A abolição do humanismo

Distopia, por Strelok86
Distopia

Numa reportagem publicada há dias pelo diário i sobre as consequências sociais da crise e da austeridade, alguém declarava ao jornalista: «O humanismo desapareceu e o que eu vi na Grécia foi mesmo isso, uma catástrofe social em que o humanismo desapareceu.» Por humanismo entende-se aqui, parece claro, não a corrente cultural antropocentrista mas uma valorização da solidariedade que reconhece no semelhante um ser humano idêntico a nós, diante do qual temos obrigações de respeito e proteção tal como ele as tem para connosco. E é esta solidariedade, essência, instrumento e objetivo do humanismo, que falha no justo momento em que mais dela necessitarmos, quando o empobrecimento e a perda de direitos exigiriam um esforço de entreajuda e uma luta comum ainda mais intensa. Mas os culpados da crise e os seus atuais gestores sabem bem como seria perigosa tal política de aproximação, tal lógica de combativa partilha: ela iria transformar-se num inoportuno fator de resistência às políticas que procuram impor. Como essa resistência as tornaria inexequíveis, tudo fazem para alimentar os antagonismos que fazem renascer o «homem lobo do homem», assim justificando, como teorizou o filósofo Thomas Hobbes há perto de 350 anos, a intervenção desse Estado-Leviatã, mais juiz e polícia que equilibrador e paternal.

Começa então por evitar-se a solidariedade internacional: é preciso esquecer os gregos («não somos a Grécia», insistem), esquecer os sírios, esquecer os angolanos, esquecer todos aqueles cujos problemas «não nos dizem respeito». Depois esquecer os que vivem connosco mas é fácil tornar invisíveis: os imigrantes, os ciganos, todas as minorias. Em seguida é preciso separar o mundo dos desempregados daqueles que ainda conseguem trabalho precário, mostrando este como um bem que deve ser conservado o todo o custo, se preciso for contra o companheiro do lado. Além disso, convém deixar claro aos que ainda têm um emprego aparentemente seguro aquilo que os espera se não aceitarem todas as imposições. Na fase seguinte viram-se os trabalhadores do privado contra os funcionários públicos, acusados de todos os males, procura-se mostrar aos mais novos que os seus problemas começam nos direitos dos mais velhos, faz-se ver que os mais qualificados têm direitos a mais, virando contra eles os que menos qualificações possuem. De seguida, profissão a profissão, enfatizam-se as clivagens entre categorias, voltando-se toda a gente contra toda a gente, incentivando o carreirismo e o ressentimento, assim afastando os cidadãos dos territórios da reivindicação e das causas comuns. Quando este trabalho diabólico estiver terminado, já nada sobrará desse humanismo solidário que é a essência da vida em comunidade. Restando um povo de escravos dóceis e sem energias, de tanto as consumirem nos pequenos conflitos tribais, para enfrentarem em conjunto os seus algozes. É este o programa de retorno à lei da selva e de abolição do humanismo que acompanha atual «reforma» do Estado social e a projeção de uma sociedade selvagem, dominada pelo egoísmo e pela competição.

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