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Depois de Alcácer-Quibir

Retirando a atitude respeitosa patenteada pelo já pequeníssimo grupo de indefetíveis disseminado pelo país, pessoas de duvidoso sentido da realidade ou de espírito piedoso que ainda dão o benefício da dúvida à justeza e à dimensão avisada da intervenção pública de Aníbal Cavaco Silva, são de três tipos os qualificativos aos quais a generalidade dos portugueses recorre agora para tentar explicar o inexplicável. Uns consideram-na uma prova do caráter timorato e indeciso da pessoa em causa, traços considerados evidentes por quem sabe desenhar perfis psicológicos. Outros julgam-na resultado de uma senilidade algo prematura, documentada por sinais visíveis que os especialistas em gerontologia rapidamente identificam. Outros ainda, menos condescendentes, vêm nela o resultado de um mal-disfarçado calculismo, fruto de uma leitura apressada mas convicta do bê-á-bá amoral do maquiavelismo político. Se bem que negativas e preocupantes, cada uma destas três características seria, ainda assim, relevável se assumida de forma isolada. Mas e se todas elas se encontram a cumprir, em simultâneo, o seu papel na incoerente e irresponsável ação do Presidente da República? Depois dos reis Sebastião e Afonso VI – que acabaram a carreira pública da pior forma para eles e para o país – poder-se-á a História repetir?

    Apontamentos, Atualidade, Opinião

    O mal dos «bons alunos»

    Desde que dei as minhas primeiras aulas, no ano de 1973, defini um padrão de apreciação dos alunos que ainda mantenho. Dividi-os em quatro grupos: os maus, os medianos, os bons e os excecionais. Os «maus», felizmente em minoria, são sempre os maus: aqueles que não sabem, não querem saber e detestam quem sabe, pouco ou nada havendo a fazer com eles que não seja manter algum grau de paciência e conservar a conveniente distância. Os «medianos», em regra a maioria, são aqueles que não estudam muito, parecem distraídos, faltam quando podem, não se esforçam por ter grandes notas, mas conservam, lá no fundo do seu fundo, um grau de curiosidade e capacidades que ao longo da vida os podem transformar em pessoas ativas, válidas e até notáveis. Há depois os «bons». Esses são os que tomam apontamentos de tudo, leem e sublinham várias vezes a bibliografia recomendada, são metódicos no estudo e geralmente reproduzem sem pestanejar as palavras e as interpretações dos seus professores, mas jamais superarão os «excecionais». Já estes mostram-se feitos de outra matéria: são os insaciáveis, que querem saber tudo de tudo, que possuem visível capacidade crítica, que procuram informar-se por si mesmos, que desenvolvem um pensamento próprio, que não aceitam sem pestanejar aquilo que os professores lhes dizem e sabem até ir mais além, por sua conta e risco. Se preciso for, emendando-se a si mesmos. Por isto me parece por demais evidente que um governo de «bons alunos», como aquele que supostamente temos – principalmente agora que se foi embora o cábula-mor –, jamais será capaz de se regenerar e de aceitar os próprios erros: o seu modelo não o permite, pois são incapazes de ultrapassar o nicho de «saber certo», adquirido acriticamente, no qual se empoleiraram. Falta-lhes o imprescindível rasgo para ir além daquilo que os mestres lhes ditaram e eles veneram.

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      Desmantelando fronteiras

      O que pode aproximar num manifesto comum pessoas com trajetos políticos tão diametralmente opostos como aqueles protagonizados pelos deputados europeus Daniel Cohn-Bendit (n. 1945), antigo libertário e atual copresidente do Grupo dos Verdes/Aliança Livre Europeia, e Guy Verhofstadt (n. 1953), do Grupo Democrata e Liberal, primeiro-ministro da Bélgica durante quase uma década? De forma condensada mas nem por isso mutilada, pode responder-se a esta pergunta falando de uma constatação e de uma proposta. A constatação é imposta por uma imagem que hoje poucos terão coragem de negar: «a Europa é um edifício que vacila nos seus alicerces», imersa numa crise profunda e assustadora, simultaneamente económica, demográfica, ecológica, política e institucional, pela qual europeu algum passa incólume e que questiona um paradigma de desenvolvimento, de bem-estar, de cooperação e de liberdade que ainda há pouco parecia robusto e irreversível. (mais…)

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        A distopia da qual se fala

        Quando se buscam os fatores partilhados de disfunção da grande utopia comunista que conduziram os Estados do «socialismo realmente existente» à situação cataléptica que decidiu a sua morte, alguns revelam-se particularmente evidentes. Desde logo aqueles que se reportam às rígidas políticas de engenharia social que determinaram êxodos de povos inteiros, fomes que poderiam ter sido evitadas ou uma atitude política de exclusão determinada pela origem social do reprimido, ainda que esta se encontrasse associada a uma quota significativa da população. São também recorrentemente mencionadas as condições de ausência de liberdade de crítica, que bloquearam as sociedades e até os próprios partidos no poder, assim como o espartilho de uma economia rigidamente planificada e burocratizada, através da qual se assinou a sentença de morte de um crescimento equilibrado e a incapacidade de suprir as necessidades reais da população. Outro aspeto conhecido mas habitualmente menos abordado diz respeito à formação e ao funcionamento das elites políticas e administrativas, as chamadas nomenklaturas, que emergiram da conceção leninista do partido como vanguarda e «exército de revolucionários profissionais» para se destacarem progressivamente como casta privilegiada, inamovível e cega face às transformações de um mundo em constante e cada vez mais rápida mudança. (mais…)

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          Este peso sobre os ombros

          As ondas de choque da última sondagem sobre as intenções de voto dos portugueses, a popularidade dos seus líderes políticos, a aceitação do seu governo e a confiança nas possibilidades da oposição, não deveriam ter-se dissipado tão depressa. Porque revelaram a descrença da maioria da população nos atuais governantes e ao mesmo tempo a limitada confiança que depositam nos que se lhe opõem, mostrando a necessidade de se fazer alguma coisa que altere este panorama. O Partido Socialista, mesmo falando agora num tom um pouco mais elevado, revela-se incapaz de promover uma política de alianças coerente e de se libertar dos rostos de cera produzidos e reproduzidos nos anéis concêntricos do seu próprio aparelho. O Partido Comunista mistura-se com os mais carenciados e empenha-se na luta contra o governo, mas hostiliza em idêntica medida os socialistas, por vezes até os bloquistas, impedindo à partida uma alternativa de governabilidade clara, consistente e agregadora. E o Bloco de Esquerda, apesar de ser dos três o partido mais aberto a uma solução partilhada, tem gasto precioso tempo e a escassa disponibilidade dos seus quadros em debates internos e espaços de reflexão legítimos mas cuja oportunidade é contestável. (mais…)

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            A paz justa, um dia

            Absorvidos pelas urgências da política doméstica ou pelas grandes preocupações que assolam a casa europeia – isto é, mais diretamente envolvidos nos assuntos que nos dizem respeito porque nos afetam os bolsos e as vidas –, temos esquecido, ou passado para segundo plano, os dramas um pouco mais distantes. É o que tem sucedido, por exemplo, com a guerra civil na Síria, empurrada para as pequenas notícias de pé de página no preciso momento em que o número de mortos, feridos, desaparecidos e desalojados continua a crescer numa escala perturbante. Mais: temo-nos dado ao luxo de a seu respeito deixar passar versões simplistas e parciais de uma realidade complexa, nas quais se transformam os carrascos em vítimas ou se simplifica, como num mero combate entre o Bem e o Mal, aquilo que, em Damasco ou Alepo, de facto não é simples. O mesmo está a acontecer com as ocorrências do interminável conflito israelo-palestiniano, do qual nos tem chegado informação aparentemente repetitiva, dando a entender que tudo está na mesma quando na realidade, embora lentamente, algo tem vindo a mudar. Parte desta novidade surge agora justamente de onde os mais distraídos ou irredutivelmente maniqueístas tendem a nada esperar de bom. (mais…)

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              A voz dos outros

              Não tenho muito mais a dizer sobre esta novela ruidosa, acompanhada de exacerbadas petições favoráveis ou desvaforáveis, projetada a propósito do anunciado regresso de José Sócrates, na qualidade de comentador político, a um espaço semanal na RTP. Cinco curtos parágrafos apenas:

              1. Não conheço Sócrates em carne e osso e admito que possa até ser excelente pessoa. Mas desde que ganhou notoriedade política vi-o sempre como alguém com uma pose pouco dialogante e um discurso ideologicamente insípido, numa atitude que culminou, após a ascensão à chefia do Partido Socialista, com o isolamento da sua ala esquerda, por ele repetidamente apelidada de «velha», «caduca», em favor dos setores essencialmente técnicos e mergulhados na gestão «pura», próximos da já então moribunda Terceira Via. (mais…)

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                Graça e realidade

                Na tentativa de explicar os primeiros indícios de mudança e o esforço de aproximação às pessoas comuns do novo papa, sinais que têm tornado ainda mais evidente o caminho de imobilismo e afastamento do mundo contemporâneo que marcou os dois últimos pontificados, muitos católicos têm declarado esta aparente metamorfose, e em particular a sua face mais afirmativa e calorosa, como «uma graça do Senhor». No entanto, dado que o conceito de «graça» se encontra associado à dádiva e à misericórdia divina, sendo por isso, e nessa medida, da exclusiva responsabilidade de Deus, tal não parece suficiente. A explicação da graça é a de quem acredita num ser superior, omnipotente e omnisciente, na sua bondade e na sua capacidade para intervir na esfera do humano, mas esta é uma justificação necessariamente incompleta, dado reforçar uma atitude de mera recetividade humana face à vontade divina. A verdade é que as eventuais mudanças, tal como os sinais que as estão a anteceder, estes já inequívocos, representam na prática – independentemente das boas intenções – uma resposta de parte da Igreja católica ao atoleiro de vícios e de ensimesmamento no qual esta se tem deixado submergir. A mudança é pois, para os não-crentes, não um ato de graça, mas antes o resultado de uma iniciativa humana personificada neste papa. Representa uma resposta a uma necessidade, determinada pelos problemas da própria Igreja e pela imprescindível reinscrição, ou reinicialização, do seu lugar no mundo. Se desta resultar uma Igreja católica melhor e mais próxima dos anseios, expectativas e necessidades que partilhamos, tanto melhor. Para todos, inclusive para aqueles não-crentes que sabem estender a mão.

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                  As sandálias do pescador

                  Quando alguém pede que declare a identidade religiosa costumo descrever-me como um agnóstico cristão. Não é difícil explicar o aparente paradoxo: não concebo racionalmente, nem creio, na existência de um Deus superior, entidade sobre-humana que não esteja apenas dentro de nós e como parte de nós. E muito menos acredito nas virtudes de uma religião capaz de tomar principalmente a forma de Igreja. Prezo muito no entanto a mensagem, revolucionária à época do seu surgimento, proposta por Jesus Cristo. Admiro-a pelo que então trouxe de radicalmente novo: pela defesa da paz e da aceitação numa era marcada pela guerra e pela tirania, pelo acento no ecumenismo num tempo de ódio religioso e poder imperial, pelo reconhecimento da igualdade numa sociedade esclavagista, pela valorização da compaixão e do amor quando a ética dominante assentava na violência, pelo reconhecimento das mulheres dentro de uma sociedade acentuadamente patriarcal, pela ênfase colocada na humildade quando a soberba pontuava a conduta daqueles que se elevavam acima dos outros. (mais…)

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                    Demissão ou revolução

                    Demissão Já!

                    Nenhum governo se demite ou deve ser demitido só porque os seus adversários o exigem em todas as partes, com todas as forças e numa grande algazarra. Se assim fosse, o poder estaria sempre na boca do megafone, o que tornaria qualquer república ingovernável. Mas é verdade que a revolta não se faz em silêncio, com punhos de renda e pezinhos de lã. Faz-se sempre com estrondo, em alta voz, porque aponta para uma mudança urgente e completa, porque corresponde a um clamor pela justiça justa ou porque exprime uma sentida indignação. Mas, ainda assim, ela acontece dentro da ordem constitucional que só uma revolução terá condições para superar. No entanto, existe um limite para a legitimidade desta ordem: quando qualquer forma de poder põe em cheque a soberania popular, governando em nome do povo mas contra ele, apoiando-se no valor do voto mas subvertendo os programas com os quais esse voto foi obtido, cessa então o seu direito a mandar e a sua autoridade transforma-se em tirania.

                    Quando, como ontem, o principal ministro do governo PSD-CDS reconheceu publicamente a falência do programa eleitoral, assumiu como um falhanço as medidas de emergência com as quais se subverteu esse programa e declarou solenemente a hipoteca austeritarista do nosso futuro – «o ajustamento [proposto por este governo] terá de continuar durante décadas, exige o esforço de uma geração», disse Gaspar – então nada mais existe que justifique o lugar que ocupa e o ambiente de aceitação que os cidadãos podem ter em relação a quem ainda governa. Diante deste panorama, só existem então três caminhos: ou o governo se demite ou quem tem a capacidade constitucional para o fazer toma essa iniciativa. Mas eu falei de três caminhos, não falei? Pois então o terceiro deles, o que faltava, pode ser a rua a ditá-lo. Demissão rimará então com revolução. Teremos mesmo de chegar aí?

                    Nota: Este texto será partilhado na página Demissão do Facebook. Onde se espera que outros surjam e os leitores cliquem. Por mim, na condição dos próprios se sentirem envolvidos na iniciativa, passo o desafio ao Marco Santos, ao Miguel Cardina, ao Nuno Serra, ao Tomás Vasques e ao Zé Neves. Esta proposta, tinha-a recebido do João José Cardoso.

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                      Teremos papa

                      Face às previsíveis demonstrações de «enorme felicidade», «grande satisfação» e «esperança imensa» mecanicamente debitadas pelos católicos que em relação ao seu papa mantêm um relação de inquestionável fidelidade, surgiram também, logo após a escolha de Francisco para bispo de Roma, os juízos diametralmente opostos de quem, tal como em forma de caricatura alguém escreveu no meu mural do Facebook, ficou logo de pé atrás por se encontrar, provavelmente, «à espera da eleição de um hippie comunista, de um informático libertário ou de um transsexual saído dum bairro da lata.» Tentemos então escapar a este tipo de julgamento, fugindo de juízos apressados. De facto, a biografia do cardeal Ratzinger e o seu comportamento como papa Bento XVI, por constituírem um exemplo recente, deveriam ser suficientes para mostrar que a condição papal, pela dimensão e responsabilidades que envolve, pode reescrever muitos comportamentos e perspetivas. A mesma coisa se passa noutras áreas: assumir uma tarefa de responsabilidade máxima numa instituição de poder e prestígio investe, quem viva tal experiência, numa nova condição. A pessoa continua a ser quem é, mas ao mesmo tempo deixa de ser a mesma. Por isso será preferível esperarmos um pouco, sem crucificar já o novo papa por não se ter comportado neste ou naquele momento como eventualmente gostaríamos que se tivesse comportado. E sobretudo evitemos julgá-lo antes de fazer o quer que seja, para além de pronunciar umas palavras de circunstância na Praça de São Pedro e de dar aos fiéis a tradicional benção urbi et orbi. Ou por um passado com episódios mal conhecidos, que pode até não ter sido propriamente simpático, mas sobre o qual existem também muitos boatos e suposições. Cá estaremos para escrutinar aquilo que, na nova e pesada qualidade de sucessor de Pedro, o argentino Francisco vai dizer, escrever e fazer para os seus e perante o mundo inteiro. Ou pelo lado obscuro que possa eventualmente ter omitido do currículo. O «tempo de graça», como se sabe, é sempre curto. Mas um pouco de esperança, ainda que passageira, não faz mal a ninguém.

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                        Péssimo sinal

                        Pergunto-me, tal como se perguntará uma larga franja de portugueses interessados na queda do atual governo e na construção de uma solução de governabilidade à esquerda, se o PCP e o Bloco se darão conta da extrema gravidade que comporta o gesto de recusarem (o PCP abertamente, o Bloco implicitamente, dada a visível falta de empenho) a proposta do Partido Socialista e de António José Seguro para discutir eventuais alianças nas eleições autárquicas. É verdade que um dos flancos politicamente mais discutíveis, pessoalmente mais duvidosos e administrativamente mais obscuros do PS se define ao nível de boa parte das suas escolhas autárquicas. Vivendo e sendo desde há muito eleitor na cidade de Coimbra, estou particularmente habilitado para confirmar esta triste realidade. E sei perfeitamente que existe, aqui como em todo o país, um longo caminho a percorrer para que a aproximação à esquerda ocorra e sem desenvolva de um modo dinâmico e transparente, no respeito mútuo e no interesse da maioria dos cidadãos. Boa parte desse caminho será, aliás, forçosamente da responsabilidade do próprio PS. Mas não dar sequer ensejo a conversas sobre hipotéticas alianças a nível local, reagindo «de pedra na mão», constitui não só um ato de hostilidade em relação à possibilidade de construir alianças voltadas para a política do país como uma forma de mostrar publicamente que o sectarismo está longe de ser ultrapassado. Aceitando aproximações apenas se forem as «nossas regras» a determiná-las ou colocando sempre o acento tónico nas diferenças e nas divergências, apesar do tempo que vivemos, no qual uma rápida mudança de políticas associada a um vasto consenso eleitoral é, obviamente, a única solução para evitar o estado de calamidade e o salto do país para o mais negro dos abismos. O sinal que está a ser dado é negativo e deixará sequelas. E é também um fator de redução dessa dimensão de esperança sempre decisiva em tempo de mudança.

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                          Mulheres e Mulherzinhas

                          O Dia Internacional da Mulher, evocado como momento de rebelião e protesto no Portugal pré-Abril – devido ao lugar visivelmente secundário, marcado pela exploração material e pela depreciação cultural, que nele ocupavam as mulheres – foi-se banalizando nos últimos anos, e, tal como aconteceu com o Dia das Mentiras ou o dos Namorados, transformando num engodo para o consumo. Não que a data tivesse deixado de ser importante e não tenha permanecido na agenda dos movimentos e dos cidadãos cientes de que a emancipação das mulheres é uma tarefa apenas iniciada. Mesmo no mundo no qual estas são formalmente iguais em direitos e deveres e não precisam sair à rua com o rosto tapado ou vigiadas pelo marido. O que acontece é que a trivialização da data fez com que ela passasse a ser evocada também por mulheres com uma noção frágil da sua própria emancipação, confundindo-a apenas com a presença na rua e no mercado de trabalho, e ainda por homens que com o seu gesto de «homenagem às senhoras» apenas reforçam a desigualdade e o preconceito. São as mesmas e os mesmos que têm pavor do feminismo – grosseiramente julgado como expressão de uma hipotética luta «das mulheres contra os homens» ou de uma «recusa do feminino» – e que alimentam esta versão caricatural do 8 de Março. Na verdade, do que falam é do «Dia da Mulherzinha», essa criatura débil, frágil e desejavelmente rosada, decalcada do livro autobiográfico de Louisa May Alcott publicado há quase século e meio. A mulherzinha que se realiza no «final feliz», eventualmente consumado no casamento e na maternidade, mas, de facto, que permanece no seu lugar decorativo, dependente e subalterno. Mesmo quando sobe à tribuna, conduz um trator com presteza, toca pandeireta numa tuna ou dirige a economia familiar.

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                            Como arruinar um projeto em 144 páginas

                            Na História Politicamente Incorreta do Portugal Contemporâneo (De Salazar a Soares), editada há pouco pela Guerra & Paz, Henrique Raposo, o cronista do Expresso também «licenciado em História e mestre em Ciência Política», considera existir um padrão dominante no interior da historiografia nacional que é preciso meter na ordem. Este funcionaria como uma espécie de vírus, desvirtuando e falsificando o conhecimento que temos do século passado a partir da perspetiva vitoriosa da esquerda. Considerando-a intrinsecamente nefasta e objetivamente falsa, propõe-se então contribuir para atenuar essa influência. Resume-a neste livro através de um complexo de «mitos» que pretende questionar. Identifica essencialmente cinco: o de Salazar como mera criatura da Igreja católica, o de um Mário Soares sem o qual Portugal de facto não teria entrado na Europa, o do Estado Novo vergando os portugueses à irrevogável pobreza, o de uma esquerda que vez alguma fora «colonialista», e, por fim, o da hegemonia cultural da mesma esquerda como tendo começado antes do 25 de Abril e fechado as portas logo no final de 1975. A narrativa de Raposo procura negar radicalmente estes juízos, anunciados como fábulas. (mais…)

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                              Tudo depende de nós

                              Fotografia de Vesselin Vitanov
                              Fotografia de Vesselin Vitanov

                              Em A Ironia do Projeto Europeu parte-se de uma constatação: estamos de regresso a um ponto de partida do qual, ao longo das últimas décadas, jamais ponderámos reaproximar-nos. Há um século, como lembra Rui Tavares no início deste ensaio, a Europa contava com condições económicas, políticas e tecnológicas excecionais para construir «um sistema de cooperação entre nações fundado sobre a emancipação pessoal». Porém, muitos dos problemas verificados, «da finança descontrolada à legitimidade política esvaziada», antecipavam já aqueles com os quais hoje de novo nos confrontamos. Sabe-se que nessa época foi a Primeira Guerra Mundial a solução encontrada para supostamente resolver o dilema, mas tal não significa que estejamos hoje em condições de repetir a péssima receita. Existem demasiados interesses, combinados e sem um responsável identificado, para escolher um território físico e um inimigo contra o qual fazer agora marchar os exércitos. Ainda assim, e é essa uma das preocupações presentes neste livro: paira uma pulsão de violência imposta pela exacerbação das contradições e dos consequentes conflitos entre os Estados, os grupos sociais e os indivíduos. Por isso este livro apresenta uma reflexão sobre a contradição, em cenário de crise, entre crescimento e desigualdade, e também sobre a sua possível superação, procurando mostrar de que modo, apesar da propensão para o bloqueio e o conflito, existem condições para reconquistar uma democracia transformadora capaz de ajudar a Europa a regenerar-se e os europeus a lançarem-se num novo estádio de desenvolvimento. (mais…)

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                                Esperar desesperando

                                Fot. Paulo Pimenta / Público
                                Fot. Paulo Pimenta / Público

                                Encontrei na semana passada uma amiga brasileira que não via há algum tempo. M. vivera uma época em Portugal, que então percorrera de uma ponta à outra e conhecera bastante bem, até que há cerca de dois anos regressara por motivos familiares à sua cidade de origem. Agora de volta, depois de todo este tempo, para nós aparentemente sem fim, durante o qual o país sofreu o choque imenso que conhecemos, ocorreu-me perguntar-lhe se sentia alguma diferença visível entre o Portugal que deixara e aquele ao qual agora retornava. Aquilo que me respondeu não me deixou surpreendido: «Com certeza que sim, de imediato. E o que mais me impressionou foram as mudanças na cara das pessoas. Um ar de contrariedade, de desgosto, um semblante de tristeza e de falta de confiança, um rosto rígido que eu não conhecera antes, um olhar diferente e talvez um pouco perdido.» A nossa memória diz-nos a mesma coisa, mas pronunciada desta forma, a partir do ângulo de observação de quem não viveu o dia-a-dia da nossa dramática mudança, a descrição de M. funciona como um abalo. (mais…)

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