Pina político

No prefácio a Por Outras Palavras, a segunda das três antologias que foram reunindo muitas das crónicas escritas por Manuel António Pina (MAP) para jornais e revistas, Sousa Dias lembra dois fatores decisivos, apesar de contraditórios na aparência, para obter uma leitura justa daqueles textos. O primeiro considera o caráter sempre efémero de toda a prosa do género – «o cronista é filho de Cronos, o tempo que passa», lembrava o próprio Pina – e remete a sua completa decifração para as circunstâncias nas quais foi produzida. O segundo fator, aplicado mais explicitamente ao registo de MAP, remete para uma identidade conceptual advinda do facto dos seus textos cronísticos serem, cada um deles e o seu conjunto, trabalho de um grande escritor, o que lhes prolonga o prazo de validade. Partem do episódico, do instante, para chegarem àquilo que permanece e o transcende. Há naquelas peças quase diárias, bem acima do que pode ter sido incidental, «um sopro literário, por vezes mesmo poético», que é «imediatamente sensível» e lhes amplia a projeção. Esta é, aliás, uma característica partilhada pela multíplice obra escrita de Pina (na poesia, no teatro, na literatura infanto-juvenil, na reportagem), mas também no seu modo de viver a vida (nisso insistem os amigos, os colegas, os entrevistadores, os leitores que lhe cruzaram os passos). Em ambas, obra e vida, uma constante marca de poeticidade.

Todavia, o seu trabalho cronístico agrega algo mais. Há uma retórica peculiar, que mesmo nos momentos em que aparece envolta em humor ou ironia remete para aquilo que, em privado ou em público, Pina igualmente foi. Um homem com agudo sentido do político, na aceção mais dilatada do conceito, para o qual a crítica da má governação, a da perversão da democracia, a dos tiranos e dos tiranetes, bem como a dos seus intérpretes maiores ou dos seus pequenos serventuários, correspondia a um dever que assumia como a uma segunda pele. Tarefa apenas possível na medida em que a sua afirmação não correspondia ao mero registo do protesto, do rebate polémico ou do comentário sardónico, mas aparecia como expressão pública de uma atitude acentuadamente ética que tendia a questionar a ordem injusta das coisas. Logo, como tarefa associada a uma prosa que excluía de todo a busca do unânime e insistia mais na intervenção das pessoas que na imobilidade da sua paisagem. Existe, pois, em tudo o que MAP escreveu, mas em especial nas suas crónicas, a marca de alguém profundamente empenhado na coisa pública. Estas não serviam apenas, como de vez em quando dizia brincando, para sustentar a legião de gatos que tinha em casa: eram um elemento integrador da sua personalidade e da sua vida no domínio do público.

Pina sempre foi assim, mesmo quando a sua voz tinha escasso público e a propensão libertária o afastava do trabalho político organizado. Quando a visualização de um filme raro podia ser mais urgente que uma reunião. Aliás, antes do 25 de Abril, não se lhe conhece filiação partidária, apenas a cumplicidade certa com a «esquerda da esquerda», como agora se diz. Do Che Guevara, lembrava em 2003: «no meu quarto eu tinha a sua foto, morto, de olhos transparentes e abertos, pregada numa cruz.» Mas enquanto estudante universitário foi participando sempre que podia nas manifestações, nas assembleias, e em muitas daquelas mil atividades de índole cultural, ou contracultural, que se podem qualificar como de resistência. «Éramos esquerdistas, maoistas, trotskistas, guevaristas, anarquistas», lembrará numa crónica de 1988, «não fazíamos a barba, tínhamos longos cabelos, óculos redondos, blue jeans sujos, camisas de flanela, sandálias, os mais radicais boina e saca maquisard onde, à falta de carregadores e rações de combate, iam os livros da 10/18». Noutra, de 1992, é em nome desse universo feito de convicção na obscura mas imprescindível utopia que falará, sem grande gentileza, contra os que preparavam então uma vida instalada, seres indizivelmente mesquinhos e desprezíveis que compunham essa «perigosíssima estirpe da gente prática», que «enquanto cantávamos na rua e fugíamos à frente de todas as polícias, mastigavam metodicamente as sebentas em sombrios quartos onde não chegavam o fogo dos sonhos nem o clamor da vida».

Depois do 25 de Abril, terá passado por uma participação episódica no MES, e fugazmente também, conta-se, na UEDS de Lopes Cardoso. Participou ainda na formação do jornal Gazeta da Semana, dirigido por João Martins Pereira e Jorge Almeida Fernandes, publicado em 1976-77, que representava um espaço de resistência, no campo da informação, contra a «normalização democrática» com a qual, após o 25 de Novembro de 1975, se pôs termo ao período de rápida transformação revolucionária. Mais tarde, numas eleições europeias, foi mandatário no Porto do Bloco de Esquerda, em parte pela ligação de simpatia que mantinha com Miguel Portas. Mas pouco mais que isso. No plano da observação da intervenção partidária deteta-se, aliás, em muitas das crónicas, um visível desencanto, particularmente percetível na sua atitude em relação ao PCP, cujo exagerado taticismo, imobilismo teórico e dependência de modelos de construção do socialismo que considerava caducos lhe causavam evidente aversão, e ao PS, no qual rapidamente viu uma plataforma de projeção de interesses privados, sem uma linha clara, fiável e mobilizadora. Escreve em 2007: «Muitas das coisas e conceitos em que acreditei tinham afinal um rosto sórdido, e a maior parte das pessoas em cuja fé confiei desertou, desistiu de “transformar o mundo e mudar a vida” e anda hoje por aí a tratar da “vidinha”.»

Todavia, o distanciamento e a desilusão nunca o tornaram «apolítico». Porque em Pina a dimensão plena do interesse pela coisa pública não se encontrava tanto na referência, inevitavelmente nostálgica, às convicções do passado que fora o seu, ou sequer na denúncia recorrente de pequenos e grandes sinais de uma ordem social injusta ou da gestão danosa, ou pouco inteligente, da vida coletiva. Ela estava principalmente na forma insistente como, na generalidade dos textos cronísticos, combinava a observação da experiência humana, que sempre informa o escritor, com uma aguda atenção perante a dimensão social do humano, de certa forma análoga àquela que mobiliza o ativista. Em 2009, sobre os mais fracos: «Os pobres são alvos fáceis, movimentam-se pouco e não é preciso pontaria por aí além para lhes acertar.» Ou, um ano antes, sobre a manipulação do passado nos processos do arrivismo social: «em tempos como o nosso, de rasteiro presente, o passado (o “currículo”) tornou-se um bem escasso e quem não tem passado adequado a cada circunstância arranja-o.» Ou, em 1988, sobre a hipócrita louvação dos poetas: «Eles [os políticos] é que têm uma dívida para com ela [a poesia] que, naturalmente, não conseguirão pagar com estátuas nem com nomes de ruas.» Ou ainda, em 1991: «Até os tiranos são [agora] pequenos tiranos, liberais e pragmáticos.»

Numa das últimas entrevistas que concedeu ao seu Jornal de Notícias, MAP abordou a espécie de vampirismo político que alimenta todo o cronista: «Diz-se que os povos felizes não têm história. Não é fácil (nem bonito) dizê-lo, mas às vezes, a infelicidade de um povo é a felicidade dessa espécie de historiadores do presente que os cronistas (…) são». Não parece, pois, que Pina fosse inteiramente exato ao destacar a motivação material para se aplicar anos a fio, noite fora, a escrever a crónica do dia seguinte. Retomando-as agora no conjunto, fora do momento em que o autor se esforçou por cada uma delas, vemos como transcendem a proclamada dimensão do «dever diário» feito de transpiração. E como todas tinham, de facto, um coração justiceiro comum por detrás. Afinal, escreveu-o em 2005, estará sempre o cronista «diante do mundo e de si próprio». Falando «de gente, de factos, de acontecimentos», embora o que diga seja «outra coisa», esteja para além do particular e do momentâneo. «E essa coisa é que é a verdadeira.»

Publicado originalmente na revista LER de Fevereiro de 2014.

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