside na invenção, pois sem ela seríamos mais infelizes e menos reconhecidos. Está em usar essa capacidade de efabulação para enganar os outros, fazendo-nos passar pelo que não somos, assumindo responsabilidades que não estamos em condições de assumir, tornando-nos responsáveis por decisões que não nos deveria ter sido permitido tomar.

Na verdade, Enric Marco é apenas uma sombra relativamente benévola daquilo em que se pode transformar quem, em vez de recriar apenas a própria vida, tenha a oportunidade de forjar a de todo um país ou a de todo um povo. Os grandes ditadores e os caudilhos populistas sabem fazê-lo muito bem. Por isso são bem mais perigosos que o Senhor Marco.

Link: Javier Cercas sobre O Impostor

Publicado no Diário As Beiras

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